Guimarães Rosa: novas luzes sobre um fascinante enigma

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1984-10-6. Aguardando revisão.

Sem exagero, pode-se afirmar que a literatura brasileira se rasga de alto a baixo, em dois modos de ser: antes de 1956 e depois desta data, a da publicação de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. Comprovadamente, qualquer pessoa que folhear um razoável manual da nossa literatura deparará com nomes e obras em grande profusão. Uns e outras, forçosamente menores, noutros casos já se delineiam perfis assombrosos de uma genialidade pouco a pouco reconhecida – nenhum, porém, com a altivez desafiadora e novíssima, irrepetível, dessa imensa cordilheira mineira até hoje indecifrada. Esfinge de enigmas nunca traduzidos para o linguajar prosaico e a compreensão reles do dia-a-dia, Guimarães Rosa, continua a formular interrogações. Mesmo os nossos melhores críticos lhe respondem apenas com fragmentos, por vezes argutos, de uma sua possível exegese, nunca, porém, com um estudo abrangente e marcante da sua ciclópica obra. Nada que se compare, por exemplo, à Vida e Obra de Fernando Pessoa, de João Gaspar Simões, em Portugal.

O mais novo livro sobre nosso supremo escritor foi editado pela José Olympio, tem 315 páginas e se chama: A Cultura Popular em Grande Sertão: Veredas do escritor e ensaísta paulista Leonardo Arroyo. Não é, nem pretende ser, uma obra para quem não conhece o assunto. É, na realidade, uma achega a mais, uma contribuição altamente elucidativa, das raízes feudais, inconfundivelmente portuguesas, desta soma não de três raças tristes, como queriam os poetas parnasianos, mas de três raças mergulhadas no temor ao desconhecido de que modelou grande parte da nossa psique nacional. Argumenta o autor que os portugueses que para cá vinham, vinham já temendo os mares que suas naus abririam à Europa, oceanos povoados de diabos, de monstros marinhos e abismos. Depois, sentiram medo da natureza tropical que aqui encontraram, com suas matas virgens, suas pavorosas sucuris, seus cardumes de esfomeadas piranhas, o clima feroz infestado de malária, febres desconhecidas, lepra e a hostilidade de bugres crueis. Por sua vez, os aborígenes tremiam cada vez que um raio e um trovão anunciavam a cólera incontrolável de Tupã e se ajoelhavm diante daqueles seres de tez branca, barbas ruivas, ohos claros, linguajar incompreensível. Não seriam deuses? De um tacape alongado obtinham um estampido horroroso que – milagre! – acendia o fogo ou matava um homem ou um ser vivente a metros de distância. Finalmente, e da África? Mal sobreviviam ao pesadelo da longa travessia pelo mar, acorrentados nos porões imundos dos “navios negreiros”, espantavam-se com aquele mundo novo de chibatas, maldades. Só em seus corações aflitos invocavam em voz baixa os deuses perdidos: Xangô, Oxóssi, Ogun, Yemanjá, deuses que a Igreja, como sempre aliada ao poder dominante do momento, tentou, sem sucesso, extirpar.

Além do medo cumulativo, Leonardo Arroyo avança uma tese solidamente alicerçada em provas abundantes, citadas em sua extensa bibliografia: o elemento popular sempre se antecedeu e se sobrepôs ao elemento erudito, o mercado sempre fecundou a imaginação literária da corte aristocrática dos castelos, desde os tempos antes da Descoberta, na Europa medieval. Para Guimarães Rosa isto equivale a dizer: em vez do erudito Faust de Goethe, a literatura de cordel de Januária e outros centros pequenos é que lhe serviu de base e inspiração.

É uma empreitada valente a de Arroyo, quando se sabe que Guimarães Rosa enxertou em seus vastos conhecimentos de fontes lusitanas (o que fica claramente demonstrado pelo ensaísta) uma dezena de línguas e literatura estrangeiras que dominava fluentemente. E mais: estudos pertinazes das variantes místicas da Cabala judaica, dos Upanishads e dos Vedas da Índia, textos que lia em hebraico, sânscrito e outros idiomas arcaicos. E os neologismos de Guimarães Rosa, e as formas arcaizantes do português enquistadas naqueles vilarejos de Minas, cortados da civilização. É, como Arroyo mesmo sublinha, uma simbiose de popular e erudito, sem nenhum apelo panfletário e burro a um falso populismo. Não: ele reconhece lucidamente que “elite” não indica somente uma camada financeira privilegiada, a “elite” cultural e intelectual, Dieu merci, escapa à luta de classes…

Há mais, contudo, nessa documentada “picada” que Leonardo Arroyo abre na floresta rosiana: ousa negar que Guimarães Rosa tenha ou possa ter qualquer afinidade com Descartes: um achado soberbo! Poderia acrescentar: o gênio mineiro tinha em sua literatura uma alergia a tudo que fosse “bem-comportado”, excessivamente apolíneo a tudo que busca só o racional, o intelectual, a razão. Em uma de suas cartas a seu tradutor para o alemão, Curt Meyer-Clason, ele especifica definitivamente o propósito de seus livros:

“(Eles são), em essência, anti intelectuais… e defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana… Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanishads, com os Evangelistas e com São Paulo, com Plotino, com Bergson, com Berdiaev – com Cristo principalmente.”

Oposto a Descartes e à sua suposta vivissecção da vida estuante e sempre mutável, o pólo magnético contrário que o atrai, então, nessa dualidade apresentado por Leonardo Arroyo, é Montaigne. Montaigne é a dúvida, a impossibilidade de se rotular uma “realidade” que nos circunda. Já no título de um sem-número de seus textos o mestre de Ensaios ensinava serenamente: “Da loucura de opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de acordo com a razão” ou “Da incerteza de nossos juízos”. O jagunço mineiro, Riobaldo, seria assim “exemplo e ilustração para Montaigne, recuado no tempo há mais de quatro séculos”.

A posição do analista paulista é, aparentemente, a de um agnóstico, de um cético ou mesmo de um ateu diante da obra deísta, panteísta do místico Guimarães Rosa. É uma atitude que não precisa absolutamente ser justificada. Como mera indagação, porém, não seria justo aproximar a bússola espiritual de Guimarães Rosa da Weltanschauung de um René Guénon, de Vivekananda, do Baghavad Gita e da Escola Vedanta da Índia, talvez mais enraizados no sentir e no fazer poético de Grande Sertão: Veredas?

Excelentes os longos trechos que Arroyo dedica, também, ao repúdio voluntário do autor mineiro com relação à linguagem, preferindo a esta a espontaneidade da fala, a oralidade substituindo a gramática, e – sobretudo – eliminando o lugar-comum, a frase feita. “O esquema de abordagem do texto explica tudo – explicita Leonardo Arroyo. Guimarães Rosa não quis, talvez por aceitar a fala como elemento natural na forma e realidade como foi fixada uma herança cultural, levar em consideração um outro elemento importante para a compreensão da sua obra.”

Enumera o estudioso um enorme número de textos calcados no A Donzela que vai à Guerra – todas com um final feliz em que a moça que se disfarça de homem para combater como soldado na guerra acaba casando com seu “Capitão”. Somente a versão de Guimarães Rosa termina tragicamente. Imparcial e honestamente, Arroyo confirma a predominância do mítico, do mágico, do maravilhoso nas “estórias” do bruxo de Cordisburgo, cidadezinha do interior de Minas onde Rosa nasceu. E sublinha sempre que as sementes fecundas de sabedoria que vieram às suas mãos provieram inevitavelmente do povo. Para reforçar seu ponto de vista, Leonardo Arroyo cita nada menos que Vivo e Herder, segundo os quais os conhecimentos, noções e concepções populares são uma sabedoria poética e “a arte de cada país só seria verdadeira quando refletisse a psique do povo, ou melhor, susa essências folclóricas”.

Neste ponto, uma rápida recapitulação se faz necessária. Tratasse do fato suscetível de irritar muitos xenófobos que defendem a unhas e dentes a pureza de uma ignorância nacionalisteira: Guimarães Rosa, a rigor, prescindiu de todas as grandes renovações – algumas delas geniais – que vieram com a Semana da Arte Moderna e que se lhe sucederam. Como Joyce, Mallarmé, Gadda, Guimarães Rosa explodiu a poeirenta “frase literária” e passou a jogar xadrez com o leitor: as palavras e frases eram as peças sobre o tabuleiro – e o tabuleiro? Uma “inquirição do Universo” feita pelos dois. Esgotara-se no Brasil, com a grandeza de Graciliano Ramos, o romance social nordestino; na América Hispânica, Carpentier e outros soerguiam o reino do realismo mágico, Faulkner catava os estilhaços do pensamento de um débil mental em O Som e a Fúria. Guimarães Rosa universalizou o regional brasileiro, como diria Herbert Read, que vê no regionalismo autêntico um microcosmos imediatamente traduzível para o macrocosmos dos arquétipos humanos de nossa “aldeia global” eletrônica de hoje.

Não escapa a Leonado Arroyo a condicionante dolorosa desses cavaleiros andantes brasileiros, os jagunços: o vazio de suas vidas. “Financiados” na Europa por senhores medievais e no Brasil por coroneis feudais do nosso interior, o mercenário sertanejo brasileiro serve a uma causa abstrata, que lhe desgasta a vida, quando não o mata ou aleija – para quê? Para, no máximo, vingar-se de um inimigo alheio: o jagunço, pode-se dizer termina como o livro começa: no nada ou nonada (coisa de menor importância). Riobaldo e os companheiros estavam todos a soldo de poderes dominantes, meros joguetes de uma sociedade sem resquício de justiça ou de autêntico cristianismo, uma doutrina há quase dois milênios abastardada pela Igreja, transformada em porder temporal e, desde sempre, aliada aos poderosos do momento.

Mais discutível, tanto à luz de Platão, de José Lezama Lima, do relatório britânico Wolfenden e dos relatórios de Kinsey e Masters and Johnson, recentemente, nos EUA, é a interpretação, digamos, intolerante ou impermeável a outras interpretações que o ensaísta dá à figura aparentemente hermafrodita, de Diadorim, o guerreiro mulher. Uma outra leitura, como a feita pelo historiador norte-americano John Boswell, ou do crítico de literatura brasileira norte-americano Gregory Rabassa, admitiria o amor de Riobaldo por Diadorim sem lhe atribuir “desvios” que, para Freud, eram apenas “desvios normais da sexualidade humana”. Da mesma forma paira no ar a conclusão, na realidade baseada em reiteradas hesitações do próprio Riobaldo, de que o Demônio está em nós, como Deus, contrariando as teses de Dennis de Rougemont e de Baudelaire além da grande parte da teologia ortodoxa de várias igrejas cristãs de que o Diabo é uma figura exterior que vem lançar seu anzol de tentações para pescar as almas para seu inferno.

Pelas excelentes luzes, fartamente documentadas, que vem lançar sobre um dos aspectos desse imenso mosaico e enigma rosiano, Leonardo Arroyo é suficientemente democrático para não assumir, jamais uma atitude rígida, dogmática, douta, de magister dixit. Ao contrário, permite até que Guimarães Rosa diga (no seu célebre colóquio com o estudioso da América Latina naturalizado alemão Günther Lorenz):

“Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquino o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante e rebelde a qualquer lógica, que é a chamada realidade, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o absurdo que o óbvio, que o frouxo. Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável verdade”.

Coincidindo com a 16ª edição de Grande Sertão: Veredas, agora pela Editora Nova Fronteira – infelizmente sem as magníficas ilustrações de capa de Poty! -, este estudo coerente, lúcido, de Leonardo Arroyo vem preencher mais um dos tantos vazios existentes na interpretação de Guimarães Rosa, nenhum dos quais, por mais brilhante que seja, capaz de abranger a complexa grandeza maravilhosa de sua totalidade. Junta-se aos melhores escritos de Antônio Cândido, de Augusto de Campos, de Benedito Nunes, Cavalcanti Proença, Maria Luiza Ramos e Walnice Nogueira Galvão. De hieróglifo em hieróglifo chegaremos um dia a nos aproximar do código em que ele quis encerrar o seu mistério ou bastará que as “estórias” e o “romance” de Guimarães Rosa continuem fascinando pelo seu valor mágico e encantatório insuperáveis?

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1984–10AD) 2022. “Guimarães Rosa: novas luzes sobre um fascinante enigma .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.