Mais uma obra de Hilda Hilst. Com todos os superlativos

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 20/11/1982. Aguardando revisão.

O livro A Obscena Senhora D (Editora Massao Ohno), a ser publicado na semana que vem, em São Paulo, é um livro único da magnífica autora paulista contemporânea, sobretudo porque é possível lê-lo sem se ter a mínima notícia de seus livros e poemas anteriores. Perturbadoramente, é também um elo que se insere em seus escritos revolucionários. O scholar mais jovem da literatura brasileira nos Estado Unidos, Thomas Colchie, afirmou-me, com ponderada veemência, se assim se puder dizer, que a criação literária de Hilda Hilst é a mais alta e a mais importante do mundo ocidental deste final de século. O falecido e esplêndido crítico alemão emigrado para o Brasil, Anatol Rosenfeld, com todo o peso da sua profunda erudição, escreveu à autora que sua peça de teatro As Aves da Noite era a mais bela que lera de todos os textos de dramaturgia atual.

Lenta e pertinentemente, a importância transcendental da obra em prosa e verso de Hilda Hilst atravessa fronteiras, galga incompreensões da inércia da crítica brasileira. E de uma ilha majestosa, apavorante e solitária constrói, com a lava telúrica do seu gênio, um inicial arquipélago de seus leitores e admiradores reconhecidos.

Por quê? Porque Hilda Hilst, como todo grande artista, dá ao leitor aquela dupla oferenda que só, por exemplo, A Paixão Segundo São Mateus, de Bach, um filme de Bergmann ou Tarkovsky ou Guerra e Paz, de Tolstói, entre poucas outras meditações artísticas de todos os tempos, exemplificam. Cada livro ou poema seu expande o universo da reflexão filosófica abissal sobre o homem, a par de um invólucro estético soberanamente perfeito. Se com Proust aquirimos uma noção nova do “gueto” homossexual, da batalha feroz entre o anti-semitismo no “caso Dreyfuss” e o fascismo latente da alta aristocracia francesa e suas amadas que a imitam, em sua época: com Mme Bovary de Flaubert, Ana Karenina de Tolstói e os livros de Virgínia Woolf e Doris Lessing captamos toda uma dimensão nova do território proibido à mulher – a manifestação da sua sexualidade e da sua autenticidade - , o que nos traz Hilda Hilst, neste livro, súmula dos demais de sua autoria?

A Obscena Senhora D, para esquematizar uma de suas temáticas con parole povere, como dizem os italianos, tem como obsessão palpável na pele, nos ossos, no cérebro, a marcha indetível da velhice. Se já nas duas narrativas de Agda ela aflorara a percepção aterradora da degenerescência do corpo, dos “brancos” da memória, da perda paulatina da lucidez, do aviltamente e da exclusão do velho e da velha de uma sociedade que os abomina, agora ela, por assim dizer, leva às últimas consequências a incorporação da certeza de que a idade avançada é uma luta cruel e inútil contra a morte. Milimetricamente, todos os dias, a morte infiltra-se na retina que não distingue mais cores nem formas com a mesma nitidez implícita de antes. As rugas, as manchas de senilidade no dorso das mãos, os peitos murchos, o ventre proeminente são provas concretas dessa derrocada física cifrada na substituição dolorosa da atração sexual pelo horror que inspira a todos agora. “Por favor, queria tanto te falar, te falar da morte de Ivan Illitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia-a-dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, dessa coisa que não existe, mas é crua, é viva, o Tempo”.

Reduzindo, segundo um método drástico, a estrutura dessa aventura fascinante do encolhimento do ser humano, borboleta programada por um semideus cruel que transforma sua beleza diáfana, jovem e efêmera numa lagarta viscosa e repelente, a Senhora D defronta-se com um aut/aut kierkegardiano. Arrisca tudo numa roleta russa em que ou o ser humano busca o entendimento da vida ou acelera as células do câncer que lhe devoram a alma: o Nada. A Obscena Senhora D enrola-se debaixo do vão da escada, onde passa a viver, em busca de Deus, depois de morto o marido Ehud. Como sempre nos escritos de Hilda Hilst, alternam-se os dois contrapontos musicais: a lingugem erudita, filosófica, mística, em contraste vívido com a linguagem popular, utilitarista, dos que vivem só o presente imediato e querem fazer parte do gado humano, como dizia o grande poeta Fernando Pessoa, para quem comer é comer, um dia é um dia (na transcrição do sentido apenas do seu poema, não na transcrição exata de suas palavras). “Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada? você está me ouvindo Hillé? olhe, não quero te aborrecer, mas a resposta não está aí, ouviu? nem no vão da escada nem no primeiro degrau aqui de cima, será que você não entende que não há resposta?”

Deus é aquele punhado de meninos brincando cruelmente de arrancar as asas de moscas buliçosas e cheias de luxúria, autodenominadas, com um estrondo de gargalhadas, seres humanos?, como indagava desafiador, heroico e cético Shakespeare em Macbeth? A imagem que a obscena Senhora D faz de Deus lhe é trazida pelo seu interlocutor (interlocutora?) indefinível no breve diálogo:

“Engolia o corpo de Deus, devo continuar, engolia porque acreditava, mas nem por isso compreendia, olhava o porco-mundo e pensava: aquele nada tem a ver com isso, Este, o Luminoso, o Vívido, o Nome, engolia fundo, salivosa lambendo e pedia: que eu possa compreender, só isso. Só isso, Senhora D? Compreender o jogo brinquedo do Menino Louco, pensa um pouco Hillé, no sinistro lazer de uma criança louca, ou pensa em crianças brincando com gatinhos, com ratos, com tristes cadelas vadias, ó vinde a mim as criancinhas, que sabemos nós de criancinhas? Como pôde dizer isso, ele que dizia que muito sabia?”

A que se auto-exilara debaixo da escada recorta peixes de papelão que coloca no aquário, depois que os peixes reais morreram, inventa máscaras para pôr no rosto: “Há máscaras de focinhez e espinhos amarelos (canudos e papelão, pintados pregos), há uma máscara de ferrugem e esterco, a boca cheia de dentes, há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade – quadrados negros pontilhados de negro -, alguém-mulher caminhando levíssima entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho”.

Ela não pactua com as gentes, interroga-se desesperadamente sobre “Estar morto. Se Ehud FOI algum dia, continua sendo, se NÃO FOI, NUNCA SERIA, mas antes de ser Ehud não era, e então depois FOI não sendo?” Como pactuar com os que na tela da televisão ou diante dela divulgam ou recebem, passivos, “notícias quentinhas, torpes” como a guerra e o massacre do Líbano, lado a lado com o ouro que sai das axilas que usam o desodorante apregoado pelos publiitários o agora banindo a morte, “um dia me disseram: as suas obsessões metafisicas não nos interessam, Senhora D, vamos falar do homem aqui agora”.

A – supõe-se – pequena comunidade que a rodeia, símbolo da comunidade planetária maior que é o mundo codificado por leis rígidas e castradoras, numa série de reações que crescem dramaticamente, tenta compreendê-la. “A morte é coisa que não se pode dar jeito, né?”, proclamam, piedosos. Depois o preconceito contra quem não está robotizado com o Código Que Não Pode Ser Infringido Impunemente se volta contra ela: “não tá vendo que o demo tomou conta da mulher? porca, exibida cadela, ainda bem que é só no pardieiro dela que mostra as vergonhas”.

O ensinamento voluntário da reclusa repele a aparência ilusória do efêmero humano: medo, engodo, ganância de ouro, negação apavorada de que somos mortais e de que defecamos. Motivo central na orquestração complexa e sutilíssima dos livros de Hilda Hilst, só a etimologia grega nos explica simultaneamente seu uso da escatologia: em grego eskhatos (postremo) e logos (tratado), é a doutrina do campo da teologia que trata das coisas que deverão acontecer depois do fim do mundo. Um conceito e um vocábulo diferentes, em grego, definem a outra escatologia: tratado acerca dos excrementos, coprologia, de skatos (excemento) e logos (tratado). Para ela confundem-se sempre os conceitos: o homem, obra de Deus, tem um orifício com o qual, inevitavelmente, tem de obrar, espalhar massa fétida, em choque com o sublime, próximo do divino que são a beleza, a poesia, a arte, o amor, a caridade. Todos, grotescamente, irmanados no dejeto: São Francisco de Asiss e o descobridor da penicilina, Alexander Fleming, Colombo e os astronautas que foram à Lua, Leonardo da Vinci e Lênin, San Juan de la Cruz e Dante Alighieri.

Em rápida sucessão, a comunidade que a execra manda-lhe um primeiro padre: “Venho, Senhora, a pedido da vila, a confissão, a comunhão, não quer? meu nome é

De onde vem o Mal, senhor? misterium iniquitatis, Senhora D, há milênios lutamos com a resposta, coexistem bons e maus, o corpo do Mal é separado do divino

Quem criou o corpo do Mal?

Senhora D, o Mal não foi criado, fez-se, arde como ferro em brasa, e quando quer esfria, é gelo, neve, tem muitas máscaras…

sou um homem como outro qualquer, Senhora D

então rua, rua, fora despacha-te homem como outro qualquer”.

Depois, revoltados com as perguntas incessantes da Senhora D e seu modo de vida deliberadamente a-social, seus vizinhos sentem ódio dela e começam a zombar de tudo que ela representa: “É uma sapa velha. Viu a pele pintada? É sarda. Ainda tem umas boas tetas. Credo, teta de sapa. Podemos botar fogo na casa durante a lua nova. Casa de porca. Olhe, eu tive um porco que era um ouro, era um porco de bem, macio, gordo como poucos, atendia pelo nome de nhenhem, foi ficando tão gordo tão macio tão delicadeza que foi servido só de sobremesa”.

Mais e mais explodem as diferenças entre os pensamentos da solitária “se a gente matasse a carne um do outro, que gosto?” e crueldade feroz, voraz e estulta dos demais. Eles procuram Deus no coração, como o padre lhes ensinou que Ele já estava e não o encontram, apalpando-se céticos, como Gagárin tampouco encontrou Deus no espaço sideral como primeiro ser humano a deixar a Terra e constatar que ela é azul.

À semelhança da obra-prima de William Faulkner, As I lay Dying (Enquanto Eu Agonizava), a vida fervilha em torno da morte da Senhora D. Na impossibilidade de demonstrar toda a rutilante riqueza conceitual e estilística dessa que é o maior escritor vivo da língua portuguesa, baste a citação poética, dilacerante, da despedida do (hipotético) amante: Alguém imita a voz do amado ao lado da moribunda, enquanto o amado fornica vigorosamente com a criada. Esse alguém impreciso é quem capta, irônica e monstruosamente, a sua fala final ciclada num fio de voz: “Agonizava essa e eu encostava o ouvido a sua boca, ouvia: querido, perdoa incompreensão, recusa, indiferença de muitos dias, perdoa solidões, os contatos com o nada, a palha colada à alma, perdoa se não te dei claridade, emoção, se quando tu me querias os olhos se banhavam de umas águas do passado… eu queria também, queria sim tocar teu medo, teu amor, tua vaidade de homem, existir no teu sonho, me ouves?”

Como compreender, ainda que remotamente, o universo de Hilda Hilst, à primeira vista tão hermético? O alicerce de seus escritos de maturidade, a partir de quando fez 50 poemas belíssimos para saudar seus 50 anos de idade, está, em grande parte, nas insuperáveis meditações? lições? exegeses? decifrações de Ernest Becker (a quem dedica A Obscena Senhora D e os livros futuros se os houver) e ao psicólogo Otto Rank.

Ernest Becker, prêmio Pulitzer de 1974 por seu livro A Negação da Morte (editora Nova Fronteira, excelente tradução de Otávio Alves Velho, 1976) é um dos raríssimos sábios renascentistas que restam em nosso mundo de cérebros seccionados e computadorizados. A filosofia oriental ou ocidental, a psicologia como a literatura, a sociologia a par da política e da teologia são terrenos que ele abrange com uma profundidade e uma desenvoltura que os farsantes leitores de “orelhas” de livros jamais poderão imitar. Dando merecidamente a Freud o que lhe pertence, ele, no entanto reconhece, lucidamente, no teólogo e filósofo dinamarquês Kierkegaard o antecessor da psicanálise. Logicamente, não se trata de conceitos facilmente resumíveis. Mas a reflexão básica é a de que o ser humano tem noção da sua individualidade dentro da finitude. Isto é: em toda a escala de seres vivos, apenas o ser humano sabe que é um “eu” distinto dos demais e que um dia morrerá. Se diante da natureza ele é um pequeno deus que vai à Lua, constrói barragens que alteram o ambiente, multiplica seu cérebro pelo computador, circunavega o globo terrestre com Fernão de Magalhães e como santo doa sua vida e seu sofrimento a seu semelhante, por outro lado, como compreenderam claramente os sábios da Índia, o homem é um verme e comida para vermes.

Dual, ele sente que seu corpo palpita, dói, sangra, definha, morre sob alguns palmos da mesma terra que ele dominou como homo sapiens. Seu cérebro, conforme nos lembra Koestler, é tripartite: contemos em nós o cérebro primitivíssimo de um réptil, o de um rato e o neocórtex, de formação recente que nos impele – ineficazmente – para o bem, o amor ao próximo a paz. Como se não bastasse esse destino o qual ninguém pode fugir, durante toda a sua vida o homem que nasceu entre sangue, urina e vezes está condenado a viver com seu próprio ânus. Se Freud insistiu na fase inicial da sexualidade infantil como a fase anal, de brincar com o próprio ânus e as fezes que dele escorrem, Ernest Becker distingue, numa linha tangencial à de outro grande psicólogo ex-freudiano, Wilhelm Reich, que a excessiva negação cultural de que temos uma parte que nos humilha diariamente acarreta uma educaação e uma sociedade repressivas, de horror ao degradante corpo animalesco que temos em comum com os animais. O ânus nos lembra da nossa futura morte e sempiterna decadência. (É verdade que Becker não se detém nos aspectos eróticos do ânus como zona erógena hetero e homossexual.) Consequentemente, a maioria das culturas estudadas sob um ponto de vista antropológico isola não só o ânus como os orgãos genitais do restante do corpo: se a vagina e o pênis são vias de excreção da urina, obviamente, obviamente as partes sexuais são símbolos dessa decadência e devem ser escondidas. A sexualidade e o orgasmo, como diria Reich, estão sufocados por uma série de tabus, leis, códigos e vetos que impedem a sexualidade, heterosexual ou as suas variantes, e, portanto, impõem uma sociedade fascista, totalitária, submissa ao Pai, ao Condutor dos Povos, a Stalin, a Hitler, a Franco, a qualquer Autoridade que zela pelo cumprimento – dissimulado – das Leis rígidas sobre o assunto.

Na mitologia grega seria Tânatos, o espírito da Morte, matando Eros, o amor. Ora, porém, o sexo é a própria definição da anarquia, é revolucionário e antigoverno por excelência, pois “o sexo é, também, um modo positivo de trabalhar no projeto da liberdade pessoal do indivíduo. Afinal, é uma das poucas áreas de real privacidade que a pessoa possui em uma existência quase totalmente social, modelada inteiramente pelo país e pela sociedade”. Ademais, o homem jamais soube por que nasceu, que sentido tem a vida, por que ele guarda lembranças de ontem e à noite povoa sua mente de sonhos ou pesadelos. Becker reconhece, com carradas de razão, que a maior e mais decisiva contribuição de Freud à psique humana é ter descoberto que as doenças são o produto do temor do homem de enfrentar o conhecimento de si mesmo. O preceito grego conhece-te a ti mesmo infunde terror a quem não quer escapar da grei, do rebanho humano sufocado pela repressão na família, na escola, na sociedade, no aparelho estatal vigente. Rank e Heidegger colocam em planos simultâneos a angústia humana por estar-no-mundo e de estar-no-mundo, isto é: ao mesmo tempo o medo da morte e o medo da vida. Quem foge às regras do mundo só pode ser doido. A vida para quem pensa e não está cegado pela turba e suas ilusões parece o produto de uma burla: que Deus tão inepto ou maligno criaria seres prestes a serem comidos por vermes e prontos a morrer no próximo minuto?

Rank surpreende pela conclusão mística a que chega, como psicólogo: para ser “o ser humano precisa ir além do outro, do tu, além dos consolos dos outros e das coisas deste mundo… porque o homem é um ser teológico, termina Rank, e não (apenas) biológico”.

Hilda Hilst, no decurso de toda sua prodigiosa criação artística, reflete, nutre-se delas e retruca a essas elocubrações. A dualidade do sublime e do excremento ela adiciona, como Kierkegaard, o enigma de um Deus incompreensível para as acanhadas concepções humanas. E, deslumbrantemente, a cada livro enriquece o leitor com sua arte e sua lucidez espiritual, inigualáveis na literatura de nosso tempo.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2021,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {Mais uma obra de Hilda Hilst. Com todos os superlativos},
  booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
    Clarice Lispector e Hilda Hilst},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {2},
  date = {2022},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-2/3-hilda-hilst/11-mais-uma-obra-de-hilda-hilst-com-todos-os-superlativos.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Jornal da Tarde, 20/11/1982. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1982) 2022. “Mais uma obra de Hilda Hilst. Com todos os superlativos .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.