A assunção do martírio

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Inédito, Sem data. Aguardando revisão.

Nas aulas anteriores vimos como o artista a partir de Baudelaire passava a encarar aquele ideal romântico do heroi que se opõe à tirania dos preconceitos e dos valores burgueses acadêmicos e hipócritas, e em Lorca à tirania totalitária anti-popular. Nos expressionistas há um ideal de solidariedade humana de individualismo oposto à democracia que nivela por baixo e oposto ao totalitarismo (hecatombe nazista). Kafka é uma figura solitária e majestosa na sua não-integração, mas subterraneamente de oposição ao marasmo e ao conformismo exemplificada indiretamente na morte de Milena como partícipe do levante contra a loucura monstruosa do nazismo.

A partir de Camus e de Sartre, o artista se identifica com a filosofia, mas uma filosofia de oposição – Camus, como artista, contra o marxismo. Sartre abraçando uma filosofia de marxismo muito pessoal, mas ambos integrados na liberação do homem da tirania dos opressores.

Seriam então casos extremos – o do artista que morre fuzilado como Lorca e perseguido pela guerra e pelo nazismo como os expressionistas e isolado e incompreendido como Kafka que passara a assumir a própria angústia? Não. O artista contemporâneo chegaria ao nec plus ultra quando além de assumir o papel de heroi, além de encarnar a angústia e a rebelião ele não veria mais uma situação de fora como faziam os expressionistas e Baudelaire, por exemplo, descrevendo comovidamente e artisticamente o submundo dos párias sociais: os bêbados, os ladrões, as prostitutas.

Faltava ao artista tornar-se ele próprio o pária, a escória, o refugo social. Jean Genet instauraria um novo documento literário: o que parte do lixo, do sangue da chefatura de polícia, dos bairros de mendigos. Na Espanha ele assumiria o papel do artista assassino como Villon, do poeta do crime e da depravação sexual unida ao gosto sádico-masoquista do sangue, do esperma, da relação sexual com cadáveres, da elegância da mão que fere e que mata, e da mão que proporciona uma forma de prazer novo de um narcisismo alucinado através da mesturbação elevada ao nível de um rito propiciatório do encontro ideal do amante com o amado puramente ideal e que não pode fugir ao encontro carnal imaginário. Genet atingiria a situação extrema do artista condenado à prisão perpétua pela justiça francesa e só salvo pela intercessão de Sartre e um grupo numeroso de intelectuais franceses que solicitaram o seu indulto.

Paulatinamente, portanto, como constatamos, o contato do artista com o seu meio ambiente, com os seus contemporâneos e com a burguesia aguça e se agrava, pois da perseguição às obras como Les Fleurs du Mal e o Ulysses de Joyce, a justiça passa a sacrificar o própro poeta – Lorca, os expressionistas – ou o transgessor dos tabus sexuais burgueses: o homossexual que erige o homossexualismo num sinistro culto da beleza e do mal.

Já em inícios deste século, depois do aparecimento de Freud e suas revolucionárias teorias psicológicas, uma interpretação semelhante à de Genet surgira na Áustria, a do psicólogo e sociólogo Wilhelm Reich, banido pelo nazismo e refugiado nos Estados Unidos. Reich com suas teorias de extrema audácia propugnava a liberdade sexual no seu livro intitulado A Revolução Sexual e reivindicava para o homossexualismo os mesmos direitos que o amor heterossexual, da mesma forma que na Grécia Antiga o homossexualismo era erigido em culto estatal, como em Esparta, de acordo com a teoria exposta no diálogo O Banquete de Platão em que se relatava a origem do amor entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos opostos em plano de igualdade.

Genet não invoca Safo em sua ilha de Lesbos, nem a lenda grega de Zeus e Ganimedes, nem as amizades sagradas entre jovens combatentes, nem, por outro lado, apela para uma justificativa puramente intelectual do homossexualismo como a que elaborou André Gide em Le Corydon.

Mais próximo do valor estético que era comum a Baudelaire e a Oscar Wilde ele erige a relação erótica numa relação de fantasia, de imaginação. Os homossexuais que se vestem de mulher em reuniões secretas de travestis passam a ser para ele personagens míticos evocativos de mulheres célebres da Antiguidade e superam assim o cerco quadrado da realidade banal e sem transcendência. Mais, mais ainda: para Genet o arrebaato erótico é um encontro com a divindade.

Evidentemente que todos os seus romances e todas as suas peças são de origem dionisíaca. Ele vem culminar o desenvolvimento da poesia e da literatura francesas iniciado por Baudelaire: a celebração do monstruoso, do misterioso, do mítico, do fantasiado, do lírico, do repuganente, do passional, do criminoso. E evidentemente também toda a sua obra é uma obra repugante e fascinante ao mesmo tempo, uma obra à beira eternamente de um abismo, uma obra que choca, que não pode deixar de chocar, que apavora, que nos traz incerteza e medo, insegurança e horror porque ela instila em nossa mente a dúvida e o caos. Se ele nos causa esse nojo e esse fascínio derivado da sua magia e do seu poder verbal incantatório, não teria razão Montaigne, não teriam razão os clássicos ao declararem:

“Nada do que é humano me é estranho” (Nihil humanum me alienum puto). Simplemente porque nós intimamente reconhecemos que Genet explora e expressa sem rodeios uma parte que existe em nós mesmos, mas que está freiada pelo nosso verniz de civilização de autocontrole de normas religiosas e morais que domam as forças primárias do instinto e da destruição prestes a explodir em qualquer momento ensanguentando a história: o nazismo, a excravidão, os espetáculos bestiais de Nero no Coliseu de Roma, o terrorismo de fanáticos políticos ou religiosos: a Inquisição e a Guerra Civil.

Mas Genet particulariza a nossa tendência inconfessável e sempre latente para o crime, para o sadismo, para o masoquismo, para o ódio e para o mal. Consciente do mal coletivo – a soma de crueldades fragmentárias – ele se detém porém no mal particular, individual, subjetvo. E coloca sob a lente da sua impiedosa lucidez a si próprio.

Le Journal du VoleurDiário do Ladrão – é talvez o mmais pertubador De profundis deste meio século, mais comovedor que o diário de Anna Frank e tão anngustiado quanto o de Kafka porque põe a nú a sua vida desregrada e criminosa entre os mendigos do chamado Barrio Chino de Barcelona. Encarcerado em todas as prisões de cidades europeias, amasiado temporariamente com um belíssimo ladrão maneta – Stilitano – com o qual tem uma relação amorosa trágica, sórdida e sublime ao mesmo tempo.

A saga espiritual de Genet começa como a dos personagens de Dostoiévsky a partir do crime, a partir do castigo, da humilhação, da ofensa, da marginalidade que conduzirá à redenção final. O seu é um mundo que se inicia no círculo concêntrico de um orfanato onde ele é acolhido sem nome próprio, sem pais, sem filiação e se amplia nas vastas prisões onde como uma aranha que tece sua teia com o próprio tecido de seu corpo ele extrai da sua própria miséria o seu relato – e mais: a sua glória.

Para Oscar Wilde, homossexual como ele, requintado esteta como ele a prisão significara a ruína, a condenação infamante de uma burguesia hipócrita e intolerante. O seu De profundis era o final da sua carreira meteórica de artista, o final do seu humor sutil e da sua cintilação verbal. Para Genet, a prisão seria a gênese, o impulso para a criação, para a evocação de imagens do passado e para a construção de um presente imaginário que se sobrepunha ao presente monótono e aviltante das prisões e das favelas de mendigos cheios de escarro, de sangue, de esperma, de pulgas, de piolhos e de suprema miséria humana.

Genet – o nome de uma flor amarela e negra, comum nos campos da França – ornamenta da flores, como Van Gogh os retratos de seus humildes amigos, os prisioneiros seus companheiros de reclusão:

“A roupa dos prisioneiros tem tiras rosas e brancas. Se, sob ordens de meu coração o universo em que sinto prazer é o que elejo, posso pelo menos descobrir nele os diferentes significados que quiser: existe portanto uma relação estreita entre as flores e os condenados à prisão perpétua. A fragilidade, a delicadeza daquelas são da mesma natureza da brutal insensibilidade dos outros. Quando tenho de descrever um detento – ou um criminoso - eu o adorno com tantas flores que ele mesmo desaparecendo sob elas se tornaria outra, gigantesca, nova. Rumo a aquilo que se chama o mal, por amor eu persegui uma aventura que me conduziu à prisão. Se não são sempre belos os homens votados ao mal, possuem, porém, as virtudes viris. Por si mesmos, ou pela escolha feita para eles acidentalmente, mergulham com lucidez e sem queixas num elemento reprovador de ignomínia, igual a aquele, no qual se for profundo, o amor precpita os seres humanos. Os jogos eróticos descobrem um mundo inominável que revela a linguagem noturna dos amantes. Uma linguagem assim não se escreve. Ela é murmurada à noite dentro da orelha com uma voz densa e rouca. Sobrevindo a madrugada, nós a esquecemos. Negando as virtudes deste mundo, os criminosos estão longe de vós (os burgueses) – como no amor eles se afastam e me afastam do mundo e das suas leis. O seu universo cheira suor, esperma e a sangue. Afinal, à minha alma sedenta e a meu corpo ele oferece a devoção. É porque ele possui as condições do erotismo que eu me prendo hirto ao mal. Minha aventura, nunca ordenada nem pela revolta nem pela reivindicação, até este dia será só um longo acasalamento, tornado pesado, complicado por um maciço cerimonial erótico. Cerimônias figurativas que conduzem à prisão e a prenunciam. Se é a sanção, a meus olhos, também a justificação do crime mais imundo, será o signo do mais extremo aviltamento. Esse ponto definitivo ao qual conduz a reprovação dos homens deveria surgir para mim como o lugar ideal do mais puro acordo amoroso, isto é, o mais sombrio onde se celebram ilustres núpcias de cinzas. Querendo cantá-los exultante eu utilizo aqui o que me oferece a forma da mais refinada sensibilidade natural que suscita já a roupa dos prisioneiros. Mas, além de suas cores, pela sua rugosidade, a fazenda evoca certas flores cujas pétalas são ligeiramente hirsutas, detalhe suficiente para que à ideia de prisioneiro eu associe o que há de mais naturalmente precioso e frágil. Essa aproximação, que me informa a respeito de mim mesmo, não surgiria para outra sensibilidade, a minha não pode evitá-la. Ofereço portanto aos detentos a minha ternura, eu quis nomeá-los com nomes encantadores, designar seus crimes, por pudor, com a mais sutil metáfora (sob cujo véu eu não teria ignorado a suntuosa musculatura do assassino, a violência do seu membro); e cada flor em mim depõe uma tão grave tristeza que todas devem significar o desgosto, a morte. É portanto em função da prisão que eu procurei o amor”.

Desta simbiose, desta síntese de prisão e amor de detento e flor tão próxima da justaposição de Baudelaire da flor e do mal parte toda a fúnebre e exultante glorificação da prisão no longo e impressionante monólogo evocativo que com seu ritmo majestoso inicia Nossa Senhora das Flores.

Dos dois elementos fundamentais: a culpa e a beleza, a flor e o mal ele parte para a evocação do mundo subterrâneo dos homossexuais do bas-fond de Paris, que se prostituem a vetustos senhores de colete por alguns francos ou que se entregam a marinheiros e soldados em licença.

Mas dentro da sua literatura-verdade e, pungente, agressiva, Genet se concede também instantes de devaneio sentimental, lírico, como quando evoca a vida em comum de Divina com seu amante, o gigolô malandro Mignon dos pés miúdos que vivia de gatunagem e de prostituição mascuina esporádica.

Ou ele se propõe a retratar a maldade e a conversa de dois homossexuais travestidos um dos quais planeja fugir na mesma noite com Mignon, o amante há seis anos de Divina.

Através da reconstrução da vida dos homossexuais da Place Pigalle, da Place Blanche que povoam sôfregos e como que tangidos por um destino incompreensível os mictórios de Paris, os boulevards regorgitantes de multidões em busca de prazer e de divertimento, Genet particulariza também o aspecto da grande metrópole que Baudelaire revelera – a da grande cidade reconstruída sob seu prisma mais baixo, mais perturbador. Como no caso de Rimbaud e mais ainda no de Céline em Le Voyage au Bout de la Nuit ele reconstrói esse Paris íntimo através da gíria, que assume em suas mãos um papel não só eminentemente popular, mas artístico, contrastando com um texto refinado, riquíssimo de vocabulário erudito inspirado em textos religiosos, em manuais de teologia com evocações frequentes de cerimônias simbólicas da missa ou de aspectos da natureza: a placidez dos campos e deslumbramento das flores, o fascínio das serpentes frias e elegantes de movimentos sinuosos.

Ora, que reação poderia esperar um autor que já não se isola do meio ambiente, mas que mais ainda chega a minar a organização social em que se encontra, ativamente como ladrão e criminoso e literariamente colocando-se acima do julgamento ou da condenação moral do leitor?

Porque ao lermos Genet precisamos partir sobretudo de uma cumplicidade com o seu mundo. Enquanto quisermos meramente observar o seu mundo como curiosidade psicoanalítica ou como deslumbramento verbal permaneceremos fora da sua compreensão. Pela primeira vez a literatura nos incita a sermos como o autor, a compartilharmos voluntariamente a sua visão pessoal e monstruosa. Como afirma Sartre em seu monumental ensaio de 600 páginas dedicado a Genet – não nos basta admirar friamente a forma sem nos compenetrarmos do conteúdo. Porque é preciso partir do reconhecimento franco e sincero de que o texto de Genet é chocante, é bárbaro, é monstruoso e apavorante. Não se trata de subversão social nem de protesto contra uma determinada estrutura política de uma nação, a França, nem mesmo de uma tentativa de justificação ou pedido de escusas da sua anormalidade consciente.

É sintomático que Genet fosmulasse o seu credo da pederastia na época em que assistimos à afirmação crescente dos direitos das minorias. Os negros nos Estados Unidos, através de James Baldwin, dos movimentos do reverendo Martin Luther King e do movimento violento dos muçulmanos negros dispostos à extinção da raça branca. Os negros fazem sentir sua rebelião diante da opressão de seus direitos civis e humanos. Os judeus depois da hecatombe dos campos de concentração nazista na Alemanha radicaram-se na Palestina ancestral criando o Estado de Israel. Na África e na Ásia, os povos sob o jugo colonial surgem para o século XX: a Índia, o movimento da negritude na África negra, a Argélia liberada da dominação francesa.

Jean Genet, como declara Sartre, não aceita o julgamento ou a condenação normais, mas, ao contrário, coloca-se na situação inversa, virando as lentes do microscópio para o seu observador passar a descrevê-lo sob uma perspectiva inédita: a de um representante de uma minoria marginal julgando e definindo uma maioria numericamente superior.

“Toda aventura humana, por mais singular que possa parecer, empenha toda a humanidade” é o que os católicos chamam de “reversibilidade dos méritos”. Genet coloca então um espelho diante dos seus juízes e dos seus algozes e revela que se eles escaparam do destino que consideram com horror: o do ladrão, do pederasta, do prisioneiro. Isto não se deve puramente a taras congênitas, nem a causas sociais, nem ao acaso mas a uma predisposição orgânica para o mal latente em todos os homens, mas que assume formas de expressão diferentes em diferentes indivíduos.

Genet opôs em seu teatro, em Le Balcon, então os tarados “normais” que sob o disfarce tênue de uma respeitabilidade aparente só conseguem possuir uma prostituta num bordel imaginativo vestidos com o aparato da sua própria frustração: um deles só se sente satisfeito vestido de sacerdote e possuindo uma prostituta que lhe confessa os mais nefandos pecados. Outros se erigem com a toga do juiz e julga os crimes sombrios de uma prostituta que ele fustiga com um chicote contundente. Outro ainda aparece como um general sádico que cavalga sua vítima e a esporeia antes de chegar à satisfação erótica.

É como se Genet perguntasse: estas taras são piores do que as minhas?

Debaixo de vossos juizes verdadeiros, de vossos generais, de vossos sacerdotes não se ocultam as mesmas taras inconfessáveis e inconfessadas exceto aos ouvidos de suas vítimas pagas, prostitutas e a escória de uma sociedade baseada na hipocrisia e na dissimulação?

A solidão – essa maré enchente que rouba os artistas ao convívio de seus contemporâneos – espraia-se então, vinda desde os poetas românticos e desde Baudelaire e Kafka até assumir uma forma abissal em Genet.

A beleza, o mal, a prisão, a pederastia, o crime, a violência, o furto. Destas etapas progressivas chegamos à etapa final, a da solidão de uma autoconfissão que é um desafio ao desejo de homogeneidade que anima a coletividade inquieta de descobrir indivíduos anômalos em seu meio.

“Numa situação limite – escreve Sartre – o criminoso e o louco são objetos puros e sujeitos solitários; sua subjetividade arrebatada se exalta até o solipsismo a condição do celibatário absoluto no momento em que eles se reduzem para todos ao estado puro de uma mera coisa manejada, de puro ser-imóvel que não tem futuro, prisioneiros que vestimos e despimos, que alimentamos com nossas próprias mãos. De um lado, surge o sonho, o autismo, a ausência, do outro, o estado opaco de ser como uma pedra, o mero”material humano”. Quem toma consciência dessa contradição explosiva, esse sim conhecerá a verdadeira solidão, a do monstro, abortado pela natureza e refutado pela sociedade, viverá até o extremo, até o impossível, essa solidão latente larval que é a nossa e que tentamos passar em silêncio… Para descer até a solidão do único, do excluído, só existe um caminho: o do erro e do fracasso, que passam pela impotência e pelo desespero, só estaremos realmente sós quando reconhecermos que somos aos olhos dos demais meramente um objeto culpado, ao passo que a nossa consciência instintivamente não cessa de nos aprovar secretamente.” A impossibilidade de anular-se seguindo a condenação da sociedade e a impossibilidade de aceitar-se integralmente sem um sentimento de ignomínia, de exclusão e de horror tona a solidão de Genet mais trágica e insolúvel. Porque paradoxalmente ele justifica o seu direito de ser diferente, o seu direito de ser anormal, o seu direito de não ter razão diante da razão da maioria.

“Em qualquer sociedade, o culpado é sempre solitário e o solitário é culpado, não há outra forma de se assumir a solidão senão a de reivindicar seu erro e consequentemente provocar o horror. Porque a solidão é a relação social negativa, vivida no desespero e no exílio. Como Kafka, mas de forma diferente ele também diz um”não” total à sociedade – não se integra nela e mais ainda recusa-se a aceitar os seus critérios e dogmas, revelando seus sofismas e suas insinceridades.

A única forma de compreendê-lo então seria a de retirarmos a nossa máscara e nos comtemplarmos na imagem de si mesmo que ele nos ergue, uma imagem correspondente de forma diversa à nossa imagem interior velada. Através da divisão fraternal da sua angústia e do seu isolamento nós estaremos não aceitando uma escolha pessoal anômala, monstruosa, mas cristãmente assumindo a forma do próximo. Porque dentro do seu demonismo, da sua solidão, da sua defesa veemente do vício, Genet fracassa no plano civil, no plano social, vem a ser encarcerado e condenado em quase todos os países da Europa pelos quais vagabundeia como mendigo e ladrão, mas verbalmente ele triunfa; o que dele nos permanece é a sua afirmação artística:

“Minha vitória é verbal, e eu a devo à suntuosidade dos termos”. Da mesma forma que Baudelaire conseguia superar o horror da podridão da carniça em decomposição retendo a essência da beleza da amada que não se desintegraria nunca, da mesma forma que Shakespeare podia afirmar em seus sonetos que a recordação da beleza imortal do misterioso jovem ao qual dedicou tantos de seus poemas viveria imortal em seus versos evocadores da sua graça.

Genet triunfa de maneira igualmente profunda através da literatura. A sua vivência humana, trágica, solitária, monstruosa, condenada, exilada evanesce-se. A sua existência fichada nos arquivos do orfanato que o acolheu em Paris, nos arquivos da polícia, nos cárceres em que esteve recolhido dilui-se com o tempo, cessa o cidadão Genet, desaparecem as pistas legais dos processos movidos contra o criminoso, o ladrão, o pederasta Genet. Permanece unicamente a sua patética e majestosa prosa sombria, sinistra flor do mal que germina do humus negro da sua miséria, da sua maldição tenebrosa.

Tendo evocado o mito, Genet como um sacerdote que terminou de oficiar uma missa negra desaparece para ceder lugar à sua obra. É a suprema vitória do verbo que excede o seu criador e neutraliza o próprio tempo e espaço, ultrapassando a própria morte física. Abolindo a distância entre o seu mundo e o mundo que se encontrará na posteridade. Com as suas imagens de profundo satanismo, ele cria um elo ao mesmo tempo humano e literário entre a sua monstruosidade e a nossa, como que uma furtiva ternura que ele tanto ambicionara entre a vítima e o algoz.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A assunção do martírio .” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.