Büchner, Revolucionador da Dramaturgia Moderna

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1959/12/06. Aguardando revisão.

Referimo-nos anteriormente, nesta seção, ao poeta Stadler, um dos mais altos expoentes do movimento expressionista alemão. No campo teatral, essa corrente artística, tão intimamente ligada à pintura (os grupos Die Brücke - A Ponte - e Der Blaue Reiter - O Cavaleiro Azul) atinge o seu ápice com a contribuição de Georg Büchner. Nascido em Darmstadt, na Alemanha, em 1813, aos 24 anos de idade ele morre, antecedendo, com a sua complexa dramaturgia, a eclosão do Expressionismo iniciado “oficialmente” na década que precedeu a Primeira Guerra Mundial. Forçado a abandonar a Alemanha por ter participado de um complot contra o governo da sua região, e por ter publicado um panfleto revolucionário - O Mensageiro de Hessen -, que advogava em termos veementes a reunificação do Reich alemão, esse jovem e genial teatrólogo enfeixou, a par de sua magnífica criação artística, duas atividades complementares, que caracterizam a sua visão do mundo: a luta pela justiça social e pela unidade do Estado alemão. Em sua cidade natal, ele fundou uma congênere da Sociedade dos Direitos do Homem que admirara em Estrasburgo, onde fora estudar medicina: logo depois, Büchner bradando “Paz às cabanas, assalto aos palácios” lança-se temerariamente contra superestruturas sólidas, fortalecida por séculos de aquiescência e conivência, combatendo a monarquia, os privilégios da aristocracia, a tirania política e o jugo das massas pelos resquícios do feudalismo econômico-social que ainda dominava a Alemanha do seu tempo. Uma crítica moderna poderia reconhecer nele um precursor da ideia marxista da “exploração dos oprimidos pelos opressores”, no entanto, Büchner, é, ao mesmo tempo, repositório de tradições artísticas, românticas e barrocas. O seu amor universal pelo Homem de todas as épocas e latitudes, o seu idealismo social que o irmana à crença idealista do transcendentalismo americano, o reconhecimento da solidão do ser humano individual, um culto entusiasta da Natureza – eis alguns traços românticos de sua obra, que contrastam vivamente com a sua exaltação barroca do feio, do grotesco e do hediondo. Não só Goya e Bosch, na pintura, tinham evocado aspectos angustiantes da realidade, retratando a monstruosidade da crueldade humana, as facetas sórdidas e grotescas do “Homem”, lobo do Homem, mas sob o ponto de vista estético, já em pleno século XVII um autor barroco espanhol descobria que “lo feo tiene su hermosura oculta”. Büchner identifica-se com essa valoração do feio ou daquilo que Maritain denomina de “belo transcendental”:

“... Eu exijo de tudo principalmente – vida, possibilidade de existência real, uma vez obtido isto... não nos toca indagar se se trata de algo belo ou feio. A sensação de que alguma coisa tenha sido criada, alguma coisa tenha vida, transcende o Belo e o Feio e constitui o único critério válido em matéria de Arte. Aliás, essa sensação é rara: nós a encontramos em Shakespeare, nas canções do povo e algumas vezes em Goethe, todo o resto devemos jogar no fogo. Muitos querem retratadas pela Arte figuras ideais, mas tudo que vi desse tipo eram meros bonecos de pau. Esse idealismo constitui, na realidade, o desprezo mais vergonhoso pela natureza humana. Tentemos mergulhar na vida das coisas chamadas insignificantes e retratá-las nas suas pulsações interiores, nas suas vibrações sutis, na sua mímica velada e fina, quase imperceptível aos nossos sentidos... São as pessoas mais prosaicas sob a luz do sol, mas o sentimento é igual em quase todos os homens, só a crosta que a sensibilidade humana tem que atravessar é mais ou menos espessa em uns ou outros...” E ainda: “É preciso amar a humanidade para penetrar na essência individual de cada ser vivo, nada deve parecer-nos por demais insignificante, por demais hediondo: só então podemos compreendê-lo na sua substância íntima e oculta: o rosto mais opaco causa uma impressão mais profundo do que a mera percepção da Beleza...” É interessante observar como dois expoentes supremos da literatura americana, Whitman e Henry James, confirmam essa dupla universalidade: a universalidade do amor pelo ser humano de todas as condições e latitudes e a totalidade da apreensão artística, que não se restringe na sua temática nem na sua manifestação formal:

“Cada um de nós inevitável,

Cada um de nós sem limites – cada um de nós com o seu direito na terra.

Cada um de nós gozando dos benefícios eternos da terra,

Cada um de nós aqui, tão divino como o seu semelhante!”

(Whitman, Leaves of Grass)

“... Muitas pessoas dir-lhe-ão, sem pestanejar, que considerações artísticas nada tem a ver com as partes desagradáveis e”feias” da vida, dirão tantos lugares-comuns a respeito das “regiões e dos limites” da Arte que você, por sua vez, será levado a imaginar quais são as regiões e os limites da ignorância humana. Um raio celeste revela-nos que a região da Arte é toda a vida, todos os sentimentos, toda a observação, toda a visão, toda a experiência”. (H. James, The Art of Fiction)

Além do seu monumental Wozzeck, sem dúvida uma das figuras definitivas da literatura dramática universal, Büchner deixou-nos A Morte de Danton, hoje incluída no repertório de alguns dos maiores conjuntos teatrais do mundo ocidental: o Théatre National Populaire, de Jean Vilar, em Paris, e o Piccolo Teatro di Milano, sob a direção di Giórgio Strelher, na Itália, entre outros. A sua novela Lenz com a sua comédia de inspiração e atmosfera shakespeareana, Leonce e Lenas, a sua obra quantitativamente exígua, mas da mais alta inspiração no canário da dramaturgia alemã. Invocar e elaborar precoce de grande parte da temática do teatro moderno alemão, desde Wedekind a Barlach e à primeira faze de Brecht – este declarou que a representação de Wozzeck a que assistiu em Frankfurt, deu “um novo rumo” à sua inspiração e diretriz artísticas -, Büchner, no seu protesto perante a ausência de valores éticos da sociedade do seu século, no seu culto do caos, no seu naturalismo exacerbado, na sua evocação do demoníaco e do hediondo, revela-se à medida que a crítica literária aprofunda o conhecimento da sua obra, como um dos mais importantes autores da nossa era. Devido à falta de uma tradição contínua, no setor teatral alemão, os dramaturgos dessa literatura surgem como fulgurações breves e independentes uma das outras: só a partir de Büchner pode-se falar mais propriamente de uma interrelação, ainda que flexível, entre os teatrólogos alemães, não havendo interrupção na linha que une Büchner a Brecht, a Barlach, A Wedekind e, indiretamente, a Hauptmann.

Oportunamente, focalizaremos mais detidamente o seu magistral Wozzeck, em que Büchner cria um gênero novo, fragmentário, uma sucessão de cenas rápidas e incisivas, de acentuadas características naturalistas e expressionistas e extraordinário impacto dramático.

Baste-nos, neste esboço sumário dessa marcante personalidade, citar trechos da sua A Morte de Danton, que, pelo seu conteúdo autobiográfico, retratam a Weltanschauung de Büchner, veiculado pelos seus personagens, presas angustiadas de um Fao inexorável e terrível: St. Just, ao justificar a queda da aristocracia e a instituição do Reino do Terror da Revolução Francesa, declara: “... Os passos para a frente dados pela humanidade são lentos. Podemos contá-los de século em século: detrás deles erguem-se as tumbas de gerações inteiras. Chegar às invenções e aos princípios mais simples custou a vida a milhões de seres humanos... Raciocinemos de maneira rápida e sucinta: Já que todos foram criados nas mesmas condições, todos são, por conseguinte, iguais, excluindo-se as diferenças estabelecidas pela própria Natureza. Consequentemente, cada um de nós tem vantagens naturais, mas não privilégios naturais, nem o indivíduo pode lançar mão deles, nem uma classe menor ou maior da sociedade humana...”. E finalmente um breve diálogo que nos dá uma ideia das dimensões da inquietude interior de Büchner, a sua angústia metafísica, o desejo do nada e da morte, uma constante da poesia alemã: À pergunta de Phélippeaux: “O que queres?”, Danton, - por quem tantas vezes Büchner se expressa – responde: “Tranquilidade”. Phélippeaux: “Ela está em Deus”. Danton: “Em nada. Podes mergulhar em algo mais tranquilo que o nada? E se Deus é a paz suprema, então, o nada não é Deus? Mas eu sou ateu. Nós, seres humanos, somos enterrados vivos, circundados, como os reis, por três ou quatro caixões: sob o céu, em nossas casas e dentro de nossos paletós e camisas. Arranhamos durante cinquenta anos o interior da tampa do nosso esquife. Oh, quem pudera crer na destruição completa! A morte não nos traz esperança: a morte é um apodrecimento mais fácil que o resto da vida... A vida é uma putrefação mais complicada e mais organizada, eis toda a diferença...”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Büchner, Revolucionador da Dramaturgia Moderna .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.