O triste cemitério de Dalton Trevisan
“Há um cemitério de bêbados na minha cidade. Nos fundos do mercado de peixe e à margem do rio ergue-se o velho ingazeiro – ali os bêbados são felizes. A população considera-os animais sagrados e provê às suas necessidades de cachaça e peixe com pirão de farinha. No trivial contentam-se com as sobras do mercado.”
Numa praça anônima de Curitiba, os bêbados irrecuperáveis, mendigos mansos, vem morrer como os elefantes cansados da África. Feridos os animais por suas presas preciosas de marfim que os caçadores sequiosos cobiçam, derrotados os embriagados terminam ali vidas pesadas, vidas balofas que a sociedade condenou à morte. Não são mendigos filósofos à espera de Godot. São homens-elefantes com nomes brasileiros, populares e de uma ironia amarga: Cai N’água, Papa-Isca, Chico. Não brigam, só se arrastam no chão quando cai uma fruta do ingazeiro. Passam o dia cuspindo nos pardais que atormentam seus cochilos ou as noites ressonando entre o campo minado de garrafas vazias ao luar.
Os bêbador mendigos dão o título a esta nova edição de Cemitério de Elefantes de Dalton Trevisan, o maior contista do Brasil, o melhor contista possivelmente da língua portuguesa, agora que Guimarães Rosa morreu. “O vampiro de Curitiba”, como ele próprio se intitula, ataca novamente. Como os vampiros, ele se nutre de sangue alheio: as vidas alheias que ele observa de longe, sugando-lhes a essência humana trágica. Ele é o espírito do conto do mesmo nome, “condenado a estar consigo mesmo, fora do mundo”, espiando de fronte “um casarão cinzento, com janelas quadradas, defendido pelo muro faiscante de cacos de vidro”. O que Dalton Trevisan espia em profundidade, com seus olhos míopes, é um asilo de meninas pobres, eternamente famintas, espancadas pelo sadismo das mais velhas, contemplando as débeis mentais que dão gargalhadas repentinas e alimentam pombinhas para depois enfiar-lhes agulhas de tricô no peito. É o filho que desgostava a vida de Tobias: o Beto – “a medonha carinha vermelha de mongolóide” – que ajudava a mãe nos trabalhos de casa e tinha paixão por um casal de garnisés e por um vira-latas envenenado pelo fiscal da prefeitura. O Beto terno, “a cabecinha bem pequena, nariz purpurino, descalço, que silvava entre os dentes afiados um guincho selvagem”. O Beto excitado pela criadinha do vizinho que para seduzi-la balança-se de cabeça para baixo na Iaranjeira e para comunicar seu amor espreme vagalumes nas unhas para elas ficarem fosforescentes, como espreme as feridas dos sapos, babando de gozo quando delas pinga leite no jardim.
Mas o enfoque do escritor paranaense não é só uma piedade pelos desgraçados que recorda a piedade de Dostoievsky, mas sem seu senso de dramaticidade, apenas participando delas sem pesquisar duas raízes religiosas ou sociais. Como em seus outros livros, A Guerra Conjugal, Desastres do Amor, frequentememente a tragédia aparece misturada com a farsa hilariante, com a ironia e a gargalhada que dissimulam a comoção. Como em “Duas Rainhas” que é ao mesmo tempo uma obra-prima do gênero patético e do gênero humorístico, as máscaras do pronto e do riso misturadas indissoluvelmente. “Duas gorduchinhas, filhas de mãe gorda e pai magro. Não sendo gêmeas, usam vestidos iguais, de preferência encarnados e com bolinhas. Guardam bombons sob o travesseiro e de manhã o soalho está cheio de papelzinho amassado”. Rosa, “que esteve noiva duas vezes de sujeiros cadavéricos, esfomeados, atraídos por aquela montanha de doçuras gelatinosas.” E Augusta, mais moça, “engraçadinha para quem gosta de gorda.” Só momentaneamente as duas se separam, elas que “lembram duas pirâmides que andassem, afinadas no alto e grossas na base” e têm manchas pelo corpo de se chocarem nos móveis. Augusta casa-se, apesar da oposição da irmã, “o marido quase não dorme – ele transborda do leito – embevecido a vê-la roncar levemente de boca aberta.” Proporcionalmente às sus formas, as duas mulheres paquidérmicas sonham com rinocerontes, focas e hipopótamos e só conversam sobre receitas de bolo. Mas nem a lubricidade do marido de Augusta (que quando depara com Rosa sozinha investe contra ela gritando triunfalmente “Rainha das vacas!”), consegue separá-las. Augusta engole um tubo de pílulas, “mas logo sente medo e abre a porta, chamando a irmã, depois de vomitar na colcha nova.” Esquecido o marido eternamente bêbado, as duas voltam a contemplar da janela o mundo feio, povoado de gente magra, sugerindo uma à outra: “Que tal um pedacinho de goiabada?”, esquecidas de que amanhã, eternamente amanhã, é o dia sempre adiado do regime: “Contemplam-se com orgulho. Os pés bem pequenos como roscas, iguais aos pés torneados das massas antigas de jacarandá… Refesteladas, a guloseimas a derreter-se na língua, gasosas tremelicam o papo rubicundo. Não pode Augusta cruzar os joelhos senão suspendendo a perna com as duas mãos.”
Os temas obsessivos de Dalton Trevisan delineiam seus personagens e cada uma de suas histórias. A solidão, a fome de amor, o sexo reprimido, o ódio entre antigos amantes ou esposos envelhecidos, encanecidos e ensandecidos, as taras sádicas de maridos e mulheres, adúlteros e violadores de menores. Dorinha que sonha quase sempre o mesmo sonho que desperta-lhe causa horror: “Debate-se nos braços de um homem que gargalha, cínico. ‘Para trás, miserável!’. O bruto enrola os bigodes e volta à carga. Ela foge, e ele cada vez mais perto: ‘Minha, enfim!’”
“A penitência do padre é invariavelmente 5 padre-nossos e 5 ave-marias.” Dorinha, normalista feinha que morre virgem e deixa sua mãe sozinha e sem sono, até que consegue do prefeito permissão para abrir o caixão da filha para ver se ela não está molhada, enterrada em terreno alagadiço. “Os coveiros recuam, enquanto ela penteia a longa cabeleira grisalha da moça. Só então regressou em paz para casa.” Onofre, o marido velho e bêbado que se distrai espancando Sofia, velha companheira, e quando ela foge para casa da filha manda buscá-la, pois é dia de matar porco. “Escondida debaixo da carroça, ouvia-o praguejar e bater a torto e a direito com o chicote: - É uma grande sorte tua. Se não fugisse, hoje eu dava o fim da tua vida.” Pois era ela, Sofia, o porco que o velho pretendia carnear.
Dentro do estilo conciso, raramente lírico, do maravilhoso observador da vida cotidiana da pequena burguesia curitibana que reflete a condição humana mundial, Dalton Trevisan permanece fiel aos valores e ao linguajar literário-empolado desse meio social. É Dinorá, “moça do prazer”, que introduzida na prostituição por uma venerável matrona sensibilizada pela situação da órfã de quinze anos, os pais vítimas da gripe espanhola, é Dinorá que relata, num monólogo de linguajar folhetinesco, que as telenovelas preservaram no Brasil de hoje, sua sedução: “Se fosse submissa aos seus caprichos, antes que madame regressasse, jurou sua excelência que iria cobrir-me de joias da cabeça aos pés. E com os lábios impuros queria babujar minha face de alabastro. Senhor, é demais a repulsa que me inspira!”
Mas, mesmo diante de uma galeria tão extensa de contos lapidares na sua tragédia pungente, descrita com ironia, humor grotesco, ou identificação solidária, “Jantar” constitui talvez a mais difícil obra-prima, pois inspeciona no conto a mesma área que o dramaturgo inglês Harold Pinter no teatro – os vários níveis de comunicação humana, pelos silêncios tácitos, pelo fluxo de monólogos inconscientes, ou da incomunicabilidade humana, exemplificada aqui no diálogo entre pai e filho:
“Condenado à morte, devorava seu último jantar, o molho pardo a lambuzar o queixo.
- Como vão as coisas, meu filho?
Chupando a sambiquira, piscava os olhos de gozo.
- As coisas vão.
Diante dele, o bem mais precioso da terra: seu filho.
- Me passa a pimenta, Gaspar.
Logo será um homem. Meu filho. Dar-lhe conselhos: não beba água sem ferver, não beije as criadas na boca, não case antes dos trinta.”
Como um não-diálogo entre Kafka e seu pai, os interlocutores paralelamente falam de coisas diferentes, não respondem um à pergunta do outro.
Mas não no tom de nonsense do absurdo entre personagens de Ionesco: quando o pai pergunta das namoradas do filho, este se lembra só de ser estrábico e irrita-se com a pergunta, como com os arrotos do pai, enquanto este raciocina que o filho pode se dar ao luxo de pensar em namoradas e em poemas porque “graças ao meu dinheiro é que o filho tem o dom de sonhar.”
Como na própria vida cotidiana, as tragicomédias, os desentendimentos, os mistérios, os absurdos desses habitantes de um Inferno subterrâneo não têm um desfecho. Não se desenrolam no tempo. O marido sádico atormentará a mulher. A órfã de linguagem barroca será seduzida e cairá na prostituição. O mongoloide perderá aquela criada e esperará por outra. As gorduchas acumularão colesterol e gulodices comidas à janela durante todas as vésperas do dia do regime sempre adiado. O solitário José que frequenta o botequim malcheiroso e escuro, entregará depois da aliança e do relógio seus últimos haveres, sempre evitando voltar para casa. A mulher que se entrega ao amante para que o velho que a mantém observe os encontros amorosos escondido, continuará encenando os mesmos rituais de sexo.
De vez em quando, a morte interrompe a sequência: a menina que o pai, caixeiro-viajante viúvo, deixa no orfanato, é enterrada três dias antes da volta do pai. Iaiá, a louca da família tradicional que causa escândalo na cidadezinha ao casar-se com o barbeiro, encerra o martírio do marido morrendo no asilo. Para estes, talvez, foi atingido o Purgatório. Porque para os outros personagens de Trevisan, sua pena é paga fora do tempo, num ciclo cruelmente renovado cada dia: não é a prerrogativa do Inferno ser eterno?
Para o olhar do escritor e do leitor que passam de uma imagem para outra, para uma cena de horror, sofrimento, tortura e gargalhada grotesca a outra, de um conto a outro, o Inferno meramente se desloca, de um nível para outro. Um Inferno que, como o de Dante, admite nuances: tem suas regiões em que o tormento é mais ameno – o esquecimento, a frustração, a inépcia pessoal diante da vida. Assim como tem suas áreas de fogos vivos, de carnes em brasa pelo sexo alucinante e de almas consumidas pelo inferno de Sartre: “o inferno são os outros”. Fundamentalmente, porém, além dos vícios teologais – gula, cobiça, luxúria, avareza – o submundo deste transfigurador da condição humana tem toques reconhecíveis do presente imediato, do ambiente e das pessoas mais corriqueiras que nos circundam dia a dia. E para elas, em seus casulos de medo, de tristeza, de desesperança, só a mensagem contemporânea dos hippies, a crença romântica nas virtudes da flor e do amor poderia trazer conforto, restituir-lhes o aspecto humano, exumando-as de seu museu de cera e de seu cemitério de elefantes prematuramente enterrados em vida.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {O triste cemitério de Dalton Trevisan},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/02-dalton-trevisan/03-o-triste-cemiterio-de-dalton-trevisan.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1970 (s-data, por ocasião da publicação
da 2\textsuperscript{a} edição do livro Cemitério de Elefantes).
Aguardando revisão.}
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