James Baldwin (necrológio)

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1987/12/2. Aguardando revisão.

James Arthur Baldwin, o escritor e ensaísta norte-americano que morreu de câncer no estômago ontem na cidadezinha de Saint-Paul de Vence, no Sul da França, aos 63 anos de idade, foi cronologicamente o último artista negro destruído pelo racismo. O peso do preconceito duplo – contra a cor da sua pele e contra seu homossexualismo – desvirtuou seu grande talento literário, transformando-o predominantemente em um porta-voz involuntário e candente da igualdade racial. A vida pendular que escolhera morando na França desde 1945, e nos Estados Unidos, onde nascera no gueto do Harlem, contrasta com sua deliberada intenção de fixar-se nos Estados Unidos, como membro e como membro de uma minoria, portanto, duplamente escorraçado pela sociedade majoritária numericamente branca e heterossexual, no início de sua carreira. Numa das passagens autobiográficas mais comoventes de seus livros ele se interroga sobre a majestade da civilização europeia, em seus momentos supremos: que podia significar para ele a imponência das catedrais góticas, a genialidade de Shakespeare ou de Dante, um quadro de Rembrandt ou de Vermeer? Nada daquilo tinha alguma coisa a ver com a sua formação, com o seu sofrimento cotidiano, com o racismo da Klu Klux Klan e seus homens encapuzados no Sul dos Estados Unidos, a castrar e enforcar negros pelo simples fato de serem negros. Ele assume, pelo menos temporariamente, a sua condição, uma vez aprendida a lição da Europa:

“Em resumo: eu me tornara americano. Eu ingressara, tropeçara, inevitavelmente, na confusão sem fim que é tão individual e tão pública da República Americana”.

A volta, porém, fora decepcionante. Ninguém se importava que ele fosse um escritor. Ele tinha que se tornar era o arauto da discriminação sofrida pelos negros. Alguns grupos mais radicais o acusavam de “ter sido cevado pela ração branca”, referindo-se às bolsas de estudos que ele recebera de empresas como a Ford Foundation. Que outra empresa negra poderia lhe dar o mesmo apoio? James Baldwin continua tão deslocado quanto Kafka, pertencente a uma minoria judaica que fala alemão em Praga: círculos concêntricos do exílio do artista. Ele, característica de um sem número de homossexuais, identificava-se com os ensinamentos da mãe, que pregara sempre, apesar de todas as advertências cotidianas, abster-se do ódio, reconhecer no outro um irmão, fosse ele branco, amarelo, negro, índio ou mestiço. Malcolm X, em parte seguindo os ensinamentos apocalípticos de Fritz Fannon, propunha a destruição implacável dos “demônios de olhos azuis”, os brancos. Os grupos das Black Panthers (Panteras Negras) iam mais longe: a enorme fatia do Sul dos Estados Unidos pertenceria, “de direito”, a uma futura República Negra Norte-Americana, da qual seriam expulsos todos os brancos.

James Baldwin afastou-se de tais protestos que pregavam a violência: embora visse iminente, não queria participar dela. Afinal, entre seus empregos para sobreviver como garçom, operário, lavador de pratos e outros, ele conseguira aliar-se ao movimento pelos direitos civis dos negros, na década de ’60 de Martin Luther King, o esplêndido profeta de um novo sonho americano: o da igualdade racial entre todos os componentes das diversas etnias que constituem os Estados Unidos.

E na África, onde estavam suas raízes – estaria lá a reposta que ele buscava tão ansiosamente? Participar de uma Conferência Sobre Problemas Africanos aterrorizou-o. Muitas das nações africanas recém-libertadas do jugo colonialista tinham se transformado em ditaduras sangrentas de um tirano corrupto. A violência tribal dilacerava a Nigéria numa guerra civil ferozmente fratricida. E a África do Sul era uma vasta prisão para sua população negra, segregada nas praias, nos trens, nos bebedouros, nos guichês dos bancos, nos restaurantes, nos bairros. O que esperar dos árabes? Indiferença. Historicamente tinham sido eles os primeiros a reavivar a prática da escravidão dos negros, avidamente seguidos pelos portugueses, ingleses, espanhóis, todos sequiosos do lucro que a diáspora africana lhes rendia.

Havia a Négritude, com o poeta-presidente do Senegal, Léopold Senghor, o antilhano Aimé Césaire. E havia os sábios brancos como Leo Frobenius que revelavam as antigas civilizações do Benin, de Daomé, da Nigéria, à época em que a Europa ainda era um miserável amontoado de choças. Baldwin se ajustava perfeitamente à visão raramente profundo de Sartre, que distinguia o negro, como Gilberto Freire discernira no Brasil, a predominância dos valores afetivos. Quem sabe seria essa a redenção do mundo futuro, devastado pela brutalidade do homem branco?

Essa desesperada e fraterna emotividade de Baldwin, ele próprio reconheceu antes de morrer, fracassou. Talvez as futuras gerações terminem a tarefa interrompida de civilizar o ser humano em seu sentido profundo do termo. No entanto, Baldwin não se restringe a essa camisa-de-força, o binômio negro e homossexual. Em seus livros ele se refere constantemente às minorias esquecidas, os índios, os drogados, os veteranos da guerra do Vietnã. Sua preocupação com o sofrimento e a injustiça já o tinha levado precocemente, aos doze anos de idade, a focalizar o massacre dos republicanos espanhóis pelo terror franquista e o holocausto dos judeus sob a monstruosidade nazista em seus escritos adolescentes, mas já cheios de fogo e paixão.

Durante algum tempo ele equaciona como equivalentes, o racismo e o poder. Mas logo percebe que mesmo os que são pisados pelo poder carregam a mesma dose de racismo e preconceitos que as camadas dominantes. Mesmo com tantas amargas decepções, eletriza-se ao recordar o passado de seus ancestrais escravos nos Estados Unidos:

“Esse passado de cordas, de fogo, de tortura, de castração, de infanticídio, de estupro, de morte e humilhação, de medo noite e dia, de párias, de ódio e crimes”.

As frases um tanto retumbantes de que os negros não se estarreceram com as atrocidades dos campos de concentração alemães em Dachau, Auschwitz e outros, pois achavam os brancos capazes de qualquer sordidez – como se os negros fossem incapazes de sentir compaixão pelas vítimas do nazismo -, cedem, pouco a pouco, a um discernimento mais sutil. Seu contato com a França, que não tinha tido escravos em seu território, esclarece a existência de outros racismos: a França tinha suas derrotas na Indochina e na Argélia, com os “sub-humanos” vietnamitas e árabes. Não era, literalmente, os “negros” que a maioria dos franceses desprezava ostensivamente e que hoje constituem a base para o ódio racial contra os imigrantes da África do Norte de um político fascista como Le Pen na França dos dias que correm?

Panoramas que antes ele via de forma demasiado genérica adquirem nichos, nuances que ele não pensara existir anteriormente. Por exemplo: André Gide, o corajoso novelista francês que admite publicamente em seus livros escandalosos para a época seu homossexualismo, já representara os marginais da Europa bem-pensante, como Oscar Wilde, imolado pela hipocrisia da era vitoriana na Inglaterra, Baudelaire condenado pelo Ministério da Justiça por seus poemas ousados e magníficos de As Flores do Mal. Havia várias formas de ser negro na Europa também…

Encontraria refúgio na religião? Esta pergunta lhe despertava uma resposta fulminante de amargura e desencanto: “Como se os autoproclamados cristãos abandonaram o cristianismo e se a Igreja é o pior lugar para se aprender o cristianismo?”

A mutilação do talento criativo de James Baldwin fica talvez cristalinamente documentada em seu romance Giovanni’s Room, uma tentativa, que redundou em fiasco, de unir os temas do racismo e do homossexualismo. Talvez ele seja mais lembrado por seus ensaios publicados na revista New Yorker e depois reunidos em livro: Da Próxima Vez, Fogo! Não, é óbvio, que esse talento tenha sido canalizado para a frase de efeito, para o panfletarismo: nunca. É que a ferida da discriminação racial arde mais intensamente quando ele reflete sobre a “obscenidade” do preconceito de cor e se vê acossado como um animal, um tarado, sempre um estranho e um suspeito, o primeiro a ser algemado pela polícia apenas por ser negro, exatamente como no Brasil de hoje e de ontem.

É forçoso reconhecer que James Baldwin, afinal, ficou numa posição intermediária entre Richard Wright, que a princípio o protegeu e ajudou, até se desentenderem “por uma questão de choques de ponto de vista de gerações diferentes”, e Ralph Ellison, o trágico e farsesco autor de O Homem Invisível: o negro que todos os brancos fingem não existir, não ver, não reconhecer como pessoa.

A sua solidão foi a de um eterno marginal que, ao contrário de Jean Genet, a querer destroçar à sociedade que o oprime, quer uma integração de todos os seres humanos, sejam quais forem suas origens raciais e suas preferências sexuais. Como ele próprio confessou, francamente, a um entrevistador, não faz muito tempo:

“A celebridade é uma nova solidão”.

A celebridade, ele parece dizer, é a miséria presente que será festejada pela geração vindoura, como os quadros de Van Gogh disputados hoje a milhões de dólares, depois que seu atormentado e magnífico autor morreu, anônimo, paupérrimo, um suicida a mais em um remoto asilo de loucos.

Ou, exprimindo seu pensamento de outra maneira: as leis não mudam o coração dos homens. Será que a biogenética conseguirá dotar o homem moderno de um coração sem ódio?

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “James Baldwin (necrológio) .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.