Tradução do conto de Carlo Castellaneta “Uma mulher invisível” por Leo Gilson Ribeiro

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Sem data. Aguardando revisão.

O dia que a encontrei me lembro que chovia, ruas e fachadas da mesma cor de chumbo, o olho úmido do semáforo, eu caminhava na galeria em meio à multidão, um olhar distraído às vitrines, e de repente a vi. Pensei várias vezes depois na sensação que senti naquele momento: um movimento de curiosidade que crescia, ao fixá-la, até a comoção. Certamente eu não podia imaginar que a sua presença fosse obcecar-me durante um ano inteiro.

Estava envolta numa pele escura da qual emergiam as pernas mais perfeitas que eu já tivesse visto. Mas devia ter sido o rosto, ou talvez a sua expressão, a suscitar o meu interesse àquele ponto: um rosto de um encarnado como o que se vê nos quadros antigos, levemente colorido de rosa nas faces, e os lábios dispostos a um sutil trejeito como de desdém e ao mesmo tempo de desafio.

Alguém se chocou comigo, entre os que passavam, forçando-me a retomar o passo. Estava sozinha, naquele instante, e eu poderia ter-me aproximado dela, inventar um pretexto para conhecê-la. Mas nunca fui capaz de parar uma desconhecida. Ainda mais ela, que parecia com a mera força de seu olhar desencorajar qualquer propósito.

Afastei-me contra a vontade, embora estivesse certo que ela nem me tivesse notado, e não pensei nisso até a noite. Foi antes de adormecer, no momento em que desfilam na moviola os fotogramas do dia terminado que a sua imagem voltou, límpida, imperiosa, os cabelos escondidos pela boina, a pele a cingi-la em sua indiferença.

O amor não se anuncia nunca com os mesmos sintomas, no entanto, todas as experiências têm em comum esta perturbação inicial, quase como se fosse a primeira mulher com que nos deparamos. E se fosse ela a verdadeira, a definitiva, aquela pela qual tenho estado esperando sempre?

Este pensamento transformou-se numa decisão: eu devia revê-la o mais rápido possível, ser notado por ela de qualquer maneira.

Assim, poucos dias depois voltei ao centro e me misturei aos que iam e vinham. Tinha me barbeado cuidadosamente e estava usando o terno que me assentava melhor. Eu sabia que importância ela dava à elegância. Desta vez prometi a mim mesmo de chamar a atenção. Aproximando-me, eu sentia crescer as palpitações do meu coração como se fosse prestar um exame, e disso também eu tinha consciência: a de que talvez eu não tivesse outras oportunidades, aliás, esta era a última, e fosse como fosse eu tinha que me decidir a sair do anonimato, fazer-lhe um gesto, um sinal qualquer. E de chofre a vi.

Estava com duas amigas, elas também de pele, e se bem que mais jovens me parecia que realçassem mais ainda o fascínio dela, que agora eu podia verificar com frieza analítica: uma feminilidade contida, uma sensualidade distanciada, um andar que eu adivinhava esportivo, quase másculo, e no entanto, pronto a dobrar-se a ritmos voluptuosos, a beleza de mãos feitas para as carícias, surpreendidas no gesto de erguer, com indiferença, a gola da pele.

Deslizei, fugindo, entre dois casais parados na calçada e revelei-me: pareceu que me visse, talvez tivesse me reconhecido, certamente seu olhar altivo se encontrou por um instante com o meu, enquanto a multidão avançava tentando arrastá-la com ela, senti o coração escapar-me resvalando, é sempre esta sensação que o amor me provoca nos momentos de êxtase, eu estava para falar com ela quando pelas suas costas apareceu um homem.

Era alto, vestido de escuro. Enlaçou-a pintura e a levou embora.

Certos dias me invade de alegria a certeza de poder esquecê-la, de saber aceitar lhanamente a realidade, como acontece depois de um sonho inefável. Sei que você existe, eu dizia a mim mesmo, ainda que eu não possa tê-la como minha. Saía com Nora, telefonava para Elisa, algumas vezes Adriana me acompanhava à praia onde tenho uma casa. Eu as ouvia falar, depois que tínhamos nos amado, sem que nenhuma de suas palavras me causasse uma única vibração. Eu olhava para longe, pensando nela, e isto tornava mais estranha ainda a presença física das outras.

Ao despedir-me, aliás, eu media a diferença inatingível daquele modelo de mulher que eu mal vislumbrara. À noite, depois do trabalho, quantas vezes eu ficava em casa procurando nos livros uma resposta: de como um amor se revela mais incurável quanto menos for correspondido. Eu relia os românticos, de Foscolo a Flaubert, encontrando em seus desenganos um conforto para a minha frustração. Mas se é verdade que uma paixão, como uma chama, nada peça a não ser arder e extinguir-se, um grande amor se sacia no simples existir. Portanto eu a teria amado de longe, sem que ela soubesse, sem exigir nada, nem mesmo uma promessa.

Encontrei-a na primavera, quase por acaso, saindo do escritório. Ou talvez os meus passos me tenham guiado inconscientemente até o local do suplício. Trajava um vestido estampado de flores e usava um chapéu de palha, a bem dizer assim de momento não a reconheci, tão mudada me pareceu. Andando, eu conservava o jornal aberto à minha frente, trocamos um sorriso, e de repente me afastei.

Agora eu receava que ela pudesse dispor de mim conforme seus caprichos, obrigando-me quem sabe a um ato cotidiano de homenagem, uma brevíssima, muda contemplação de todos os dias, e contra isso eu me rebelava. Mas se por acaso eu me aproximava de uma bela mulher, esta me parecia no final como uma pálida imitação dela. Sinal de que ao ser amado atribuímos sempre todas as perfeições, mas sinal sobretudo de que um pouco de mistério é o requisito mais importante para qualquer fantasia amorosa.

“Você está se tornando misógino”, disse Elisa pelo telefone. “O casamento ia te fazer bem”.

No último weekend com Adriana seu perfil sobre a fronha pareceu-me óbvio, intolerável. Casei-me com Nora, que eu conhecia menos que todas, prometendo a mim mesmo de sarar logo daquela minha obsessão. É um erro que se comete frequentemente, o de desposar outra para esquecer quem nos fez sofrer.

Paguei por ele depois de alguns meses, quando me pareceu vê-la, mas noutro ponto da cidade. Deve ter mudado de emprego, pensei.

Era apenas uma semelhança, um ofuscamento momentâneo como quando se anda de automóvel pelas estradas à noite. Mas naquele instante eu estremecera, reconhecera-me como sendo ainda dela, como quando se espera, dias a fio, um telefonema que não vem. Então era melhor eu consumir até o fundo a minha fraqueza.

Voltei a encontrá-la, certa manhã. Foi em junho e nem pensei nisto: que eu pudesse revê-la seminua, já não mais ataviada com seu vestido de flores, constrangida pela sua profissão a exibir-se de mini calcinhas e soutien diante de qualquer um.

Senti-me fulminado. Seu corpo esguio, que eu apenas imaginara, estava agora ali, oferecido à curiosidade dos passantes. O instinto foi o de tirar o paletó para recobri-la de qualquer jeito. E todavia ela conservava, mesmo assim profanada, um pudor seu, inviolável, uma régia indiferença que nenhuma outra podia imitar.

Não respondeu ao meu sorriso. Fingia não me reconhecer, mas agora eu estava decidido a despedaçar qualquer protelação. Bati com o nó dos dedos na vitrina, e naquele momento uma mão pousou nas minhas costas.

Mas claro, há anos que não nos víamos, um amigo que perdera a vista, que o acaso me mandava enfrentar naquele instante errado. Murmurei uma frase qualquer formal, que ele interpretou como de prazer autêntico.

Eu podia confessar-lhe a verdade?

Acabou me arrastando para um bar.

Eu deveria tê-lo matado, me libertado dele imediatamente, porque não teria tido mais força para comparecer de novo diante dela.

Escrevi-lhe duas vezes, nos últimos meses, enderençando ao grande magasin. As cartas me foram restituídas, estando destituídas dos dados genéricos necessários para serem entregues. Aí voltei a procurá-la, vencendo a minha hesitação, mas não estava mais no lugar de costume. Pedi notícias dela.

Dizem que a mandaram para outro lugar, ninguém sabe onde seja.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Tradução do conto de Carlo Castellaneta ‘Uma mulher invisível’ por Leo Gilson Ribeiro .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.