Gore Vidal: um gay peso pesado
Você é homossexual?
Gore Vidal, o escritor norte-americano, compilou uma Antologia de Literatura Gay em seu livro recém-massacrado pela tradução brasileira: De Fato e de Ficção, Editora Companhia das Letras.
Você acha que os Estados Unidos são uma plutocracia, com tentáculos mundiais, onde os super ricos controlam a Nação inteira? Gore Vidal, sem pertencer à linha balalaika-rumba dos adoradores da Uniao Soviética, "a primeira pátria do socialismo", nem prostrar-se servilmente diante das baforadas machistas do charuto de Fidel Castro, arrasa com o "Sistema" norte- americano quase tanto quanto os bombardeios aliados ao deixarem Berlim em ruinas.
Você gosta de uma prosa inteligente, lúcida, mas frequentemente hilariante e exagerada quase até ser paranoica?
Gore Vidal etc. etc.
Primeiro autor dos Estados Unidos a abordar clara e deliberadamente o tema tabu do homossexualismo em seu livro The City and the Pillar, Gore Vidal não é aceito por muitos críticos "sérios", acadêmicos, dos que transformam qualquer vírgula de uma novela escrita por um romancista negro em uma interjeição militante contra o racismo branco. Gore Vidal dardeja vitríolo por todos os poros de sua prosa cintilante, considerada "rasa" ou "panfletária" pelos que consideram sinônimos os termos "homossexual", "débil mental" e "superficial".
Seu veneno de ironia napâlmica lhe conquista legiões de inimigos cada vez que escreve um artigo, dá um telefonema, concede uma entrevista ou publica uma resenha literária. As universidades? São uma indústria acadêmica a fabricar, a todo vapor, diplomas sobre a simbologia frágil dos nomes de cada personagem de Scott Fitzgerald ou a robustez taurina de Hemingway. Ele crê que batalhões de professores são bem pagos apenas para ler e interpretar o que vem escrito nas caixas de cereais e escrever dissertações sobre os rumos da “cultura popular” dos Estados Unidos.
Os intelectuais norte-americanos? Com raras exceções são blefes pedantes, preconceituosos narcisos que nunca saem do atoleiro de não saberem se conseguirão escrever a segunda Grande Novela Norte-Americana.
Hemingway? Uma demonstração de que os Estados Unidos não têm senso de humor: produzir "Isso" e não achar graça, mas ao contrário endeusar sua mediocridade ovante? O próprio Fitzgerald considerava Por Quem os Sinos Dobram tão vazio quanto Rebecca. Zelda, antes de enlouquecer, já achara os escritos de Hemingway "duvidosos como um cheque sem fundos". Descartáveis Adeus às Armas, O Sol Também se Levanta. Touradas, impotência e arrotos de virilidade alcoólica.
O próprio Scott Fitzgerald, preocupadíssimo com as dimensões de sua anatomia íntima, descarregava sobre os fairies e as "castas inferiores" como "a negrada". Embriagado com o "cheiro do dinheiro" que exalam os ricos, dá aos americanos da classe média a impressão de que aquele lado do Paraíso existe, encarapitado em cima de diamantes do tamanho de hotel Ritz.
O cinema? Não pode ser considerado uma arte “se é que uma atividade coletiva pode ser considerada uma arte”. A Metro Goldwyn Mayer é o trator-máquina registradora que trucida talentos literários para ganhar lucros crescentes e nunca derrapar na área dos assuntos inabordáveis todos os que são importantes para a vida humana.
A Metro tem seu papa, seus cardeais e seus santos milagrosos adorados pelas massas, os "astros e "estrelas" e seu ritual ruge na tela como os leões que devoravam os cristãos no Coliseu romano.
A Coca-Cola? A grande contribuição da Georgia para a civilização mundial. O alcoolismo? O refúgio e tumba de escritores que se suicidam garrafa a garrafa como Faulkner e Jack London, incapazes de aderir à American Way de mediocridade aplastante, imbecilizada e tornada dócil pela televisão. E acrescenta como martelada final no caixão dos intelectuais americanos: só 5% da população lê um tipo de literatura que não seja lixo.
A literatura americana? Caracteriza-se pela falta de sentido e, portanto, no seu âmbito "a burrice - quando suficientemente sincera e autêntica - é profundamente reverenciada e facilmente executada. Daí, Gore Vidal parte para uma vigorosa, digníssima defesa da integridade e coerência de um grande crítico como Edmund Wilson. Independente de "clãs" acadêmicas ou editoriais, a Edmund Wilson cabe a gratidão de ter vencido sua dúvida de que um homossexual (Gore Vidal usa outra palavra) pudesse ser um artista de primeira linha. Da mesma forma superou sua relutância em admirar o esplendor de Marcel Proust e ensarilhou sua erudição e seu caráter sem rachaduras contra a guerra santa lançada contra Thornton Wilder quando se soube (Gore Vidal diz quem o fez) de suas verdadeiras tendências eróticas. Fecha-se a cortina sobre os enormes sucessos teatrais das peças Nossa Por um Triz: aquela que o escritor inglês Cristopher Isherwood rotulara, candente, de "ditadura heterossexual" liquida Thornton Wilder. Como já assestara suas baterias letais contra Tennessee Williams, lembra Vidal Diga-se a favor de Wilson que ele foi capaz de superar seu horror homofóbico (no original o termo é mais explícito para fazer justiça a um contemporâneo notável."
Aqui, me parece, começa a despontar uma obsessão de Gore Vidal com a sexualidade minoritária que o leva a colocar como quase gênio um autor limitado como Christopher Isherwood, por ter pertencido a essa minoria e ido morar em Berlim antes que Hitler conseguisse o pogrom que levou para os campos de concentração milhares e milhares de homossexuais. Nesse passo, acabaremos por achar que Somerset Maugham, integrante da equipe, é um autor "profundo". E a admirar Jean Cocteau, provavelmente um dos mais tolos homme de lettres que Paris já glorificou por esnobismo prét-à-porter.
A justiça leva, creio, a reconhecer que Gore Vidal tem razão em sua litania de ódio contra os crimes perpetrados contra as minorias e seu réquiem sombrio pela estupidez e desumanidade do homem para com o seu próximo, seja qual for a cor da sua epiderme, sua vida pessoal, sua religião, sua condição feminina. Mas só um critério muito subjetivo levaria a desprezar E. M. Forster (autor de Passagem para a Índia e Howards End) por certos caprichos pretensamente tolos, quando sua prosa e sua posição decidida contra o nazismo são tão admiráveis. Aí se aplicaria com propriedade a advertência que Gore Vidal faz a Edmund Wilson e sua sobranceira hombridade.
“É preciso que sejamos capazes de separar o que é bom do que é ruim, o que é de primeira do que é de segunda. Se não for assim, não deveremos escrever nenhum trabalho de crítica literária". Em outras palavras: a literatura perene não é uma corrida entre Oscar Wilde, que era, e Tolstói, que não era. Nem Marlowe, por ter sido, escreveu um Fausto superior ao de Goethe, que dedilhava hexâmetros nas costas das dezenas de mulheres que teve, em Roma, na Alemanha, em Florença etc.
Há 28 anos Gore Vidal luta ferozmente com o Rabino Mor dos Ultra-Conservadores de extrema direita, Norman Podhoretz, chegando à paranoia de englobar todos os judeus na vala comum dos preservadores do status quo. Os judeus é que controlam tudo", são "a quinta-coluna de Israel, nação que em sua opinião não deveria nem existir, "os judeus não têm pátria, são sempre hóspedes do país em que nascem. e vivem".
Começa a desenhar-se na mente do leitor um longínquo perfil de Hitler diante de tais acusações genéricas e elas se tornam incompreensíveis quando o genocídio nazista massacrou tanto os judeus quanto os que levavam a pecha de "mancharem a pureza do sangue arlano alemão", De novo não é possível fazer uma corrida de obstáculos entre a estrela de David em Dachau e Auschwitz e os porta dores na lapela do triângulo cor-de-rosa. A sanha de Gore Vidal contra o Velho Testamento e sua condenação do "ato nefando" o faz investir contra São Paulo, realmente um judeu convertido ao Cristianismo, realmente o mais feroz inimigo da mulher e dos desviados da procriação.
Felizmente, ele se acalma para reconhecer, lucidamente, que Jesus Cristo nunca se preocupou com os sodomitas e que erros de tradução do hebraico levaram a confundir perversão sacrílega contra anjos vindos do céu com "falta de hospitalidade", o mal que arrasou as Hiroshima e Nagasaki da Bíblia, Sodoma e Gomorra
Mas, novamente brota uma pergunta: o que fazer com Allen Ginsberg e suas declarações ousadas à revista Playboy, quando confessa que se foi colocando literalmente na condição da mulher no coito que ele aprendeu toda a tragédia da escravização e submissão da mulher ao machista egoísta, cruel e insensível? Ginsberg, judeu, pederasta, como se sói dizer, permanece aliado das feministas, diga Gore Vidal o que quiser contra os judeus: Ginsberg lamenta e denuncia, como ele, que os Estados Unidos não tenham aprovado a Emenda de Direitos Iguais para homens e mulheres, o ERA (Equal Rights Amendment, em inglês).
Haverá quem se perturbe com os mexericos "típicos de maricas" sobre o fascínio que o ator Errol Flynn sentiu pelo quase adolescente autor sulista, Truman Capote. Quem se estarreça com as "fofocas" a respeito das drogas e hipocondria de Tennessee Williams, sua vaidade extrema e suas mulheres-monstro, como Vidal as chama: a mãe, a atriz Anna Magnani, a magnífica romancista Carson McCullers, retratada aqui como uma espécie de gata miando sempre "Você viu a minha peça, honey? Será que vou ganhar o Prêmio Pulitzer, querido?".
Esse disse-me-disse literário não empana a pujança deste livro, com seus defeitos de ira, às vezes irracional: Gore Vidal escreve de forma hilariante e no original tem um estilo complexo quando escreve ficção, documentada, erudita, requintada, mesmo sem ser um Henry James. Vivendo voluntariamente fora dos Estados Unidos há muitos anos, em Roma, Vidal nada perdeu da sua fúria iconoclasta e saudável. Ele se torna luminoso quando desfaz o mito de Rousseau de que o homem é naturalmente bom e a sociedade é que o perverte: não, adverte, atentemos para o lado escuro, sombrio, da maldade humana, com todas as suas ramificações: maledicência, inveja, despeito, mentira, egoísmo, indiferença, intriga, loucura, tirania.
A semente mais recôndita da personalidade de Gore Vidal não é de esquerda, na gradação política convencional é anárquica, libertária, equidistante dos crimes do capitalismo e seus milhões de dólares construídos sobre cadáveres ou populações exploradas até o mais fundo da miséria, como a selvageria em estado de pura podridão como no Brasil das oligarquias imóveis, cegas, surdas e assassinas.
Por último: a Editora Companhia das Letras, tudo indica, veio para trazer uma contribuição de grande importância para o leitor brasileiro. De três livros traduzidos, dois são de leitura miraculosamente enriquecedora. No entanto, a tradução brasileira mutila de tal modo essa riqueza, a dilapida de forma tão estúpida e irresponsável que se chega ao cúmulo de imprimir, com a conivência de uma revisão adormecida, que o filme The Barretts of Wimpole Street se chama "Os Barretes da Rua Wimpole". Ora, os Barretts, sem barretadas nem bonés para encobrir longas orelhas de asno, são simplesmente a família da qual provinha a poetisa inglesa da época vitoriana, Elizabeth Barrett. Depois de se casar com o poeta inglês Robert Browning tornou-se a mundialmente famosa sonetista de amor Elizabeth Barrett Browning. (Seus Sonnets from the Portuguese, será que o tradutor ou tradutora vertería como "Só Netos da Portuguesada"?).
Finalmente: este livro polêmico, devastador, delicia o leitor entre maravilhado e aterrorizado em sua montanha russa de especulações que fazem pensar, produto de importação urgentemente necessária no Brasil de nossos dias. E por que não acrescentar notas de pé de página para que o leitor de menos de 50 anos saiba que Guy Madison foi um meteórico ator de Hollywood, de uma beleza apolínea, além de outras citações situadas em contextos estritamente literários, europeus ou norte-americanos, ou de época, ou de História?
Contratando tradutores menos ineptos ou menos corruptos, as editoras brasileiras deixarão de enveredar pelo caminho contraproducente de publicar livros tão importantes como este ou o de Edmund Wilson, Rumo à Estação Finlândia, e em parte fraudar o público de todo o saldo de inteligência e cultura a que tem direito. Nem o leitor nem o autor estrangeiro têm como se defender ao se defrontarem com um produto cultural de ótima concepção e execução no original mas perecível em mãos idiotas senão irresponsavelmente dolosas. Ou o livro, seja de criação ficcional ou factual, não fecunda nossa interpretação da sociedade e da época em que vivemos?
Fora esses senões imperdoáveis, Deus salve a democracia que permite a um dissidente coerente e colérico o direito constitucional de ter uma opinião e externá-la, sem patrulhamentos ideológicos, religiosos, governamentais, militares ou do big business ou Cosa Nostra, pais e mães da execrável censura. E bem-vindo seja Gore Vidal com sua sutil ou rude franqueza, franco-atirador da causa da justiça, da verdade, um apanhador no campo de centeio esplêndido em sua quase solitária batalha em prol da Liberdade.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Gore Vidal: um gay peso pesado},
booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {12},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/06-eua/00-gore-vidal-um-gay-peso-pesado.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1987/02/14. Aguardando revisão.}
}