A musa trágica

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Inédito, Sem data. Aguardando revisão.

Só em 1930 a Universidade de Harvard, primeira fundada nos EUA, inaugurou cursos independentes de literatura americana.

Já tinham surgido W. Whitman, M. Twain, H. Melville, N. Hawthorne, E. Dickison, S. Lewis (ganhador do prêmio Nobel em 1930 com seu romance Babbit).

Distinção fundamental com relação à literatura francesa: esta tem escolas, prestígio, academias, salons intelectuais em rádios, Tvs, jornais; nos EUA o escritor é solitário.

Duas correntes alternadas: o escritor que confirma a sua americanidade e o que protesta contra “o pesadelo com ar condicionado” de Henry Miller. São os free lancers, the lonely wolfes entre regionalismo e cosmopolitismo de déracinés, caso talvez único na história das literaturas de gerações inteiras desenraizadas. A geração perdida de F. S. Fitzgerald, J. Dos Passos, G. Stein e E. Hemingway.

A Revolução Americana precede o Enciclopedismo e a Revolução Francesa e Brasileira; e a Guerra de Secessão divide, segundo Montesquieu: uma sociedade baseada na virtude (Lincoln) e outra baseada na honra (o Sul). Um conceito aristocrático e um conceito democrático. Depois: triunfo dos ideais burgueses e materialistas com isolamento e revolta dos artistas paralelamente à Europa.

A partir da Primeira Guerra Mundial, os EUA e a Europa ficam indissoluvelmente unidos. Esse periodo corresponde à exploração imperialista colonial francesa e inglesa na África.

Ocorre o desbravamento do Oeste nos EUA em meados de 1830. No Brasil ainda não tivemos essa conquista, só iniciada em 1960 com a fundação de Brasília e a estrada Belém-Brasília.

A Revolução Industrial levaria os EUA ao apogeu industrial mundial.

Caracerizam a literatura americana: a formação religiosa. Os puritanos exigem a purificação da religião contra a Igreja Católica e contra os excessos da Reforma e austeridade e supressão das autoridades episcopais. O puritanismo sublinhava a necessidade de sofrimento de renúncia e acentuava o mal, a maldição do pecado e a dificuldade da salvação e da redenção. Baseados na Bíblia dedicavam-se à conquista e à catequese dos índios. Os sermões e os tratados religiosos pios e edificantes produzem um exame de consciência que substitui a confissão católica. Isso desembocaria na conferência, sermão laico, gênero americano por excelência.

Ligado ao fato religioso há o fato colonial: daí a relação dupla com as origens europeias: aproximação nostálgica e repulsa. O isolacionismo do partido republicano no Middle West e o cosmopolitismo do Leste.

Dotado de meios financeiros bastante amplos para não precisar dedicar-se a ganhar a vida com outras ocupações a não ser a literatura, Henry James pode votar-se inteiramente à literatura, que cultivou durante cinquenta anos, prolífico, sem nunca chegar a um best-seller. No entanto, mantinha-se praticamente com o que escrevia em revistas literárias. Seu estilo descreve uma parábola: de claro e fresco no início passa a quase barroco e complexo no final.

Seu ideal, embora radicado em um contexto social, é sempre estético, refinado, atendo-se às regras éticas do convívio humano. A literatura documentava a parte da história que não se encotra nos manuais de história - a vida interior da sociedade, a literatura é o grande repositório da vida, precedendo Proust e sendo fiel a Shakespeare: a literatura ergue um espelho perante o ser humano refletindo-o em sua totalidade.

Um dos primeiros grandes realistas de intuição psicológica mais sutil e mais complexo que seus predecessores russos I. Turgeniev, L. Tolstoi e F. Dostoiévski. O crítico R. P. Blackmur o equiparou a uma espécie de Shakespeare da novela: profundo, inovador, estilista requintado, abrangendo todo o panorama da sua época, mas de forma mais arguta e profunda do que H. de Balzac e mais ampla do que G. Flaubert. Como Shakespeare que produzira três grandes tragédias – Lear, Othello e Macbeth, ele no final do século passado e início deste criou três grandes obras-primas: The Ambassadors, The Wings of the Dove e The Golden Bowl.

Foi o primeiro a criar a novela cosmopolita em inglês estudando a par do deslumbramento do meio cultural europeu a sua profunda decadência moral em conflito com as frágeis heroínas americanas como Isabel Archer de The portrait of a Lady defrontando-se com a sua pureza e a sua inocência um mundo sórdido e degenerado. Estabeleceu a primeira comunidade literária atlântica entre o Novo e o Velho Mundo, quando a Europa ainda considerava a América como terra dos índios, de Fenimore Cooper, dos búfalos do Oeste e das conquistas territoriais e quando a América por sua vez estava demasiado ocupada forjando grandes fortunas, criando estradas de ferros continentais, anexando 1/3 do território mexicano e recebendo cinquenta milhões de imigrantes europeus. Sua carreira literária vai desde os últimos dias da Guerra de Secessão americana (1865-1870) até a metade da Primeira Guerra Mundial quando renuncia à cidadania americana passando a ser súdito britânico, isolado que vivera desde a adolescência dos Estados Unidos.

Tinha sido precedido de certa forma por Melville, autor de Moby Dick, com o seu espírito de aventura cosmopolita, isolado do regionalismo americano. Com menos de seis meses levado para a Europa desde criança, criado na França, na Suiça e em Londres. Tinha um avô irlandês que fizera fortuna nos EUA, um pai visionário religioso que seguia a influência de E. Swendenborg e de W. Blake. Seu irmão mais velho, William James, foi o primeiro filósofo americano do pragmatismo.

Criado por tutores e govertantes e sempre tendo a educação livre complementada pelos melhores museus e salas de concerto da Europa: mundo ambivalente: nativo americano e europeu por educação. Quase bilíngue já adolescente conhece tanto os mais importantes autores ingleses como os franceses.

Durante breve regresso aos EUA sofre um acidente misterioso ao qual se refere como “the obscure hurt” (um ferimento obscuro) e que muitos críticos interpretam como uma mutilação sexual que ecoaria em vários símbolos freudianos de seus livros – e a quase ausência de cenas eróticas ou de amor plenamente realizado.

Aos 22 anos já abandona a Faculdade de Direito da Universidade de Harvard onde o pai queria que ele estudasse, pois um conto seu é aceito pela revista Atlantic Monthly (1865). Outras revistas se abrem para as suas colaborações daí por diante.

William Dean Howells o escritor seu contemporâneo passa a encorajá-lo entregando-lhe resenhas de livros e publicando suas histórias com frequência. Mas o grande público e os críticos conformistas e míopes distanciavam-se dele porque as suas não eram histórias “de ação”, era ação interior, mais sutil, continham reflexões profundas sobre o comportamento humano. Nunca foi um autor “popular”.

Até que em 1870 volta definitivamente à Europa, aos 26 anos de idade. Na Europa ele capta o clima central de todas as suas novelas: o desenraizamento dos americanos em viagem ou em residência permanente fora dos Estados Unidos. A ambivalência da Europa: a cultura, a arte, a vitalidade artística e a corrupção das altas sociedades de Paris, de Roma, de Londres dispostas não só a manter um status quo social, como dispostas a qualquer sacrifício em prol de bens materiais de conforto, de segurança monetária, de bem-estar, de luxo. A tradição secular da cultura contrastando com a absoluta falta de tradição cultural dos Estados Unidos, de florestas não desvendadas ainda pelo homem, o solo europeu fertilizado por milênios de covilização. Mas o homem americano sem simplificações absurdas constituía a inocência, a ingenuidade diante daquele mundo complexo sem distorções atuais de governos e de Wall Street ou Pentâgono.

E como Balzac, como os naturalistas franceses ele seria um escritor urbano voluntariamente limitando sua geografia a três capitais europeias: Roma, Paris, Londres e às cidades de Boston e Nova York no Novo Mundo, só brevemente menciona Veneza e Florença. Não se interessou nem pela Espanha nem pela Grécia nem pela Holanda. Execrava a Alemanha e desconhecia o resto do mundo não por ignorância ou altivez mas por querer como o grande artista Goethe concentrar-se para produzir melhor.

Este tema americano surge simbolicamente em sua primeira novela Roderick Hudson. A história de um pintor americano que sucumbe à sua paixão por uma bela mulher em Roma, da mesma forma que Hawthorne descerera em The Marble Faun retratar a luta entre os ideais puritanos de culpa e de ascese e os ideais pagãos de Roma epicurista do prazer e da amoralidade. De certa forma Henry James encarna, mas de forma muito mais branda, a mesma não integração de Kafka, flutuando sobre várias sociedades sem pertencer a nenhuma delas nem ser reivindicado por nenhuma delas a não ser mais tarde, depois de sua morte… Inglaterra e Eua o disputam seriamente como uma das suas glórias supremas.

Passou então a escrever mensalmente para grandes revistas e dedicar seu tempo às viagens, ao lazer, à observação e sobretudo à literatura, como Proust culto ao sacerdócio do escrever, banindo a própria experiência vivida em prol do escrever.

Em 1875 estabelece-se em Paris travando conhecimento com Turgueniev. Importante porque aprendeu a importância quase absoluta dos personagens não do enredo ou do ambiente – tudo decorre dos personagens: conceito “orgânico” da novela que deriva, flui dos seus protagonistas que no seu decurso passam a viver os seus dramas, dentro de certo determinismo psicológico: certas reações e predisposições de um indivíduo produzirão em certos meios efeitos previsíveis embora Henry James seja demasiado sutil para utilizar um conceito freudiano rígido ou pseudo científico na criação das suas histórias. Mas ao contrário das novelas russas: seus personagens passaram a subordinar, a controlar as suas emoções e as suas paixões ao seu intelecto.

Exemplo frisante: em Dostoiévski, nos Irmãos Karamazof, Katia decepa a mão para provar seu amor. Isabel Archer descobrindo a consiração sombria entre seu marido e sua amante francesa aceita estoicamente seu destino fiel a um ideal ético inabalável mesmo diante do desencanto.

Através deTurgueniev conheceu Flaubert, Zola, os irmãos Goncourt, Daudet e Maupassant.

Logo concluiu que se a literatura que se produzia na Nova Inglaterra nos EUA era provinciana, a de Paris tinha horizontes chauvinistas muito limitados e não era autenticamente cosmopolita, mas apenas parisiense, francesa sem a amplitude que ele e Turgueniev ambicionavam para a literatura contemporânea: nenhum deles por exemplo conhecia Inglês ou qualquer outra língua fora o Francês.

Depois de um ano em Paris passou a viver definitivamente em Londres, cruzando o Canal da Mancha. Um ano depois sera célebre na América e na Inglaterra com a publicação de Daisy Miller. Parte essencial do seu aprendizado literário que culminaria com a publicação de The Portrait of a Lady.

No segundo período ele abandona o tema internacional e se dedica a novelas sociais, naturalistas e do seu imenso fracasso como escritor de Th (?).

Finalmente, no período final, chamado de “the major phase”, durante quatro anos escreve três obras-primas: The Ambassadors, The Wings of the Dove e The Golden Bowl.

Mas ao focalizar famílias ricas americanas percorrendo museus da Europa, buscando contato com a nobreza europeia como seres perdidos num mundo muito mais complexo e mais sutil do que o dos Estados Unidos Henry James cimentava uma fama relativa como sendo o “autor do mito americano-europeu” e como Lorca se rebelava ao ser classificado somente como o poeta dos temas ciganos populares ele também cessou por um tempo de fornecer aos editores de revistas literárias dos EUA o tipo de história que uma elite nos EUA e na Inglaterra preferia entre todas as suas produções: moças inglesas da alta nobreza que se casam com americanos somente por dinheiro. Daisy Miller a moça americana que choca a sociedade romana com a sua ingenuidade, a sua liberdade e que entra em conflito com uma mescla de valores totalmente diversa da sua.

Mas até então Henry James tomara o seu tema central como motivo para observações de fina ironia e sutil comicidade com tons leves de graça, de espírito de observação aguda. Os americanos sem profundidade cultural, sem compreender os valores trágicos da cultura europeia, que se sentiam perdidos, incompreendidos, não aceitos na Europa, desprezados e utilizados meramente como fontes de renda bastante úteis para economias periclitantes individuais e nacionais.

Mas ao lado dessa fama relativa ele começava a acumular o ódio de nacionalistas ultra-ufanistas dos Estados Unidos que olhavam com suspeita seu exílio voluntário, que liam com revolta suas afirmações de que os Estados Unidos não possuiam uma grande literatura ainda porque não tinham ainda grandes instituições culturais, grandes eventos históricos nacionais, grandes tradições artístics ou de cultura.

“Nos EUA, não há grandes coisas para um escritor contemplar, exceto as florestas e os grandes rios, a vida não é minimamente espetacular, a sociedade não é brilhante, o país está dedicado a uma imensa prosperidade material, a uma atividade burguesa e doméstica intensa, à difusão da educação primária e ao gozo dos luxos e prazeres cotidianos”.

O escritor americado segundo Henry James não dispunha do sedimento da civilização que precede a criação da grande literatura, na Inglaterra que ele citava como exemplo a corte, a Igreja, a sociedade, a nobreza etc. foram tachadas de antidemocráticas. As suas comparações tão verdadeiras quanto contundentes e o espírito isolacionista que está sempre latente ao lado do espírito cosmopolita dos Estados Unidos – um senador Mac Carthy opondo-se a um Kennedy, um Goldwater opondo-se a um Roosevelt – manifestou-se violentamente, considerando-o um “estrangeirado” e sem discernir entre o amor que Henry James devotava aos Estados Unidos e a admiração puramente intelectual que sentir pela Europa.

E encerrando a série que se iniciara com Daisy Miller ele passa férias na Itália, procedento à elaboração lenta da sua primeira obra madura e perfeita: The Portrait of a Lady – conceito de uma jovem senhora defrontando-se com o seu destino.

Comparada a estrutura desse livro com a de uma catedral, sob um ponto de vista arquitetônico, partindo da arquitrave fundamental, nada original nem demasiado ampla: uma rica herdeira americana – já em Washington Square tema das herdeiras – um caça dotes e sua amante inescrupulosa. Inspirada na própria prima Mary Temple que morreu jovem e cheia de vitalidade, sua heroína, Isabel Archer, é dotada das virtudes dos inocentes: a coragem, a generosidade, a confiança e a inexperiência.

Deslumbrada pela Europa e pela aparência de refinamento de um jovem artista americano que mora em Florença há anos, ela cai vítima da armadilha qe constitui o ponto central do mundo de Henry James: a traição entre os seres humanos. A falta de escrúpulos dos vulgares e ambiciosos que sacrificam os puros, os intocados ainda pela raiz sombria do mal. Na sua novela do último período – The Wings of the Dove – a heroína Milly Theale também sucumbe imolada, mas só escapa ao seu destino de traição através da morte prematura. Não há escapatória para os seres sensíveis fora a morte ou o exílio diante da traição onipresente. Diametralmente oposto à visão “americana” do otimismo de happy end que Hollywood e a propaganda comercial mostrariam como “a atitude americana perante a vida” Henry James revela ao contrário o lado trágico da experiência americana. Não, porém, como os autores críticos da sociedade americana nos seus aspectos de injustiça social, de falta de valores culturais e artísticos de avassalador materialismo e avassaladora vulgaridade. Ela não revela aquela quebra entre o ideal americano de Jefferson, de Lincoln, de Washington, de uma sociedade livre, justa, nova e a decepção do big business da predominância de critérios puramente grosseiros e materialistas que destruiriam o sonho amaricano (como em Edward Albee). Henry James ia mais profundamente na sua análise e diagnosticava através da experiência da desilusão americana uma desilusão intrinsecamente humana, expressa só formalmente no seu aspecto americano. E longe de formular uma antítese primária ingênua entre os inocentes que seriam sempre americanos e os corruptos inescrupulosos que seriam sempre europeus ele transforma os americanos também em instrumentos da traição utilizados pelos planejadores europeus aliados na sinistra traição e destruição dos americanos inocentes. Já desde a sua primeira novela publicada ele trata obsessivamente do tema da traição: um chantagista que quer vender segredos de um terceiro em “The Portrait of a Lady” a heroína é traída por uma conhecida, em The Wings of the Dove pela melhor amiga até chegarmos ao labirinto de traições complexas das novelas finais.

Isabel Archer é uma herdeira que recusa ser absorvida pela nobreza inglesa porque romanticamente busca uma liberdade pessoal mesmo dentro do casamento, recusa também um cortejador americano singelo e sincero para cair vítima justamente da cilada armada pela sua melhor amiga, Madame Merle, que a introduz na órbita de seu belo amante, um escultor americano medíocre que vive em Florença e que se apodera dela como colecionava objetos de arte e ela paga o preço das suas quimeras românticas tornando-se meramente um instrumento nas mãos dos dois amantes malignos. Isabel Archer sacrifica-se em benifício da filha que o marido e a amante tiveram e diante da qual ela sente uma obrigação ética que a impede de abandoná-la.

Isabel Archer passa então a simbolizar o encontro do Novo Mundo onde se constuiria uma nova sociedade com as duras verdades que o Velho Mundo já conhecia o do desencanto perante o qual cede o otimismo juvenil à traição que coroa sombriamente a confiança.

Depois segue-se o período da indiferença do público com relação às experiências literárias de Henry James. Seu fracasso retumbante no teatro ao escrever duas peças que foram vaiadas em cena aberta. Isolando-se cada vez mais na casa rural que adquirira na Ingaterra com os resultados de sua atividade de escritor ele passa um período de cinco ou seis anos elaborando histórias de horror que têm por tema fundamental um tema semelhante ao da traição: o da perversão da infância e da adolescência.

A mais célebre e a mais perfeita destas histórias de fantasmas é sem dúvida The Turn of the Screw e que passaria a ser sua obra mais famosa com o grande público e objeto de ardentes discussões quanto à sua interpretação crítica correta.

Mas como escritor refinado ele jamais desce ao nível de criar histórias que derivem o seu horror de crimes sanguinários, de cadáveres e castelos sombrios, de portas secretas e de Frankesteins emergindo dentro da noite. Para Henry James a existência dos fantasmas é também diurna sem artifícios, sem atmosferas especiais e o mistério surgindo assim em meio às coisas triviais torna-se profunda e perigosamente intensificado.

A história é linear e fascinante: junto à lareira depois do jantar um grupo de pessoas conversa sobre casos impressionantes que se relacionam com os mundo sobrenatural, com o mundo dos fantasmas. Um dos interlocutores relata então uma história que significa “dar uma volta a mais no parafuso” isto é intensificar o horror que a história dos fantasmas cria em quem a lê ou ouve.

A narrativa passa então a ser descrita por uma governante que, filha de um pastor protestante pobre da zona rural da Inglaterra, responde a um anúncio publicado num jornal de Londres para cuidar de duas crianças orfãs e entregues a um tutor que não pode se encarregar de sua educação embora nada falte materialmente para seu conforto.

Profundamente impressionada com o encanto de homem cosmopolita do seu futuro empregador ela aceita a responsabilidade e parte para a mansão no interior do país onde as crianças, uma menina e um menino de menos de dez anos, serão educados por ela.

O menino tinha sido expulso do internato por motivos que não ficam claros, mas que se presume tenham um fundo de perversão sexual. A governanta que a precedera morrera, em circunstâncias também não esclarecidas e ela se encontra sozinha com a criada que é boa, ingênua, ignorante e as crianças que lhe parecem encantadoras e inocentes.

Decorrem alguns dias, semanas da sua permanência naquela casa imensa e isolada até que no fim de uma tarde clara de outono ela percebe sobre a muralha que separava o jardim da rua o rosto de um homem de cabelos e barbas vermelha que ela não sabe quem é e que a inquieta profundamente. Voltando a vê-lo noutra ocasião mais de perto – ele tinha um rosto melancôlico e usava roupas elegantes mas já gastas ela percebe que ele estava procurando alguém na casa até desaparecer sem deixar vestígio de sua breve passagem. Indagando a criada quem poderia ser aquele empregado que ela ainda não conhecia vem a saber pela descrição que sua imagem corresponde a do mordomo que quando ia ser despedido por iniciar o menino em jogos perversos foi encontrado morto sobre o gelo à entrada de um bar de péssima reputação. Daí a alguns dias, de manhã, quando a menina está construindo castelos de areia à beira do lago, enquanto ela costura, a governante sente a presença de uma terceira pessoa na outra margem do lago: é uma mulher vestida de preto, pálida, triste e aterrorizante: a governante que a precedera! E num clímax de horror ela compreende pela primeira vez que as crianças também – que ela quisera tanto proteger das visões aterradoras – vêm os fantasmas e fingem não vê-los e constata uma conspiração sinistra contra ela. Daí por diante a história se acelera, na luta desigual da governante em salvar as crianças dos fantasmas homossexuais que vieram buscá-las, à noite, ela passa a vigiá-los e constata numa noite de luar clara e fria que eles não estão em seu quarto: o menino caminha sobre o telhado rumo ao fantasma do mordomo que chama, perto da chaminé e a mulher está sentada na escada que conduz ao quarto da menina, com a cabeça apoiada nos braços, à espera, decidida a salvar as crianças da sinistra maldição que pesa sobre elas, ela consegue às pressas mandar embora a menina, numa carruagem, acompanhada pela criada.

Disposta a enfrentar a ameça terrível e sobrenatural ela interroga o menino a respeito da sua vida passada.

“Quando então contra a vidraça ele surgiu, como se para mutilar sua confissão e impedi-lo de responder-me ele o horrendo autor do nosso desespero – o rosto branco da maldição na vidraça. Senti uma vertigem ao vislumbrar a vitória e ao saber que teria que retomar minha batalha diária, vi que o menino adivinhava aquela presença e deixei que meu impulso se inflamasse a ponto de determinar a sua liberação.”Basta, basta, basta!” bradei, tentando abraçá-lo contra a aparição do nosso visitante.

“É ela que está aqui?” Miles arfava ao captar com os olhos semi fechados a direção para a qual seguiam minhas palavras. “Não, não é ela, exclamei ali na janela… bem diante de nós – ali está ele, o horror covarde, que surge pela última vez!”

“Ao ouvir isto, depois de um segundo durante o qual sua cabeça se mexeu com o movimento de um cão que tenha perdido a pista e buscasse freneticamente luz e ar, ele perguntou com ira calma, contemplando com olhos vazios o espaço e como que não percebendo aquilo que invadia o salão inteiro como o sabor de um veneno, a ampla, pavorosa presença”.

“E ele?”

“Eu estava tão determinada a ter minha prova final que decidi aceitar o repto supremo.”De quem você está falando?”

“Do mordomo – Peter Quint – o diabo!” Seu rosto infantil ecoou uma súplica convulsa. “Onde?”

“Ainda soam em meus ouvidos, sua suprema entrega do nome e seu tributo à minha dedicação”O que importa agora meu querido – o que ele importa agora e para sempre de agora em diante?” Eu enfrentei o desafio feroz” Ele perdeu você para sempre! E para arrematar meu trabalho indiquei “Ali, olhe: ali!”

“Mas o menino já se voltara de repente, fixara os olhos, arregalando-os e parecia-me que só vira o dia tranquilo lá fora. Quando eu celebrava a perda de que tanto me orgulhava ele emitiu o grito de uma criatura jogada para dentro de um abismo e a sofreguidão com que eu o colhi em meus braços era a de quem o segurasse antes da queda. Segurei-o, sim, agarrei-o – e pode se imaginar com que arrebato. Mas depois de um minuto comecei a sentir o que era que eu realmente segurava entre as minhas mãos ávidas. Estávamos sozinhos na casa imensa naquele dia ensolarado e tranquilo e seu coraçãozinho, desapropriado, parara de bater.”

A investigação de Henry James “daquilo que jaz por detrás da mise em scène da vida” termina não com uma afirmação niilista, mas com a denuncia de uma sociedade putrefata oculta sob a aparência de beleza e de magia num vaticínio semelhante ao de Proust no final da sua caleidoscópica “em busca do tempo perdido”.

Como ele próprio declarou, as suas obras não foram escritas com o propósito de “deixar uma impressão agradável nos leitores”. Ele se referia com insistência à frustração da vida inerente a toda existência humana. Na vida de qualquer ser humano há sempre qualquer coisa importante que ele perdeu ou não conseguiu realizar. A vida é deprimente e a arte inspiradora. Muito do seu mundo demoníaco de histórias de fantasmas que produzem o frisson calvanique exigido por Baudelaire está profundamente impregnado de simbolismo e do duelo entre o Mal e a Pureza, a Inocência e a Experiência. A afirmação crescente e indetível da obra de Henry James hoje examinada pela crítica é considerada uma das supremas contribuiões à novelística ocidental – impõe-se com a serenidade inerente às coisas perfeitas. É possível que como os seus personagens que sucumbiram a frustrações impostas pelas circunstâncias a sua vitória final tenha sido póstuma, à medida que descobrirmos sob os escombros de sua frustração individual o tesouro inestimável da sua Arte.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A musa trágica.” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.