Tradução de LGR do artigo de Cesare Pavese ‘Regresso ao Homem’

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Sem data. Aguardando revisão.

Há anos estamos atentos às palavras novas. Há anos percebemos os tremores e balbucios de novas criaturas e sentimos em nós mesmos e nas vozes sufocadas deste nosso país como um tépido alento de nascimentos. Mas poucos livros italianos conseguimos ler durante as ruidosas jornadas da era fascista, naquela absurda vida sem ocupações e restrita que tivemos que levar então, e mais do que livros conhecemos homens, conhecemos a carne e o sangue dos quais nascem os livros. Em nossos esforços por compreender e por viver, apoiaram-nos vozes estrangeiras - cada um de nós frequentou e amou a literatura de um povo, de uma sociedade distante e falou dela, traduziu-a, construiu-se uma pátria ideal. Tudo isto, na linguagem fascista, se chamava xenofilia. Os mais tíbios nos acusavam de vaidade exibicionista e de fátuo exotismo, os mais austeros diziam que procurávamos nos gostos e modelos de além-mar a além dos Alpes um desafogo para nossa indisciplina sexual e social. Naturalmente, não podiam admitir que buscássemos na América, na Rússia, na China, ou em quem sabe onde, um calor humano que a Itália oficial não nos dava. Menos ainda - que simplesmente buscássemos a nós mesmos.

Não obstante, foi justamente assim. Lá nós buscávamos e lá encontrávamos a nós mesmos. Das páginas duras e estranhas dessas novelas, das imagens desses filmes, chegou-nos a certeza de que a desordem, o estado de violência, a inquietude de nossa adolescência e de toda a sociedade que nos rodeava, podiam resolver-se e aplacar-se em um estilo, numa ordem nova, podiam e tinham que transfigurar-se num novo mito do homem. Este mito, este critério clássico nós o pressentimos sob a dura cortiça de um costume, de uma linguagem não fáceis, nem sempre acessíveis, mas pouco a pouco aprendemos a buscá-lo, a supô-lo, a adivinhá-lo em cada um de nossos encontros humanos.

Sabemos agora em que direção devemos trabalhar. Os sinais dispersos, que nos anos escuros recolhíamos da voz de um amigo, de uma leitura, de alguma alegria ou de muita dor, compõem agora um raciocínio claro e uma promessa certa. E o raciocínio é este: nós não iremos até o povo. Porque já somos o povo e tudo o mais é inexistente. Iremos, quando muito, de encontro ao homem, ao ser humano. Porque o obstáculo, a cortiça que temos que romper é esta: a solidão do homem, a nossa e a dos outros. Nisso reside todo o novo estilo, o nosso mito. E, com isto, a nossa felicidade.

Propor-se ir de encontro ao povo é, afinal, confessar má consciência. Ora, temos muitos remorsos, mas não o de ter esquecido, nunca, de que carne somos feitos. Sabemos que nessa camada social que se costuma chamar de povo o riso é mais puro, o sofrimento mais vivo, a palavra mais sincera. E tudo isso levamos em conta. Mas que outra coisa significa isto senão que no povo a solidão já está vencida ou em vias de sê-lo. Da mesma maneira, nas novelas, nos poemas e nos filmes que nos revelaram a nós mesmos num passado recente, o homem era mais puro, mais vivo e mais sincero do que em tudo que se fazia em nosso país. Mas não por esse motivo nos confessamos inferiores ou diferentes dos homens que fazem essas novelas e esses filmes. Como para eles, para nós o objetivo é descobrir, celebrar o homem além da sua solidão, mais além de todas as solidões do orgulho e dos sentidos.

Estes anos de angústia e de sangue nos ensinaram que a angústia e o sangue não são o final de tudo. Uma coisa se salva no horror: a disposição natural do homem, de um ser humano a outro. Disto estamos bem certos, pois o homem nunca esteve menos só do que nesses tempos de terrível solidão.

Houve dias em que bastou um olhar, o piscar de olhos de um desconhecido para comover-nos e deter nossa queda. Sabíamos e sabemos que em todos os lugares, nos olhos mais ignorantes ou mais turvos, aninha-se uma caridade, uma inocência da qual nos toca partilhar. Muitas barreiras, muitas estúpidas muralhas caíram nesses dias. Para nós também, que há tempos obedecíamos à súplica de cada presença humana, causou-nos estupor sentirmo-nos investidos, submergidos em tanta riqueza. Verdadeiramente, o homem, no que tem de mais vivo, revelou-se e agora espera que nós saibamos compreender e falar.

Falar. As palavras são o nosso ofício, dizemos sem sombra de timidez ou de ironia. As palavras são coisas ternas, intratáveis e vivas, mas feitas para o homem e não o homem para elas. Todos sentimos que vivemos numa época em que se torna necessário restituir às palavras a sólida e desnuda limpidez de quando o homem as criava para delas se servir. E sucede que, precisamente por isso, porque servem ao homem, as novas palavras nos comovem e possuem como nenhuma das vozes mais pomposas do mundo que morre, nos comovem como uma prece ou um boletim de guerra.

Nosso objetivo é difícil, mas vivo. É também o único que tem um significado e uma esperança. São homens os que esperam por nossas palavras, pobres homens como nós, quando esquecemos que a vida é comunhão. Eles nos escutarão com rigor e com fé, prontos a encarnar as palavras que diremos. Desiludi-los seria trai-los, seria também trair o nosso passado.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Tradução de LGR do artigo de Cesare Pavese ‘Regresso ao Homem’ .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.