Beckett. O exercício antes das obras-primas

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1987/08/29. Aguardando revisão.

Esfarrapou-se a literatura. A vida humana não tem o mínimo significado.

A época contemporânea, produzindo em linha de montagem carnificina, campos de concentração, bombardeios aéreos de centros civis como Londres e Dresden durante a Segunda Guerra Mundial, esboroou-se na Europa na perda do valor normativo da palavra. A primeira pulsação crispada a respeito da morte de indivíduos, nações e da própria civilização já surgira, nítida, no Diário de Virginia Woolf, literalmente levada à loucura pelas devastações causadas a seu redor, na Inglaterra, pelos aviões da Luftwaffe alemã. A magnífica escritora ecoa todo um Continente ao anotar, sucinta e desesperadamente: Why live?: por quê, para que viver?

Thomas Mann e o crepúsculo da cultura descrito em A Montanha Mágica, Ionesco e seu teatro do absurdo, com falas e ações sem nexo e infantilizadas, como se copiadas de uma gramática para idiotas: um a um os artistas vão captando a derrocada final. Só a América Latina, no Ocidente, e William Faulkner, no Sul dos Estados Unidos, recuperam o vigor e a inventividade da literatura cremada na Europa nos fornos da decrepitude. A tentativa de evocar a grandeza e a dignidade majestosa do poeta na Roma Antiga pelo austríaco Herman Broch em A Morte de Virgílio, o sopro de vida que Proust consegue insuflar no passado perdido e momentaneamente revivido pela Arte (ainda com A maiúsculo, naquele tempo) são um réquiem para a literatura, a celebração colossal de seus rituais fúnebres finais. Por fim, cada um em seu extremo, Joyce torna o pergaminho de Finnegan’s Wake praticamente indecifrável e Kafka elabora a redução absoluta o homem se metamorfoseia em monstruoso inseto: percevejo? barata com remotos sentimentos humanos?

Dessa perspectiva da inutilidade das palavras é que talvez se possa refletir a respeito de Samuel Beckett. Uma criação sua, de 1946 e não de 1945, data de sua escritura, acaba de ser lançada no mercado editorial brasileiro pela Editora Nova Fronteira: Primeiro Amor, edição bilingue, 85 páginas. Eis um livro que está irremediavelmente destinado a encontrar poucos leitores, mesmo com o chamariz vulgar da capa. Tampouco a retórica sem sentido de anunciar “toda a solidão do homem descrita nesta curta novela” atrai: de qual obra moderna, curta ou longa, não se pode dizer algo semelhante, de tão vago e surrado?

Provavelmente seja mais interessante anotar, para o leitor em jejum de Beckett, que é um dos extraordinários autores irlandeses que antigamente a Irlanda expelia para a Inglaterra (Sheridan, Oscar Wilde, Swift, Sterne) e que, a partir de Joyce, forçou ao exílio no continente europeu. Por isso Beckett buscou, na língua francesa, novas sonoridades e é um autor bilingue, traduzindo ele próprio suas obras do francês para o inglês. Depois - fator que dificulta a sua tradução - ele apela costumeiramente para personagens esquálidos, que usam muita gíria e termos propositada ou despreocupadamente vulgares e repugnantes. O ser humano banalíssimo não representa uma caricatura do homem moderno: ele é o homem massificado de nossos tempos. Sua indiferença com relação a tudo atinge os limites de uma insensibilidade genérica, abúlica. Que seu casamento (ou união) como aquela que mais tarde se revelará ser uma prostituta profissional se associe à morte do pai poderá, a princípio, parecer uma perversidade intencional de Beckett.

Mas em outras obras ele já indagara, piamente: ratos que devoram a hóstia sagrada deglutem o Corpo Santo de Jesus Cristo? É o anticatolicismo, o anticlericalismo virulento de tantos intelectuais irlandeses elevado à sua potência suprema como blasfêmia religiosa. Além disso, este homem sem personalidade (em nada semelhante ao Homem sem Qualidade de Musil!) gosta de passear nos cemitérios, urina sobre as lápides com a maior naturalidade, enumera os lugares fétidos da anatomia humana e se regozija em citar os tipos de excremento que lhe são mais repugnantes, enquanto contempla uma imagem de Jesus no banheiro e se esforça para vencer a prisão de ventre aos gemidos. Beckett se compraz também em desnudar as idiotices que o linguajar estereotipado neste caso no uso cotidiano da língua francesa gera e que são uma sucessão de sons imbecilizante, mais uma vez de difícil equivalência em tradução portuguesa: si ceci alors cela, mais si cela alors ceci. Os lugares-comuns se sucedem: “c’est bien avec le coeur que l’on aime, n’est-ce pas? (é mesmo com o coração que se ama, não?) Ou”on ne sait jamais” (nunca se sabe ou, mais informalmente: vai-se lá saber...) Essas armadilhas da linguagem não o impedem de manifestar vislumbres de lucidez, uma lucidez, é verdade, de difícil compreensão, porém:

“A coisa que me interessava a mim, rei sem súditos, da qual a posição de minha carcaça era apenas o mais longínquo e fútil dos reflexos, era a supinação cerebral, o torpor da ideia do eu e da ideia desse pequeno resíduo de ninharias envenenantes a que se dá o nome de não-eu, e mesmo de mundo, por preguiça”.

Já aqui a beleza do estilo ritmado, no original, se perde junto com a ambiguidade de termos capitais como “roi sans sujets” que tanto pode significar, em francês, “rei sem súditos”. como também, do ponto de vista filosófico, um rei sem sujeitos, além da impossibilidade talvez de se obter a rima interna evidente em francês: “Moi”, “roi”, “le non-moi”. Esse não-eu recorda que carrega no bolso a herança (autêntica ou inventada?) do pai que morreu, vive sem morada fixa, enfrentando os rigores do inverno em plena Paris, estendido sobre um banco, aparentemente se orienta pelos instintos, sem se chocar pudicamente com a frase “as mulheres sentem o cheiro de um falo ereto a mais de dez quilômetros” (embora também se pudesse traduzir: as mulheres farejam...).

Beckett não esconde completamente, no entanto, sua veia lírica: “O que chamam de amor é o exlio” nem o desamparo do homem sem um eu definido: “Aliás, eu as conheço mal também, minhas dores. Isso talvez venha do fato de eu não ser se não dor”, nem mesmo quando zomba das dores espirituais: “muito bonitas, as da alma” como se alguém estivesse elogiando saias num desfile de modas ou cosméticos recém-lançados: com a mais absoluta frivolidade...

Beckett ficou famoso entre o público não especializado em literatura ao receber o prêmio Nobel (que recebeu pelo correio, no seu esconderijo ao abrigo da imprensa num lugarejo do Marrocos) e por ter escrito a peça de sucesso mundial Esperando Godot. Mas não se creia que os mendigos e os marginais da sociedade são os únicos focalizados pelo enigmático autor irlandês de língua francesa. Burgueses que se lembram na peça Happy Days (Dias Felizes) de horas atrozes à medida que desaparecem, soterrados na areia, Malone/Malloy que soçobra no pântano enquanto sua associação de ideias corre livremente, antes de sua morte: na realidade Beckett poderia ser interpretado como supremamente niilista. É possível, também, contudo, a interrogação, senão a interpretação mística: Beckett é o que se desesperou do significado ulterior da vida por serem os fenômenos que circundam a vida humana abomináveis: não há bondade, não há amor, não há nada que perdure, não há fé, não há Deus? Tudo é uma Ridícula Comédia para este exímio intérprete de Dante?

O patético não está ausente desta situação-limite: o homem que não é ninguém se alimenta do passado, da infância, do período em que o pai lhe ensinava a ver no céu as constelações das Ursas (aqui surge outra ambiguidade intraduzível: chariot tanto pode significar essa constelação do Hemisfério Norte, as Ursas, quanto carrinho que se usa para a criança aprender a andar). E no final, ao abandonar a prostituta que o acolhera em sua casa caótica e abandonar simultaneamente aquele que ela afirmava ser o filho que ele gerara nela, os gritos mesclados do recém-nascido e da parturiente não o abandonam mais. Quem sabe, se ele vivesse outros amores, que apagassem a lembrança daquele? A frase final é igualmente ambígua em francês e se perde na tradução: “Mais l’amour, cela ne se commande pas” pode querer dizer banalmente “mas o amor não se encomenda” no sentido corriqueiro, propositadamente usado aqui, de encomendar um jantar, um vestido... ou pode significar, igualmente: “Mas o amor ninguém comanda”, que também dá o sentido kitsch de cartão cafona com um coração circundado de purpurina vermelha, do tipo que namorados interioranos mandam as suas amadas...

Aqui e ali rebrilham raros momentos de humor: Beckett não separa nunca o trágico do absurdamente cômico, o pathos da irrisão que pode desfigurá-lo. Este Primeiro Amor antecede as suas obras-primas e tem mais ou menos o valor de um exercício, de uma experiência beckettiana. Beckett, amigo íntimo de Joyce, adora permanecer uma esfinge, indecifrável em seu mutismo. Execra a imprensa, a fama, o mundanismo. Mas o sense of humour anglo-irlandês aflora desde o que os franceses chamam a sua clownerie, que traduziríamos mal, mas aproximadamente, por palhaçada, em Whoroscope, uma brincadeira com as palavras, em inglês, Whore (puta) e o final de Horoscope (horóscopo). Do que trata Whoroscope? Do filósofo René Descartes, que enunciou a lógica de “Cogito, ergo sum” (Eu penso, portanto, existo), de mistura com reminiscências culturais sérias e receitas culinárias. Nem passa completamente sem ser notada a sua erudição aqui e ali, com alusões aos versos famosos de Goethe que se referem à Itália, “Kennst du das Land, wo die Zitronen bluehen...”(Conheces o país, onde florescem os limões...). bem como passagens captadas em Heráclito: jamais podemos dormir sob o mesmo céu (na versão de Beckett nesta obra). Para o erudito, cujo prólogo à criação de Proust é tão forrada de labirintos e significados que é objeto de estudos semestrais na Universidade da Sorbonne, em Paris, há sempre o riso irônico de quem não exclui o leitor do rol de cretinos que infestam o mundo...

Beckett dá uma parcela ínfima de sua estranheza iluminada pela genialidade nesta obra, que se alterna com o período de sua vida em que decidiu percorrer a Alemanha, ignorando a ascensão do nazismo, e sem querer se hospedou, em Nuremberg, em um hotel que servia de quartel-general da Gestapo. Mesmo os seus escritos mais herméticos - e talvez mais deslumbrantes pelas armadilhas literárias que encerram como o fantástico More Pricks than Kicks, com seu título voluntariamente pornográfico e engraçado, o deixam desinteressado se não encontram leitores, anos a fio. Como se ele dissesse: “Azar o deles!...” Será meramente excêntrico de sua parte abandonar imediatamente a Irlanda assim que a França, em 1940, foi invadida pelas tropas hitleristas, declarando preferir a França em guerra do que a Irlanda em paz? As acrobacias que poderia ter pago com a própria vida, como servir de posta-restante para os resistentes franceses, durante a ocupação alemã, não rimam com suas imprecações contra o “único país da Europa onde não é possível encontrar preservativos”, numa crítica ácida ao catolicismo arraigado daqueles que ele rejeita como “compatriotas”? Não há mais do que exibicionismo em, durante a guerra, sob o nariz da Gestapo, cultivar, como agricultor, um pedaço de terra e ao mesmo tempo compor Watt, música para acompanhar um massacre? Ele leva a sério o horror a possuir coisas, e uma vez liberada a França, em 1945, corre de volta a seu antigo apartamento disposto, em suas próprias palavras “a escrever em francês e me tornar ainda mais pobretão”, daquela França que, presa de um ódio fanático aos estrangeiros, o tinha oficialmente expulso em 1932 de seu território ao encontrá-lo sem um víntém no bolso? Frequentemente, não há linha de demarcação entre seus personagens que confessam “Não sei mais quando morri” ou o Malone que decide teimosamente “nunca mais direi eu”. Krapp, que ouve sua voz do tempo de mocidade, quando sacrificou um grande amor por uma obra grandiosa que escreveria e não escreveu, em A Última Fita Magnética de Krapp. O personagem de Acte sans paroles (Ato sem palavras) em que um indivíduo obedece às ordens de um apito agudo no palco e tenta em vão beber de uma garrafa que desce do teto, mas se afasta dele novamente, cada vez que ele está prestes a alcançá-la. Ultimamente, Va et vient (Vai e Vem) apresenta Vi, Ru e Flo, três mulheres que, através de gestos e sussurros quase totalmente inaudíveis, narram o que é a existência humana com seus altos e baixos.

Tipicamente e sem ironia governamental, Molloy de Beckett está proibido de ser lido na Irlanda.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Beckett. O exercício antes das obras-primas .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.