Os autores do grito radical: Ginsberg, Genet, Gadda e Borges

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1966/10/1. Aguardando revisão.

Ginsberg, poeta do protesto

Para compreender Allen Ginsberg, é preciso reler os poemas de Whitman. Não só a “Canção de Mim Mesmo”, mas os versos de um ritmo selvagem que celebram a vastidão da América, a fumaça das suas chaminés, sua natureza e grandeza e a grandeza de sua gente comum, prosaica, corriqueira. Porque Ginsberg revoluciona a lírica americana de forma igualmente radical, integrando na sua inspiração todos os motivos da América contemporânea. O inconformismo de grande parte da juventude universitária com as diretrizes do Governo no trágico conflito do Vietnam; a reação ácida, violenta contra a burguesia bem-pensante e hipócrita; a “mística” da liberação por meio do ácido lisérgico, da marijuana, da defesa dos direitos civis dos negros, da total liberdade sexual (e homossexual muitas vezes). Seus cantos celebram também uma “canção de si mesmo”, o profeta do amor universal trazido pelo LSD, capaz de apaziguar racistas ferozes, como a lira de Orfeu amansava as feras, o defensor da legislação dos entorpecentes, o poeta que empolga as multidões jovens nas universidades que o convidam para ler seus poemas, Allen Ginsberg, que numa rua de Varsóvia surgiu de repente tocando flauta indiana, vestido de tanga e pregando a solidariedade entre os homens baseado em textos sânscritos do livro dos Vedas. Essa veemente celebração épica de si mesmo ao mesmo tempo que fascina uma juventude ávida de libertar-se de uma educação puritana, de critérios vitorianos, rompe todas as regras da poesia tradicional, da mesma forma que investe contra todos os tabus e preconceitos de outras eras. O ritmo nervoso, por vezes histérico mesmo dos urros de um “neurótico narcisista” como ele foi chamado por alguns críticos, é um ritmo que se mantém desigual como valor poético, seja como inspiração, seja como expressão formal. Incapaz de podar suas vituperações e seus louvores ao prazer erótico e ao arrebato místico (que funde numa só sensação, numa falsa interpretação de William Blake, seu poeta favorito), Allen Ginsberg é um verdadeiro rapsodo moderno, o intérprete da desorientação de grande parte da nova geração americana e mundial. Pertencente, há dez anos atrás, ao grupo da Beat Generation da California, com Jack Kerouac, Ginsberg, fiel à sua origem, mistura confusamente mescalina e uma interpretação simplista do Zen-Budismo, uma combatividade política por vezes fanática como um culto, de tendência totalitária, do poderio, uma denúncia moral pungente com um deslumbramento sem limites pelo orgasmo e pelo encontro homossexual. Seu primeiro (e melhor) poema, “Howl” ( O Berro), publicado em 1956, assume no campo da poesia a mesma função que os romances de D. H. Lawrence e de Henry Miller na prosa. Isto é: fazem explodir os diques que continham em espartilhos bem-comportados o lado vulcânico do sexo, da obscenidade, da incorreção gramatical, do impacto emocional do coito. A sua evocação amorosa só é feliz, porém, em momentos fugazes e raros, quase que invariavelmente é mais busca frenética de paz compartilhada com um companheiro de arrebato e de angústia, é mais frustração de um masoquista incapaz de reconhecer o amor, de se deparar com ele na sua longa trajetória de corpos. Como diz o crítico Rosenthal, professor de literatura americana da New York University, Ginsberg canta heróis vencidos e há, portanto, uma incongruência, uma ruptura na sua temática ao mesmo tempo encorajadora de uma ação política saneadora de injustiças sociais e propugnadora de uma resignação passava diante do sofrimento como forma de purgação e d elevação religiosa e espiritual. Seria absurdo querer erigir Ginsberg à altura e à densidade poética do seu modelo infelizmente inalcançável – William Blake. No entanto, ele é uma das vozes legítimas e mais importantes dos Estados Unidos de hoje, como Bob Dylan na protest song, Albes no tetro do eletrochoque verbal de Zoo Story e James Baldwin na sua revelação amarga, agressiva, de uma América negra, escorraçada e “de segunda classe”. E certamente trechos escolhidos de seus longos poemas – principalmente “Howl” e a litania pela mãe demente, “Kaddisch for Naomi Ginsberg” – são já antológicos no melhor sentido do termo. São arquétipos de toda uma literatura americana aparentada com o Expressionismo alemão e com os heróis atônitos de Dostoievski, espiritualmente contemporâneos da bomba atômica, do muro de Berlim, dos computadores e dos voos espaciais, dos tiros em Dallas e dos guardas vermelhos da China.

“O Grito” de Allen Ginsberg (tradução de LGR)

Eu vi as melhores cabeças de minha geração destruídas pela loucura, esfomeadas, histéricas, nuas,
arrastando-se de madrugada pelo bairro dos negros na última procura furiosa da dose de heroína,
transviados angélicos desesperados pela celestial ligação com o dínamo estrelado no mecanismo da noite,
que, pobreza e farrapos, e olhos ocos e dopados, sentavam-se fumando na escuridão sobrenatural de apartamentos de água fria flutuando pelos cumes das cidades contemplando o jazz,
que desnudavam seus cérebros ao Paraíso sob o El e viam anjos muçulmanos tropeçando pela luz dos tetos de aluguel,
que passavam pelas universidades com radiantes olhos frios alucinando
Arkansas e a tragédia à luz de Blake entre os eruditos da guerra.

Genet, um homem à margem

Jean Genet mereceu de Sartre um monumental estudo crítico de 800 páginas: Saint Genet, Comédien et Martyr. Mendigo nos bairros mais miseráveis de Barcelona, ladrão várias vezes encarcerado, pederasta por convicção e por dinheiro, profeta do onanismo como culto religioso, adorador da crueldade e da violência, Genet teve sua sentença à prisão perpétua dada pelo Ministério da Justiça francesa comutada graças à intercessão de um grupo de intelectuais europeus liderados por Sartre e sua companheira Simone de Beauvoir. Genet vai além dos “paraísos proibidos” divisados por Baudelaire no ópio, na inversão sexual, no crime, na decomposição dos cadáveres. Ele não evoca as taras do Marques de Sade em versos parnasianos, ele passa a vivê-las, passa a assumir o Mal, não a sentir apenas o perfume fatal das suas flores. Seus romances – e principalmente Nôtre Dame des Fleurs – celebram o monstruoso: “o deleite poético e melancólico” que lhe causa o odor das fezes, o crime sexual, o envelhecimento de um pederasta, os mendigos egoístas e repugnantes que infestam o barrio chino de Barcelona. Talvez não haja uma confissão mais nua, mais descarnadamente apavorante do que seu Diário de um Ladrão (Journal d’un Voleur). Só comparável às confissões de De Quincey como fumador de ópio e às mensagens subterrâneas de Dostoievski em suas Recordações da Casa dos Mortos, a obra de Genet perturba pelo desafio que contém, partindo de um marginal, de um pária da sociedade na qual está enquistado sem integração possível. Mas ele conturba com a mesma força pela sua pujança poética, pela envolvente magia de um dos mais belos estilos da língua francesa, hábil manipulador de seus mais sutis recursos verbais, de suas imagens e sons, sempre de forma original e inesperada. A sua alquimia verbal foi toda elaborada nas prisões da França e de outros países da Europa nos quais esteve encarcerado anos a fio. A sua é não só em sentido figurado, mas também concretamente uma literatura criada na solidão. “Numa situação limite – escreve Sartre – o criminoso e o louco são objetos puros e sujeitos solitários… para descer até à solidão do único, do excluído, só existe um caminho: o do erro e do fracasso, que passa pela impotência e pelo desespero. Só estaremos realmente sós quando reconhecermos que somos, aos olhos dos demais, meramente um objeto culpado, ao passo que a nossa consciência instintivamente não cessa de nos aprovar secretamente”. O próprio artista, porém, sobrepõe-se ao seu estado larval, de isolamento e de abjeção. Banida da sociedade, a lagarta repugnante constrói seu casulo e tece sua seda: a sua obra literária. Ele próprio reconhece e brada: “Minha vitória é verbal, e eu a devo à suntuosidade das palavras”. Abolindo a distância entre o seu mundo monstruoso, isolado e o mundo que se encontrará, na posteridade, com as suas imagens de profundo satanismo, ele cria um elo entre a sua monstruosidade e a nossa, como que uma furtiva ternura que ele tanto ambicionara entre a vítima e o carrasco.

Gadda, as palavras mágicas

Carlo Emilio Gadda é uma senha nova na península que já inovara a prosa mesmo em âmbito europeu com Verga, Svevo e Pavese. Mas Gadda é um mago da palavra, coleciona palavras, transforma as palavras, impregna as palavras de um vigor e uma transcendência novas. Seu longo e esplêndido romance Quer Pasticciaccio brutto de via Merulana causou a mais viva polêmica beletrista em Florença, Roma, Milão. Um misto de novela psicológica, de romance policial e saborosíssima galeria de personagens populares de Roma, tem trechos inteiros escritos em dialeto romano. Literatura dialetal? Absolutamente. Utilização erudita de elementos popularescos, dialetais, de desconhecido valor artístico até então. O que Céline fizera ao incorporar a gíria de Paris ao seu Voyage au Bout de la Nuit, Gadda ousa fazer com os dialetos de um país sem uma língua propriamente natural, só o “italiano” de inspiração toscana, mas deformado em cada vilarejo da Itália graças à pressão maciça de séculos de sotaques e modismos dialetais. Da mesma forma que Mestre Guimarães Rosa – e só neste ponto estes dois grandes prosadores se encontram - Carlo Emilio Gadda, ao renovar estilisticamente a linguagem do escritor, perpetua, salva do desaparecimento iminente uma incrível riqueza de vocabulário, de ditos populares e inflexões prestes a serem absorvidas na língua franca do italiano difundido pelo cinema, pela imprensa, pela TV e pela rádio. Mas, evidentemente, o seu mérito, se se restringisse a criar um “museu” da linguagem, embora grande, seria o de um filólogo ou embalsamador de termos e modismos. Ao contrário: a riqueza da forma está indissociavelmente ligada à densidade do conteúdo da sua magnífica obra literária. Profundamente impregnada de melancolia, uma melancolia doce, cheia de graça e de serenidade, a sua novelística retrata sempre a dor. La Cognizione del Dolore (Conhecimento da Dor) é justamente o título de um de seus mais belos romances, ambientado numa Argentina meio rural, meio mítica, moldura para a tragédia que deflagra entre a mãe e o filho com o seu terrível segredo. Mas a dor sempre redimida ou pelo menos mitigada pela luz sempre presente da piedade, a mesma piedade que Oscar Wilde sentia por todos os seres humanos ao sair do cárcere de Reading. Da sua sucinta meia-página de autobiografia consta que “Carlo Emilia Gadda vive na Capital da República a 14 km do centro numa casa requintada, consolado à noite pelos uivos dos lobos e durante o dia inteiro pelos gritos de copiosíssima prole, não sua, mas igualmente querida e abençoada. O que você faz o dia todo? Perguntam-lhe as pessoas muito ocupadas. Você não se mexe nunca? Não, não me mexo nunca”. Nascido em Milão em 1893, Gadda retrataria a cidade natal “odiada e amada”, fria e mercantil, em uma série de contos urdidos em dialeto milanês e que culminam por certo na Adalgisa, de certeira ironia e extraordinária argúcia de observação. Transferindo-se a Roma, lança seu olhar perscrutador sobre o submundo dos criminosos, dos truffatori (vigaristas) improvisados, ladrões de meia pataca e sobre toda uma estrutura pequeno-burguesa, decorosa, hipócrita, egoísta, envolta num sórdido caso de assassinato. A mesma pregnância das anotações na grande metrópole setentrional revela-se agora na reprodução dos “Mares” de uma Roma cínica, cética, vulgar, mas de um pitoresco fascinante, vital, emanado da própria essência da “raia miúda” dos bairros proletários além do Tibre, o Trastevere que o poeta Belli imortalizara. Carlo Emilio Gadda, engenheiro eletrônico, hoje reconhecido em toda a Europa como um digno continuador de Joyce na renovação do estilo e da temática da novela ocidental, é dificilmente traduzível e em certos trechos de impossível tradução. A menos que o Rio falasse em dialeto saboroso, não apenas uma série de expressões de gíria e São Paulo falasse outro dialeto com vogais vagamente germânicas e um vocabulário burguês bem-pensante, mirando sempre ao lucro e à manutenção de uma aparência impecável e Minas tivesse o seu dialeto etc. etc. Uma figura clássica é a que espelham os livros de Gadda. Fiel herdeiro da tradição humanista da literatura europeia, como Thomas Mann, esse aristocrata da forma convive com um ardente bardo do povo, que celebra no seu linguajar na sua generosidade na sua ânsia de viver plenamente, na sua humildade, na sua ternura e na sua preservação pela palavra, a salvo da destruição e do esquecimento de gerações vindouras e igualitárias.

El Apeph, Otras Inquisiciones, Historia de la Eternidad são alguns dos títulos das obras-primas de Jorge Luis Borges, argentino de Buenos Aires, hoje com 67 anos de idade, candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, a quem já foi outorgado um prêmio muito mais importante em termos de difusão mundial: o Fomentor, concedido pelas editoras maiores e mais poderosas do Ocidente (Gallimard na França, Einaudi na Itália etc. Borges, ao contrário de Gadda, é plenamente traduzível, mas como ele, é um escritor hermético, para grupinhos de “esotéricos”. A dificuldade dos seus textos deriva-se da sua estrutura complexa, em parte semelhante ao mundo surrealista de Kafka. Signos ocultos, frases cabalísticas e o símbolo sempre presente do labirinto surgem a miúde em seus contos cheios de mistério, de suspense, de intenções veladas e não decifráveis à primeira vista. Não seguem propriamente uma linha lógica, racional, mas uma trajetória mais imprecisa, de sonho, de intuição, de revelação envolta em segredo e divagações que fazem os impacientes perder a pista e desistir, sem encontrar o sentido, a saída daquele labirinto. Situadas fora de um país ou uma cidade claramente definida, sem especificar muitas vezes nem mesmo o século em que decorrem, suas impressionantes histórias são relatos num estilo claro, límpido. Traduzidas na França, na Itália, na Alemanha, nos Estados Unidos, logo colocaram Borges na vanguarda internacional da literatura que se cria atualmente em qualquer país. Descendente de portugueses, espanhóis e ingleses, mas há várias gerações integrado na elite rural e cultural da Argentina, Borges, à semelhança de Guimarães Rosa, é um escritor sumamente culto, versado em várias línguas, até mesmo o hebraico e o islandês, dedicando-se como funcionário da Biblioteca Pública de Buenos Aires ao estudo de várias literaturas vivas e mortas, Borges passa por não ter tido uma vida pessoal. Desde a infância em contato com os livros, a sua formação quase exclusivamente literária não é, porém, livresca. Seus contos abstratos e que desembocam no metafísico têm, porém, uma raiz de vivência real, inassimilável nas páginas de um texto e que revela o conhecimento pessoal da paixão, do arrebato, do sofrimento, da decepção, da surpresa. Atualmente, está quase inteiramente cego. Vítima de um mal congênito e hereditário que cegara vários de seus antepassados diretos. Encarando sem tragédia essa limitação de suas faculdades que já se estende por anos ininterruptos num crescendo lento, Borges escreve letras para milongas, que ele define como uma forma anterior do tango, semelhante à “modinha” brasileira predecessora do samba. É a sua vinculação voluntária, racional ao país de nascimento, porque Borges é, por excelência, um escritor sem fronteiras nacionais ou temporais. Seus personagens são arquétipos de todas as inquietações religiosas do homem. Essa funda radicação no misticismo o torna um cético no setor da política, ardente tanto no antiperonismo quanto no anticomunismo, duas formas do mesmo engodo. Considera igualmente fictícias as tentativas de instaurara na literatura critérios nacionalistas ou de cunho panfletariamente ideológico. Não se interessa pelo cinema que se faz hoje, preferindo um bom filme de “mocinho” ou melhor ainda de Hitchcock. Dedica-se a escrever, além de um ensaio sobre a literatura medieval da Inglaterra e dos países escandinavos, uma peça policial em que se acumulam cadáveres, os suspeitos do crime e as emoções frementes do público. Encontrou em Chesterton, o fino humorista, o original pensador e novelista inglês, muito de sua inspiração para contos e novelas, sobretudo a teoria segundo a qual o mundo sem uma origem divina seria como um labirinto sem centro, do qual a humanidade não emergiria nunca. Embora não filiado a nenhuma religião institucionalizada, Jorge Luis Borges incute às suas obras um senso inato de ordem, de estrutura, de nexo final. E constitui, ele próprio, uma espécie de religião de milhares de leitores que, fascinados, vislumbram na sua obra complexa, rica, de difícil compreensão, um espelho de própria psique poliédrica e mutável do ser humano.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. Os autores do grito radical: Ginsberg, Genet, Gadda e Borges . Edited by Fernando Rey Puente. Conferências, ensaios e alguns artigos especiais. Vol. 9. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.