Os autores do grito radical: Ginsberg, Genet, Gadda e Borges

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Ginsberg, poeta do protesto

Para compreender Allen Ginsberg, é preciso reler os poemas de Whitman. Não só a “Canção de Mim Mesmo”, mas os versos de um ritmo selvagem que celebram a vastidão da América, a fumaça das suas chaminés, sua natureza e grandeza e a grandeza de sua gente comum, prosaica, corriqueira. Porque Ginsberg revoluciona a lírica americana de forma igualmente radical, integrando na sua inspiração todos os motivos da América contemporânea. O inconformismo de grande parte da juventude universitária com as diretrizes do Governo no trágico conflito do Vietnam; a reação ácida, violenta contra a burguesia bem-pensante e hipócrita; a “mística” da liberação por meio do ácido lisérgico, da marijuana, da defesa dos direitos civis dos negros, da total liberdade sexual (e homossexual muitas vezes). Seus cantos celebram também uma “canção de si mesmo”, o profeta do amor universal trazido pelo LSD, capaz de apaziguar racistas ferozes, como a lira de Orfeu amansava as feras, o defensor da legislação dos entorpecentes, o poeta que empolga as multidões jovens nas universidades que o convidam para ler seus poemas, Allen Ginsberg, que numa rua de Varsóvia surgiu de repente tocando flauta indiana, vestido de tanga e pregando a solidariedade entre os homens baseado em textos sânscritos do livro dos Vedas. Essa veemente celebração épica de si mesmo ao mesmo tempo que fascina uma juventude ávida de libertar-se de uma educação puritana, de critérios vitorianos, rompe todas as regras da poesia tradicional, da mesma forma que investe contra todos os tabus e preconceitos de outras eras. O ritmo nervoso, por vezes histérico mesmo dos urros de um “neurótico narcisista” como ele foi chamado por alguns críticos, é um ritmo que se mantém desigual como valor poético, seja como inspiração, seja como expressão formal. Incapaz de podar suas vituperações e seus louvores ao prazer erótico e ao arrebato místico (que funde numa só sensação, numa falsa interpretação de William Blake, seu poeta favorito), Allen Ginsberg é um verdadeiro rapsodo moderno, o intérprete da desorientação de grande parte da nova geração americana e mundial. Pertencente, há dez anos atrás, ao grupo da Beat Generation da California, com Jack Kerouac, Ginsberg, fiel à sua origem, mistura confusamente mescalina e uma interpretação simplista do Zen-Budismo, uma combatividade política por vezes fanática como um culto, de tendência totalitária, do poderio, uma denúncia moral pungente com um deslumbramento sem limites pelo orgasmo e pelo encontro homossexual. Seu primeiro (e melhor) poema, “Howl” ( O Berro), publicado em 1956, assume no campo da poesia a mesma função que os romances de D. H. Lawrence e de Henry Miller na prosa. Isto é: fazem explodir os diques que continham em espartilhos bem-comportados o lado vulcânico do sexo, da obscenidade, da incorreção gramatical, do impacto emocional do coito. A sua evocação amorosa só é feliz, porém, em momentos fugazes e raros, quase que invariavelmente é mais busca frenética de paz compartilhada com um companheiro de arrebato e de angústia, é mais frustração de um masoquista incapaz de reconhecer o amor, de se deparar com ele na sua longa trajetória de corpos. Como diz o crítico Rosenthal, professor de literatura americana da New York University, Ginsberg canta heróis vencidos e há, portanto, uma incongruência, uma ruptura na sua temática ao mesmo tempo encorajadora de uma ação política saneadora de injustiças sociais e propugnadora de uma resignação passava diante do sofrimento como forma de purgação e d elevação religiosa e espiritual. Seria absurdo querer erigir Ginsberg à altura e à densidade poética do seu modelo infelizmente inalcançável – William Blake. No entanto, ele é uma das vozes legítimas e mais importantes dos Estados Unidos de hoje, como Bob Dylan na protest song, Albes no tetro do eletrochoque verbal de Zoo Story e James Baldwin na sua revelação amarga, agressiva, de uma América negra, escorraçada e “de segunda classe”. E certamente trechos escolhidos de seus longos poemas – principalmente “Howl” e a litania pela mãe demente, “Kaddisch for Naomi Ginsberg” – são já antológicos no melhor sentido do termo. São arquétipos de toda uma literatura americana aparentada com o Expressionismo alemão e com os heróis atônitos de Dostoievski, espiritualmente contemporâneos da bomba atômica, do muro de Berlim, dos computadores e dos voos espaciais, dos tiros em Dallas e dos guardas vermelhos da China.

“O Grito” de Allen Ginsberg (tradução de LGR)

Eu vi mas melhores cabeças de minha geração destruídas pela loucura, esfomeadas, histéricas, nuas,/

arrastando-se de madrugada pelo bairro dos negros na última procura furiosa da dose de heroína,/

transviados angélicos desesperados pela celestial ligação com o dínamo estrelado no mecanismo da noite,/

que, pobreza e farrapos, e olhos ocos e dopados, sentavam-se fumando na escuridão sobrenatural de apartamentos de água fria flutuando pelos cumes das cidades contemplando o jazz,/

que desnudavam seus cérebros ao Paraíso sob o El e viam anjos muçulmanos tropeçando pela luz dos tetos de aluguel,/

que passavam pelas universidades com radiantes olhos frios alucinando/

Arkansas e a tragédia à luz de Blake entre os eruditos da guerra./

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. Os autores do grito radical: Ginsberg, Genet, Gadda e Borges . Edited by Fernando Rey Puente. Conferências, ensaios e alguns artigos especiais. Vol. 9. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.