Os versos de Hilda Hilst, integrando a nossa realidade

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 14 de fevereiro de 1981. Aguardando revisão.

O Grande Prêmio atribuído na recente votação da Associação Paulista de Críticos de Arte a Hilda Hilst representa um indício de que, ao menos entre uma parte significativa da crítica pensante e sensível brasileira, a obra tríplice da paulista Hilda Hilst (como dramaturga, como poetisa e como prosadora) vem recebendo seu tardio, mas ainda válido reconhecimento.

Em pleno mês do futebol-praia-e-carnaval, essa trindade das férias brasileiras totalmente hostil às musas, a editor Quíron vem romper a hibernação da inteligência imposta por aquela trindade adormecedora com uma sacudidela violenta: Poesia de Hilda Hilst, com 271 páginas, seguidas de posfácio do escritor português Jorge de Sena e da crítica brasileira Nelly Novaes Coelho, editora do livro.

Ressalte-se de início que esse volume intensamente feio, com uma capa nada atraente, cinza e ciclame, é dotado ainda de felizmente apenas um desenho, totalmente inadaptado a esse obra, de Bastico, que se especifica por Sebastião Soares de Sousa, engenheiro e desenhista maranhense, radicado no Ceará. Paciência, o provincianismo estéril não morre assim tão fácil nem aqui nem ailleurs

A aparente pressa com que foi feita esta edição, além da inoportunidade da diagramação e da ausência de revisão, porém, torna-se mais clara ainda na inversão cronológica imposta à impressão destes poemas. A autora afastara voluntariamente, desta coletânea três livros anteriores: Presságio (1950), Balada de Alzira (1951) e Balada de Festival (1955). No entanto, por que motivo os últimos poemas são apresentados como abertura do livro e os mais antigos fecham o volume?! O leitor fica com uma noção diametralmente oposta à avaliação real que se pode ter de Hilda Hilst como poetisa. Por quê? Porque a nosso ver, há como que um lento aprendizado, um árduo progresso dos primeiros poemas até as duas coleções finais, respectivamente, Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão e Odes Mínimas (ambas belíssimas edições de Massao Ohno), estes, sim, alguns dos momentos mais altos não só da poesia da Hilda Hilst, mas da poesia de todo o Ocidente, sem exagero, nem favoritismo.

Será justo conhecer-se Cervantes não pelo Dom Quixote, mas inicialmente através de suas Novelas Exemplares? E Shakespeare? Seria saboreado primeiro através das obras-primas da maturidade como Othello, King Lear, Macbeth e The Tempest?

É então um livro que exige do leitor ser lido do fim para o começo, seguindo práticas orientais inéditas ainda entre nós. Não que aqui e ali, no final do livro, não resplandeçam momentos de deslumbrante poesia, como nas Odes Maiores ao Pai, com sua originalíssima exortação:

“Ouço que é preciso esperar

Uns nítidos dragões de primavera…”

Ou os versos comoventes da mãe que visita o cemitério onde está enterrado o marido e

“Comprimia o peito a sua flor e de humildade

Era o olhar à procura do nome”

Mas, em nossa opinião, a grande poesia hilsteana só alça voo mesmo a partir do seu longo silêncio, de sete anos, entre 1967 e 1974. Ao contrário da sua prosa, que não apresenta censuras nem rompimentos abruptos a poesia de Hilda Hilst quer nos parecer, nada tem de excepcional, se se tivesse limitado ao período anterior a 1974. Sabiamente, o leitor com maior discriminação intelectual e estética restringirá a sua atenção à grande poesia, que é, nesta edição, a que vai da página 3 a 122.

A personalidade fascinante de Hilda Hilst se espelha em seu tríptico do poema, do palco, das “ficções”. Ela já afirmara (Jornal da Tarde, 18-04-1977) sua dúvida filosófica e pragmática sobre o ato de escrever: “Escrever não será, como o ato político, tentar fazer brilhar aquilo que não deve nem pode jamais brilhar? Escrever será um ato de, digamos, caridade para consolar o ser humano de ser o que é?” Para em seguida concluir que escrever seria um ato de autoconhecimento, de chegar à counicação com o Outro e readquirir a “perda mais funesta” que foi a da essencialidade sagrada de tudo, trocando-se o todo sacral pela fração menor da reivindicação meramente política e econômica, como se o ser humano não tivesse uma dimensão espiritual e vivesse só de pão, saciado, mas de alma morta.

Depois, passados alguns anos, em outro encontro ela nos confiava que tinha efetivamente, havido uma mudança em sua visão do mundo. O pessimismo paradoxalmente coexistente com uma esperança de redenção do ser humano, ameaçado por bombas de nêutron e a insânia dos políticos dirigentes da maioria das nações do globo, cedeu lugar a uma afirmação menos apavorante e menos negativa. A hesitação que surgira era de raíz ética: um autor teria o direito de desvendar a um leitor possibiidades latentes em ambos, mas que destruíssem também o mundo estanque no qual o leitor vivera até então”. Em grego o agonofrenós é a agonia da alma. Uma pessoa que tiver essa hiperlucidez de se compreender livre em um mundo esquizofrênico poderá sobreviver a essa iluminação interior ameaçadora? Até onde se pode realmente ser livre? Sem nenhuma repressão, sentindo, no entanto, que ele faz parte de um mundo caótico e que milita contra a sua liberdade? Se você sentir que o teu “eu” está sofrendo uma deterioração na sua parte mais funda e autêntica, no seu âmago álmico – que poderia acontecer depois?” É ao “fazer da tua linguagem uma extensão da tua própria atuação, aí, sim, você começa a ser livre… No mundo de hoje só um louco é que não pode pensar em utopias. Temos de desejar a utopia, sonhar com a utopia, querer a continuação do homem por meio de uma coisa inimaginável, mas que o ser humano vai conseguir, vai chegar até lá.”

A grande poesia da autora de Ficções reflete esse contágio do poeta para o leitor, que se sente conturbado espiritualmente pelo incêndio de palavras, imagens e ideias que se comunicam até ele, de forma indelével como uma cauterização a fogo. Inspirada claramente no Renascimento, no classicismo de Portugal, com o lirismo de Camões e, mais remotamente ainda, nas “cantigas de amigo” medievais lusitanas, a poetisa arranca da sua paixão centelhas de palavras que se transmitem, em toda a sua intensidade dostoievskiana, a quem a lê, naquela arcaica e sempre presente dualidade de tempo e poesia, tempo e amor, tempo e morte que já os primeiros poemas, imperfeitos, tateantes, assinalam. Agora é com um esplendor inédito na nossa poesia que explodem as imagens comovedoras do apelo ao amado pela amante, ambos ameaçados pelo decurso inexorável do tempo:

“Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.

E eu te direi que o nosso tempo é agora.

Esplêndida avidez, vasta aventura

Porque é mais vasto o sonho que elabora

Há tanto tempo sua própria tessitura.

Ama-me. Embora eu te pareça

Demasiado intensa. E de aspereza.

E transitória se tu me repensas.”

Três versos apenas definem esse clima vulcânico, sem reservas nem compromissos, que o amor instaura, como nos poemas de Petrarca e Laura:

“Minha medida? Amor.

E tua boca na minha

Imerecida.”

A poesia brasileira, recatada, não registra tal veemência erótica nem nos poemas de Gilka Machado, de Vinícius de Moraes, nem de Marly de Oliveira: o próprio Carlos Drummond de Andrade faz alusões sutilíssimas à tirania do amor. Hilda Hilst, não: toma como emblema nada menos que um dos três ou quatro mais perfeitos poetas da língua inglesa, John Donne, do século XVII, para negar, através do frêmito da palavra e da carne mortal a preponderância do tempo ou da morte sobre o ser humano. Todo hic et nunc, o “aqui e agora” ambicionado pelos grandes cantores do amor em Roma, como Catulo, ela pode dizer claramente:

“Soergo meu passado e meu futuro

E digo à boca do Tempo que os devore.

E degustando o êxito do Agora

A cada instante me vejo renascendo

E no teu rosto, Túlio, faz-se um Tempo

imperecível, justo

Igual à hora primeira, nova, hora-menina

Quando se morde o fruto. Faz-se o Presente.

Translúcida me vejo na tua vida…”

Com uma loquacidade assim intensa, abrasadora, Camões, Petrarca ou Elizabeth Barret Browning falariam da urgência do amor: “De que não cabe medida se se trata/ Dessa coisa incontida que é o amor”. O amor está ameaçado mas não anulado pelo tempo a não ser na sua realização mortal: “Aceita-me./ Que o Tempo, peregrino, se faz sempre/ Mas nunca a contento perdurável./ E se demoras muito, uns imensos destinos/ Distanciam de ti esse todo amoldável/ Que faz em mim. E milênios hão de passar/ E serás velho e triste.” Antes, como num poema de cortesã culta do peíodo clássico chinês, ela chamara o amado para compartilhar com ela as delícias do encontro fremente, em versos de um arrebatamento incoercivel:

“Se for possível, manda-me dizer:

Manda-me dizer e o paraíso

Há de ficar mais perto, e mais recente

Me há de parecer teu rosto incerto.

Manda-me buscar se tens o dia

Tão longo como a noite. Se é verdade

Que sem mim só vês monotonia

E se te lembras do brilho das marés

De alguns peixes rosados

Numas águas

E dos meus pés mohados, manda-me dizer:

E revestida de luz te volto a ver.”

A perpetuidade do fugidio essa aparente discrepância já buscada por Góngora na Espanha culteranista, deve ser suplicada não só aos deuses e a Cronos, o tempo, que tudo devora igualmente, mas também à morte, para que ela não se interponha entre o amor e a sua realização ansiada: seria possível cultivar a morte, firmar com ela um pacto faustiano que dilatasse os dias humanos de gozo?

“Morte, minha irmã:

Que se faça mais tarde a sua visita.

Agora nunca. Porque o amor de Túlio

O vermelho da vida, pela primeira vez

Se anuncia fecundo. Diante da luz do sol

O meu rosto noturno de poeta te suplica

Que te demores muito contemplando o mundo.

Que se detenhas ali entre a roseira

E o junco,

Ou talvez, para teu conforto, assim te

estendas à sombra das palmeiras, sonolenta.

Morte, contempla. Poupa, quem por amor,

Em tantos versos, também te fez rainha.

Esquece o poeta. Porque o amor de Túlio

O vermelho da vida, pela primeira vez

Secreto, se avizinha”

Se o amor, concreto ou imaginado, aventura sonhada ou realidade lembrada, foi o fulcro desse júbilo, desse ardente noviciado, dessa memória celebrativa, dessa paixão incontível, nas Odes Mínimas, o Leitmotiv desde os primeiros poemas sensível, o da presença da morte, torna-se uma polifônica cerimônia de encantamento ritual da própria morte. A magnífica poetisa enlaça a morte desde a sua concepção mental: “Te recriar nos arco-íris/ Da alma, nuns possíveis/ Construir teu nome” até sua irmanação no tempo, ambos, o humano e sua morte, ultrapassados pela ampulheta, o relógio, o calendário, a clepsidra:

“Nós, consortes do tempo

Amada morte

Beijo-te o flanco

Os dentes”

A morte surgirá de que forma? “Virás criança/ num estilhaço de louças?” Sempre a sorrateira presença da morte se revela onipresente, num corpo a corpo com a poetisa, duas mulheres numa luta final, mas nos intervalos do duelo já reconhecida como a que insidiosamente se insere em tudo, antes mesmo da sua noção ter-se feito medo:

“Funda, no mais profundo do osso.

Fina, na tua medula.

No teu centro-ovo. Rasa, poça d’água

Tina. Longa, pele de cobra, casca.

Clara numas verticais, num vazado sol

Da tua pupila. Paciente, colada às pontes

Onde devo passar atada aos pertences da vida.

Em tudo és e estás.”

A morte, onipresente e também caprichosamente onipotente, pode, a seu bel-prazer, alterar, estancar a vida estuante: “E sendo criança/ Não tocavas em tudo/ E o instante se fazia/ insipide e nada?” Será a morte um enigma decifrado em seu aspecto oculto para que a reconheçamos quando chegar?

“Um peixe lilás e malva

Num claro cubo

De sons e água.

Assim te mostrarás”

Rubro mandala, o nada, negra cavalinha, o riso, rosto de ninguém, acrobata de guarda-sóis, brevíssima contração: mil rostos tem a Morte para o mortal entendimento até tornar sua presa

“E crivada de hera?

Mas só pensada

Em matemática pura”

São rituais de intensa musicalidade e profundas iluminações filosóficas que circundam essa presença invisível, esse tótem inconsútil, a morte, súbita, soez, ou compreensiva e irmanada com a insignificância do humano nestas magnificas e curtas Odes Mínimas, verdadeiros haikais da grande poesia brasileira em torno do termo de toda jornada, a morte que Camus e Kierkegaard já colocavam não como final mas como centro único para o qual convergem os círculos concêntricos da vida decorrida de todo ser vivo.

Hilda Hilst mantém a sigularidade de se ter mantido incólume a todos os modismos que marcaram a nossa poesia a partir de 1922. Ela mesma se confessa “sem afinidade alguma” com o movimeno modernista; nem na geração de 45 ela encontraria um nicho, menos ainda no falso populismo poético ou na onda concretista e da praxis que na década de 60 varreram o Brasil. Sua poesia, ao contrário da sua prosa, inteiriça, surgida íntegra como de um só jato, mostra cesuras, fragmentações, um aprendizado, enfim, ao qual não escaparam os supremos clássicos da literatura. Dissentimos, no entanto, dos que veem na sua poesia qualquer parentesco com Rilke e sua invocação do Anjo ou que nela querem ver uma encarnação de uma poesia feminina no sentido de feminista, emancipatória. Hilda Hilst é demasiado ampla, rica, complexa e atemporal para ser incluída em qualquer rótulo, por mais abrangente que seja. Os dois últimos volumes da sua poesia confirmam a grandeza de sua prosa poética de Qadós e Ficções, mas até essa classificação por gêneros ela não terá, com a sua obra pioneira, abolido? Como ensinara Merleau-Ponty:

“Se realmente toda ação é simbólica, então os livros são, à sua maneira, ações”

Hilda Hilst não comunica ao leitor uma vivência pessoal: ela incorpora o leitor a essa vivência doravante compartilhada; uma vez lidos, seus livros passam a integrar a nossa realidade, a nossa memória o nosso frêmito. Meridianamente, talvez inconscientemente, é da sua própria literatura que ela fala ao dizer que Bertrand Russell postulou em seu livro Misticismo e Lógica a existência, aceita pelos cientistas e matemáticos de “pontos de ficção”. “Pontos de ficção” aqui nada significam de literário, imaginário, irreal, onírico, surrealista: em Física e Matemática, ao contrário, um “ponto de ficção” pode levar a efeitos físicos reais, palpáveis. Em suas palavras: “A partir dessas ficções você passa a ter experiências concretas, pragmáticas.”

São palavras que qualquer leitor de seus livros poderia subscrever:

“Para mim, desde que li esse livro, as ficções deixaram de ser o imaginário apenas para fazerem parte do real, tangível, é como se você, entrando num plano de passionalidade total, pudesse sentir várias coisas brotando em você, acordando em você. A totalidade do ser humano seria o sentido de compreender o homem, teu próximo, e dar a vida a ele. Fazer da tua linguagem uma própria exensão da tua própria atuação e aí, sim, você começa a ser livre”. Raramente na literatura a imaginação criadora e seus “pontos de ficção” espelharam tão fiel e transcendentemente a doação e a liberdade.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Os versos de Hilda Hilst, integrando a nossa realidade .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.