A fascinante aventura do Marco Polo português

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1983-08-06. Aguardando revisão.

Fernão, mentes? Minto! Fernão Mendes Pinto, autor português do século XVI, não escaparia nunca mais a este gracejo, para sempre ligado, ironicamente, a seu nome. Nem neste ano em que se comemoram os 400 anos de sua morte (1509? - 1583), deixou a companhia de teatro de Cascais, em Portugal, em visita recente ao Brasil, de armar toda uma peça em torno a este mote, de que participam, seriamente, historiadores e pesquisadores eruditos ilustres, de várias nacionalidades. Embora publicada postumamente, sua obra longuíssima, a Peregrinação, é criticada como sendo fantasiosa, mentirosa, falsa, cheia de erros factuais ou passagens inventadas, tantas são as incorreções evidentes que nela pululam.

Seus ardorosos defensores menosprezam tais bagatelas: como um homem que passou 21 anos da sua vida aventureira nos paises longínquos do Extremo Oriente não cometeria enganos quanto a datas, lugares, pessoas, eventos, já recolhido a Portugal, recordando apenas tudo que lhe acontecera décadas antes? Marco Polo, o grande viajante italiano, por acaso não cometera deslizes tão ou mais graves do que o cronista português?

A batalha em torno da autenticidade maior ou menor desse relato que enche mais de mil páginas interessa pouco à literatura. Fernão Mendes Pinto pode, sem dúvida, não ter o rigor e muito menos a cultura erudita de um historiador que escreve sobre a Ásia, como João de Barros. Em compensação, nada tem do estilo duro, seco, deste scholar seu tanto arrogante. E se não teve nenhum renome, em vida, como escritor ou narrador de viagens, pelo menos divide com o obscuro Diogo do Couto e suas Décadas sobre a colonização lusitana na Ásia a franqueza, a honestidade de relatar fatos desabonadores a respeito de seus compatriotas, conduzido, porém, por um patriotismo e por uma contínua demonstração de fé católica que, pelo menos, o salvou dos rigores - severíssimos - da Inquisição da Igreja Católica, que não perdoou nem mesmo os nomes maiores do seu século, o Quinhentismo, como Camões e o Padre Vieira, cujas obras-primas sofreram a tesoura da Censura eclesiástica.

Fernão Mendes Pinto impressiona, ainda hoje, por aquilo por que a literatura hispano-americana - como os cubanos Alejo Carpentier e Lezama Lima, o argentino Jorge Luís Borges, oe mexicanos Rulfo e Arreola e o colombiano García Marquez - se impôs, nas últimas décadas: o seu merveilleux exotique ou, em jargão dos que falam o critiquês, o “realismo maravilhoso, mágico”, de abolição do real, do racional, em prol da imaginação delirante e do encantamento que acompanham uma natureza luxoriosa nos trópicos. Fernão Mendes Pinto frequentemente descreve paisagens asiáticas deslumbrantes, assim como ainda hoje deixam atônitos os ocidentais as visões dos templos de Angkor-Vat, os rituais eróticos iniciáticos do Tantra-yoga indiano ou os feitos paranormais dos monges tibetanos. A descrição que faz das novidades que vê é viva, gráfica, de um barroquismo cintilante, salpicada de pormenores exóticos referentes a línguas e costumes desconhecidos na Europa:

“Estes quatro moços e o Mitaquer, que era o que nos guiava, passaram d’aqui por um corredor armado sobre vinte e seus colunas de bronze, e d’elle entrámos e uma grande sala de madeira, como terecena, na qual estava muita gente nobre, em que havia alguns estrangeiros mogores, e persios, berdios, calaminhans, e bramás do Sornau rei do Sião. E passada esta casa, em que não houve detençã de cerimônia nenhuma, chegámos a outra, que se chamava Tigihipau, na qual também havia outra grande soma de gente, porém estava armada, e toda em pé, a qual, posta em cinco fileiras, tomava todo o comprimento da casa, e toda esta gente tinha seus traçados guarnecidos de chaparia de ouro postos às costas.

Aqui detiveram o Mitaquer um pouco, fazendo-lhe, com muitas cerimônias, algumas perguntas, e dando-lhe juramento sobre as maçãs que os quatro moços levavam, o qual elle tomou em joelhos, beijando o chão por três vezes.

E com isto lhe deram entrada por poutra porta, que estava defronte, e chegámos a um grande terreiro, feito em quadra, como criasta (claustro) de um convento, no qual estavam quatro fileiras de estátuas de bronze, em figura de homens, a modo de selvagens, com maças e coroas do mesmo, porém, tudo cozido em couro, os quais ídolos ou gigantes, ou que quer que eram, tinham de altura vinte e sete palmos e seus de largo nos peitos, eram nos semblantes assaz feios e mal assombrados, com cabello crespo e feito em grenhas a modo de cafres; e perguntando nós aos tártaros pela significação d’aquellas figuras, nos disseram que eram os trezentos e sessenta deuses que fizeram, os dias do anno, para que em todos elles a gente continuamente os venerasse, pelo benefício da creação dos frutos que n’elles a terra produze, os quaes o rei tártaro ali trouxera de um grande templo chamado Angicamoi que tomára na cidade Xipatom, na capella dos jazigos dos reinos da China, para triunfar d’elles, quando embora tornasse para sua terra, por que se soubesse por todo o mundo, que, apesar do rei da China, lhe cativára os seus deuses.

Neste terreiro, que digo, entre um laranjar, que no meio d’elle estava, cercado de uma latada de era alecrim e roseiras, com outras muitas diversidades de ervas e flores, que não há n’esta nossa Europa, estava uma fantástica tenda, armada sobre doze baluastres de pau de cânfora, enxerido cada um d’elles em quatro troços de prata, a modo de cordões de frades, mais grossos que um braço, dentro da qual tenda estava uma tribuna rasa, a modo de altar, guarnecida toda em roda de folhagem de outro muito fino, com um guarda-pó por cima a modo de sobrecéu, marchetado de muitas estrellas de prata e com o sol e a lua e algumas nuvens, umas brancas e outras da côr d’aquellas que aparecem quando chove, todas feitas de esmalte, com tanto artifício, e tanto ao natural, que quasi se enganavam os olhos com ellas, parecendo-lhe que traziam agua, e tudo o mais perfeito, assim na proporção, como na pintura.

No meio d’esta tribuna estava uma grande estátua de prata, deitada em um leito do mesmo metal que se chamava Abicau Nilancor, que quer dizer deus da saúde dos reis, que também se tomára no templo de Angicamou, de que atrás fiz menção, e ao redor d’esta estátua estavam trinta e quatro ídolos, do tamanho de meninos, de cinco até seis annos, postos todos, por duas fileiras, em joelhos, e com ambas as mãos levantadas para ella, como qautro moços muito gentis-homens, e ricamente vestidos, que com seus incensários, a rodeavam de fóra de dous em dous, os quaes ao som de certas pancadas que se davam em um sino, se prostravam por terra, e se incensavam uns aos outros, dizendo em voz alta, como quem canta entoado: - Hixapu alitau xucabim tami tami ora pani maguo - que quer dizer - chegue a ti nosso brado, assim como cheiro suave, por que nos ouças.

Em guarda d’esta tenda, estavam sessenta alabardeiros, que, afastados um pouco d’ella, a cercavam toda em roda, os quaes estavam vestidos de couro verde escudado, com suas celadas ricas e bem lavradas nas cabeças, o que, tudo junto, é um espetáculo assaz formoso e de grande majestade”.

Fernão Mendes Pinto não assinala apenas os traços que qualquer viajante europeu de 1500 assinalaria como “bárbaros”, pois não se conformava com os regulamentos da Europa. Imparcialmente, transcreve com fidelidade um sem-número de observções dos povos asiáticos que deixam transparecer a acuidade e perspicácia de suas reflexões. Um exemplo típico é a indagação do rei dos tártaros ao saber que o reino de onde provinham os visitantes de sua terra era rico, muito grande e poderoso: “Que é o que vindes buscar a ess’outra (terra)? Por que vos aventuraes a tamanhos trabalhos?”, arrematando com esta judiciosa conclusão: “Conquistar esta gente terra tão alongada (tão distante) da sua pátria, dá claramente a entender, que deve de haver entre elles muita cobiça e pouca justiça”. Recebendo como resposta do velho rajá que lhe estava ao lado a confirmação sábia: “Assim parece que deve ser, por que homens que por indústria e ingenho voam por cima das pagas todas, por adquirirem o que Deus lhes não deu, ou a pobreza d’elles é tanta, que de todos lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cubiça é tamanha que por ella negam a Deus e a seus pares”.

Ou a resposta sucinta que o conquistador e navegante Antônio de Faria obteve de representantess tidos por “pagãos” e “ignaros” sobre compreensão que tinham do mundo. “A que responderam que a verdadeira verdade de toda a verdade era terem e crerem haver um só Deus todo poderoso, o qual assim como tudo criará, tudo conservava, mas que se o nosso intendimento às vezes se embaraçava na desordem e desconformidade de nossos desejos, não era da parte do Creador, em que não podia haver imperfeição, senão da parte do pecador, que por ser impaciente, julgava segundo o humor do seu mau coração” - uma meditação mística que Bernard de Clairvaux, Meister Eckhart e, modernamente, Martin Buber, já tinham expresso de formas diferentes, ao se referir ao “eclipse de Deus” diante da pequenez do ser humano.

É crível que Fernão Mendes Pinto tivesse um sucesso fulminante, quando sua obra foi publicada, depois da sua morte. Toda a Europa comentava a novidade das regiões visitadas, a maravilha dos costumes orientais, com seus jazigos de ouro para bonzos e deuses, seus piratas crudelíssimos, sua organização administrativa surpreendentemente avançada como a de Pequim, todo o embate de uma força colonizadora europeia, em frágeis barcos, a unir, com seus primeiros contactos com um mundo anteriormente fechado, aquele que seria o planeta interdependente de hoje.

Sobressai claramente da leitura fascinante desta Peregrinação a noção de que os portugueses não foram apenas os que primeiro puseram pé no atual Japão, muito antes do comandante Perry, dos EUA, há apenas 130 anos. Também foram o primeiro povo a deixar crônicas de seus contactos com outras culturas sem par na história do colonialismo europeu. Por certo, nem os portugueses deixaram de sacrificar à sua cobiça as riquezas do Brasil, de Angola, de Moçambique; no entanto: Cortés deixou relatos tão impressionantes das culturas indígenas que encontrou no México, ou Pizarro mencionou sequer a cultura inca dos países da América do Sul que conquistou para a Espanha? No entanto, ao contrário dos ingleses, franceses, belgas, holandeses, alemães, foram os portugueses que, a par do saque material indubitável, não instituíram o desprezo racial e cultural como premissa ou preconceito em seu contato com povos não provenientes da Europa.

Esta Peregrinação registra passos sumamente interessantes do contato entre conceitos diferentes de cultura, de religião, de vida, 400 anos atrás. O próprio narrador é personagem dessa roda-viva em que de um capítulo a outro ele e feito prisioneiro, escravo, depois noviço dos jesuítas, embaixador e mais tarde atendente voluntário e leigo dos pobres e enfermos, que assistia pessoalmente, com toda a humildade. Só o fanatismo da Inquisição, determinada depois que à Igreja foram negados os bens materiais resultantes de confiscos, explicaria a cegueira dos censores que ao permitirem a impressão desta obra não atinaram com o seu componente revolucionário e ideológico. Quando, por exemplo, São Francisco Xavier, objeto de extrema devoção do autor, abençoa os conquistadores portugueses, o leitor deste final de século XX se recorda nitidamente do tema do Exército alemão na Primeira Guerra Mundial - Gott mit uns (Deus está conosco) - e mais sinistramente ainda da “benção” dos bispos católicos alemães dispensada às tropas, marinheiros e aviadores da Alemanha nazista que partiam rumo à conquista da Polônia, da Tchecoslováquia ou da Dinamarca, impotentes diante do poderio militar hitlerista. Da mesma forma, o arrazoado teológico do Santo que converteu tantos orientais ao Cristianismo será talvez o ponto mais fraco deste livro de tantos volumes, tal o bocejo que causa no leitor, além de não o convencer da necessidade de uma conversão a um Cristianismo desnaturado diariamente pelos fatos e feitos da opressão de alguns povos por outros auto-ungidos de uma “superioridade” tão ridícula quanto exorbitante e monstruosa.

Afinal, espelho fiel das suas atribulações físicas e espirituais, este livro de peripécias, andanças, espantos, êxtases, fascínio e encanto raríssimos pertence, provavelmente, mais à Literatura do que propriamente à História. Fernão Mendes Pinto é, possivelmente, infinitamente mais romancista, mais poeta, mais ficcionista do que um grave, circunspecto e cartesiano historiógrafo. Se Camões retratou, com a sua genialidade, as gestas heroicas de Portugal nos Lusíadas, o cronista das viagens marítimas falsamente denominadas “descobertas”, mas nem por isso menos pioneiras no seu arrojo, foi na prosa, Fernão Mendes Pinto.

A par do confronto entre civilizações divergentes, as do Oriente e a do Ocidente, ele prenuncia a inexistência de uma “inferioridade” de povos inteiros julgados por um critério estreita e abusivamente eurocêntrico. Muito mais tarde Ruth Benedict, Margaret Mead, Claude Levy-Strauss demonstrariam, na área da antropologia, quanto são relativos os conceitos de “cultura” e quantas vezes os chamados “primitivos” são mais complexos, mais sutis, mais sábios do que a tecnologia utilitarista e materialista ocidental dominadora.

O autor português talvez queira ter dado ao título de sua jornada por tantos mares nunca dantes navegados o valor simbólico de uma progressão espiritual. Desfazendo-se dos bens terrenos, fundando uma família e deixando às filhas como única herança este maço de páginas interessantíssimas, ele não terá dado o sentido de avanço, de evolução espiritual a esta Peregrinação, que termina com o reconhecimento da validade e do pó que representam as inúteis lides humanas em prol da riqueza, da fama, do renome? Suas palavras finais nos autorizariam a uma interpretação deste gênero ao falar de “velas ao vento de largas esperanças, que de ordinário se desfazem naquilo de que se sustentam”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1983) 2022. “A fascinante aventura do Marco Polo português .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.