Abismo de Rosas

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1976-10-2. Aguardando revisão.

Wie is dan in hemelsnaam deze Dalton Trevisan?!”, perguntou estupefato o escritor holandês August Willemsen, ao conhecer a obra do vampiro curitibano: “Quem, em nome de Deus, é este Dalton Trevisan?!”

A exclamação é justa, como demonstra em saboroso comentário Otto Lara Resende. Até diante deste seu último livro (Abismo de Rosas, Editora Civilização Brasileira, 123 páginas) a pergunta continua válida. Dalton Trevisan é plural em sua aparente monotonia. Carrossel a desfilar sempre com os mesmos cavalos e carruagens, este Abismo das Rosas revela, porém, imagens diferentes dos mesmos temas repisados pelo autor de Cemitério dos Elefantes.

A lubricidade incontida, a guerra conjugal levada até os limites, a solidão e incompreensão que sitiam os velhos, a literatice brasileira sentimental que ecoa nas canções de Nélson Gonçalves como nestes contos: “Ao rodopio da valsa nasceu o nosso amor”, o inferno sartriano que representam os outros, a opinião alheia, o disse-me-disse, o martírio de mulheres enrugadas, anciãs mártires casadas com Don Juans perrengues, mas sátiros ainda insaciáveis em sua coleção de ninfas.

Fica, portanto, claro o aviso: quem quiser novidade, nem se amofine, releia os livros anteriores. Isso para o leitor apressado, pouco exigente, que boceja quando vê a primeira semelhança de tema ou de tratamento nesse caleidoscópio de cores entre trágicas e hilariantes que Dalton Trevisan vem apresentando, de livro em livro.

Para seus admiradores incondicionais ou quase, como o que assina estas mal traçadas linhas, é um deslumbramento. “A Gorda do Tiki Bar” seria um avatar daquelas irmãs elefantinas que, ociosas, comiam bonboms o dia inteiro à espera de homens em livro anterior? “As Neves de Curitiba” são como que uma versão brasileira de Rashomon, a história trágica da paixão e violência nipônicas transplantadas para a visão pessoal de cada observador. Há contos-relâmpago que trazem uma erudição cifrada como na confissão de uma só linha:

“Irmão me fiz de barata leprosa” – como se de Curitiba Dalton Trevisan se fizesse irmão do Gregor Samsa da Metamorfose de Kafka, na longínqua, só geograficamente longínqua, Praga de inícios deste século.

Ou, parodiando o conto religioso de Eça de Queiroz em que Jesus aparece como deus ex machina para uma criança paupérrima e doente:

“E abrindo a porta:

Além das oblíquas citações e brincadeiras eruditas, em que o autor alude a Saroyan em “O Velhinho Audaz no Trapézio Voador” ou ao best-seller kitsch E o Vento Levou, “Amanhã é outro dia”, segundo Scarlet O’Hara ou até a Rimbaud: “meu inferno tem várias estações”, há um sensível aprofundamento trágico da experiência erótica.

Livres do banimento imbecilizante de uma Censura estreita, que permite, no entanto, que uma aviltante pornochanchada adube o cinema brasileiro, eclodem contos audazes, em que se aborda o tema do homossexualismo feminino, a necrofilia, a morte (esta, de forma inesquecível, no conto “A Roupinha de Marinheiro”) entremeando as mais abissais questões filosóficas da precária condição mortal do homem com elementos tirados do mau gosto brasileiro: o cadáver do menino calçado de “sapato de verniz, sola preta imaculada para andar no céu”. E um tom dissimuladamente acidental que o maravilhoso escritor paranaense usa para camuflar sua comoção como nas duas frases colocadas uma depois da outra: “Com o tiro ele caiu sobre a mesa. Derrubou a caneca de louça com a inscrição ‘Amor’”.

Ele não propõe tolerância nem demonstra espanto, apenas registra fatos que a sensibilidade comum se recusa a ver, como o velho que procura no túmulo a prostituta que lhe dera enlevos indizíveis em vida, sempre com um jogo sutilíssimo entre o sacro e o profano, a mitologia popular e o naturalismo mais prosaico: o desamparo da velhinha diante do menino morto, com um restinho de broa de fubá preso entre os dentes, uma guardanapo se confunde com o lenço de Verônica que enxugou o rosto ensanguentado e lacrimejante de Cristo carregando a Cruz rumo ao Calvário.

Dalton Trevisan é dos primeiros voyants disfarçados de voyeur da literatura brasileira, um dos escritores mais metafísicos sob a enganosa e proposital aparência de realista despojado de códigos éticos ou da percepção de um sobrenatural que ronda a vida objetiva, terra a terra, como a morte morrida. A morte com seus rituais humanos, expressão de espanto diante do Enigma que nenhuma solução política elucida, embora possa bani-lo como dissolução meramente biológica de um ser arraigadamente heideggeriano em sua lucidez e sua plenitude existencial, sem Deus e sem outro metro que não seja o homem em posição central de todo o universo criado.

Abismo de Rosas é isso mesmo para quem cultua Dalton Trevisan sem chegar ao paroxismo de venerá-lo nem erigi-lo em Stálin adorável da nossa literatura: um abismo de prazer de leitura, de pasmo, de desafio para a sensibilidade e a inteligência, ambas solicitadas a cada linha, em cada conto, fragmento de areia que, como queria Blake, contém, no seu microcosmo do Infinito, da mesma forma que o feto abortado já tinha nome para o atestado de óbito: “Se nome era Ricardo”. Quem, em nome de Deus, é este Dalton Trevisan? Um mago, um bruxo, um louco, um fascinante escritor? Tudo isto, leitor, e o céu também.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1976–10AD) 2023. “Abismo de Rosas.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.