O mendigo, o moleque e o malandro de João Antônio estão de volta. Saindo do submundo para a galeria dos heróis marginais

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1975-10-4. Aguardando revisão.

João Antônio é que atinge lascas mais próximas de medula. Sua classe não tem classificação social, muito menos perspectivas de ascensão ou transformação em potenciais integrantes da sociedade que, rotulada “de consumo”, na realidade consome os que a consomem: a estrutura deglutindo a carne e a alma em troca de trinta dinheiros escassos açulados pela publicidade criadora de necessidades supérfluas.

Já em Leão de Chácara o jovem autor paulista se afirmara como um dos talentos maios violentos, como o diamante bruto que faria a fortuna de uma literatura agora artificialmente anêmica e desvalida. Com a reedição oportuna de Malagueta, Perus e Bacanaço (Editora Civilização Brasileira, 159 páginas, coedição barateada pelo Instituto Nacional do Livro) ele cimenta mais ainda a solidez de sua vocação, a exuberância fantástica de sua seiva narrativa.

Que não fiquem dúvidas nem ilusões: não se pretende aqui confrontar autores nem ressaltar superioridades. João Antônio complementa tufo por tufo a mesma zona vegetal dos personagens de Dalton Trevisan. Só a faixa de terra é que é diferente, de diferentes conotações, de intenções e naturezas intrinsecamente diversas. Porque o mundo de João Antônio é o sub, o anti, o infra, o anterior a qualquer status estabelecido, os marginais irmãos dos beatnicks e hippies, de Céline e Genet, e Kerouac e Ginsberg, de Buñuel, Rossellini e Fellini.

Portanto, se Dalton Trevisan e na literatura moderna do Brasil o primeiro voyant, como o Baudelaire de uma Curitiba de Poèmes en Prose matizadíssima, João Antônio é seu Rimbaud, João Antônio convive com as prostitutas, as cafetinas, os invertidos, os tiras corruptos que se confundem com os ladrões, os malandros, os jogadores de sinuca e os favelados e mendigos. Todos formigando debaixo dos viadutos de São Paulo, órfãos em suas noites de luz néon, pedintes na Lapa, sortudos no bilhar, emersos por horas das cafuas, mazelas da cidade que os escorraça, com o nariz tapado, para o Juqueri ou a Casa de Detenção.

Seu longo conto que dá o título ao livro é uma benção. Cai como uma chuva numa terra já ressequida já há anos de qualquer verdade literária ou humana.

O percurso dos três malandros, o velho mendigo doente, Malagueta, o adolescente Perus, que fugiu da cidade poluída pelo cimento da fábrica de J. J. Abdalia, e Bacanaço, o malandro mulato de anel no dedo que sonha com uma “mina”, uma mulher de alto coturno, com “lordeza” na praça, apartamentos, prostituição de luxo, quatro mil cruzeiros por dia de lucro em sua mão de rufião ladino – é um percurso da própria literatura brasileira. Mais: João Antônio já é um porta-voz daquele que os economistas do Fundo Monetário Internacional classificaram de Quarto Mundo: as nações da África Negra crescentemente assoladas pela fome, do deserto do Saara, que avança 5 kms por ano adentro de sua possibilidade de sobrevivência; do Haiti, da Bolívia, das camadas do Brasil intocadas pelo milagre econômico. Acompanhar os três é estampar sobre uma tela cinza a marcha das esperanças alvoroçadas para o ponto inicial e final – o ponto zero, o fracasso –, quando se fecha o círculo, geográfico e vivencialmente, na Lapa. É ouvir uma melodia baça, sutilíssima, que acompanha os filmes italianos da resignação perante a inelutabilidade da miséria, um De Sica irmão dos deserdados, mas que só pode expor, sem mudar, a cama noturna forrada de jornais debaixo de pontes abrigadoras da chuva.

Há quase necessidade de um glossário: o autor capta essa realidade viva com seu linguajar – quizilentos, panca, uma crepe sofrida, caçapa, dar estia, eu me espianto, uma mulher escanzelada, tropicavam – e com seus nomes Praça, Paraná, Detefon, Estilingue, Lincoln, Mãozinha, Carne Frita. Ele não aprende de fora: ele convive com essa realidade, pulula com ela na rede geral que os colhe a todos.

Porque João Antônio nos força a virar o mundo do avesso. Do outro lado do bordado cintilante do progresso, das ruas ajardinadas, das famílias felizes e de casas e salários fixos, há a parte enviesada, com pedaços de linha aparecendo, fiapos cortados, descontinuidade de cor, fragmentos súbitos, sem arremate nem beleza estereotipada. João Antônio prossegue a revolução ético-estética do cinema neorrealista italiano e do Baudelaire, primeiro a enfocar as sobras humanas da grande cidade. E com isso ele cria uma poesia e um ritmo novo, inéditos totalmente no Brasil, apesar de muitos autores terem remexido esse entulho como Aluísio de Azevedo em O Cortiço, Lima Barreto e Antônio de Alcântara Machado, entre outros.

A diferença está entre uma realidade observada e uma realidade compartilhada.

É uma prosa poética que continua mais Gregório de Maros Guerra na sua desmistificação de hipocrisia geral do que o romance do Nordeste, de meridiana denúncia social. João Antônio impregna suas páginas de um lirismo contido, mas eloquentíssimo em sua surdina:

“Mas o misticismo da luz elétrica, de um mistério como o deles, só cobria solidões constantes, vergonhas, carga represada de humilhação, homens pálidos se arrastando, pouco interessava se eram sapatos de quatro contos, cada um com seus problemas e sem sua solução e com chope, bate-papo, xícara retindo café, iam todos juntos, mas ilhados, recolhidos, como martelo sem cabo. Nem era à toa que aquela dona, criaturinha magra, mina bem nova ainda, se apagou no bamborete do canto e trazia nos olhos uma tristeza de cadela mansa… Quando a justa, perua preto-e-branca dos homens da polícia roncava no asfalto, a verdade geral se punha na maioria dos olhos: Lugar de vagabundo é na Casa de Detenção”.

João Antônio não tem o ceticismo de um Juan Carlos Onetti nem a sofisticação de um Manuel Puig, no entanto, é a mais virial e renovadora presença do conto latino-americano em que se insere, transcendendo os limites de uma única literatura. Sua visão alia o leitor sem artificialismos, cheira a Jack London, a Gorki, do Zola de Germinal abrange a urina e a pulga, o punhal e o taco de bilhar, os japoneses da Liberdade e as lésbicas masculinizadas do crime e da calçada. Ela traz uma lucidez ao acontecimento múltiplo que é a literatura social sem trair nenhum elemento desse binômio. Ao contrário: transcende-os, englobando-se numa compaixão no sentido mais radical e etimológico do termo, e com fulgurações de uma filosofia religiosa, cristã, que banhasse os seres humanos de uma luz palpitante. São os mortos que ele ilumina, os Lázaros e “lazzaroni” que ele coloca diante do espectador.

E cumpre a função mais vital e mais perene da literatura que não prega, não estetiza, não utiliza: transforma o observador, incute-lhe valores novos, explosivos, não panfletários. Por isso seus livros não acabam numa visão simplista – nem ideológica nem estética – porque seus livros são estão aí para servir de teses. Eles são. E na plenitude de serem, pela sua própria existência, eles forçosamente modificam a rotina, ramificam-se do estômago e do coração até o cérebro, tic-tac finalmente uníssono com a entrada e a saída de ar e de sangue no pulmão. Sem apaziguar, eles harmonizam disparidades e restituem ao leitor o ser humano integral, sem ardis, sem artifícios, sem catequeses, sem apologias morais.

Como toda modificação de ângulo e enquadramento, para uns ele será um autor incômodo. Para os que pensam e creem como nós numa modificação do homem sem a brutalidade maceradora dos totalitarismos, João Antônio só merece a nossa gratidão, nossa admiração e nossa confiante esperança.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1975–10AD) 2023. “O mendigo, o moleque e o malandro de João Antônio estão de volta. Saindo do submundo para a galeria dos heróis marginais.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.