Cardoso Pires reinventa Portugal
José Cardoso Pires sobressai como possivelmente o maior escritor português em um país de revigorante efervescência literária atual. A escritura ática, elegíaca, da poesia de Eugênio de Andrade não lhe faz sombra. Nem tornam menor a sua criação prosadores com a vitalíssima reflexão de José Saramago e seu afresco do Memorial do Convento, ou a obra mais perfeita, maçã amarga amadurecida nas cãs de um Virgílio Ferreira, Para Sempre, nem os livros marcantes de muitos mais: Fernando Botelho, David Mourão-Ferreira, Agustina Bessa-Luís - a lista poderia ser estafantemente extensa.
Através de romances sutis de investigação social sem dogmas como O Delfim; de uma loucura política como o golpe ensandecido de um homem só contra o regime fascista em A Balada da Praia dos Cães; ou retrato feito de escárnio e identificação humana de uma nação subjugada décadas a fio pelo salazarismo que é O Anjo Ancorado, ele nunca se deixou subjugar por palavras de ordem inquestionáveis, viessem de onde viessem. Agora, Alexandra Alpha, seu mais recente e extraordinário romance (Editora Dom Quixote, Lisboa) refuta os mitos do “povo” arqui-vomitados pelos políticos que ordenham as tetas pacientes das urnas. Interroga-se sobre as abstrações com maiúsculas - o Povo, o País, o Partido - e conduz o leitor, febricitante, rumo à lucidez… guiado por cegos. Os desprovidos de visão são uma constante de seus contos e episódios esparsos em seus romances: em um congresso de cegos faz-se representar por uma matilha de cães; de outra feita um indivíduo se propõe a vender um cego. Em Alexandra Alpha, naquela que é uma de suas cenas mais lancinantes, um mudo supre sua incapacidade de cantar o fado dançando-o: a transposição simbólica de um país pequeno, nesga de terra entre o biombo imenso da Espanha e o mar, que se inventa a si mesmo. Sem a espera mítica por um Dom Sebastião perdido na bruma da batalha contra os mouros em Alcácer-Quibir, nem voltado para a pesada glória do passado, José Cardoso Pires mistura uma fantasia audaciosa - um anjo que cai na praia carioca do Arpoador ou um jovem que se estihaça contra os rochedos ao se desgovernar sua asa delta, Ícaro de nossos tempos - e aqueles que Jesus afiançou vomitar: os mornos, os que vivem a injustiça social ou o marasmo político castrador do pensamento que são as ditaturas com a mesma indiferença com que observam a entrada em Portugal no Mercado Comum Europeu - “trará lucros para mim?” - ou a entrada dos capitães da Revolução de 25 de Abril em Lisboa. Uma freira acaricia o ventre, ávida de um arredondamento de gravidez inexistente, um homossexual acalanta suas bonecas às escondidas.
Até que ponto Alexandra Alpha representa um corte, uma censura em sua criação literária? Cardoso Pires responde com muita clareza: “Com relação a este livro o que está a preocupar-me muito no campo da criação literária, inclusivamente da sua criação física, é a ideia que as pessoas geralmente fazem da literatura. A literatura se move dentro de temas muito estreitos e estritos, pois não? O amor, a morte, ao passo que estou convencido de que fundamentalmente o ato de escrever radica-se na busca da identidade de cada indivíduo ao mesmo tempo com o meio em que vive e com o seu escrito. Então, o que eu procurei dar neste livro foi, de maneira bastante metafórica, a busca da identidade própria de um país. No caso das nações antigas como a Rússia ou a Inglaterra elas não podem designar: isto sou eu, pois caso contrário estariam estagnadas como conceito nacional.”
Além do que, conforme os períodos históricos, essa identidade é muito cambiante?
“Aí é que está. Há rupturas, há fraturas que são essenciais. A partir desta busca de uma fisionomia que caracterizasse as relações de quem escreve e seu ambiente (sua comunidade ou se quisermos, a sua pátria), neste livro de agora eu inverti os mecanismos de identificação e, seja na história da Inglaterra, do Brasil, de Portugal, da Rússia, de Israel, deparei sempre com tentação do otimismo de todas elas. Daí a verificar que se mitificam todas as noções de pátria pois todas são narradas através de mitos e de mentiras. A História nos torna países mentidos, alterados. E, para mim, uma das funções do escritor é sempre desmentir o país, desmistificá-lo, ainda que isto custe um bocado e que o poder político não goste. A política é otimista, a literatura, não. A literatura por isso em qualquer Estado é sempre contestatória. E essa é a sua contribuição: enquanto o político está satisfeito, o escritor nunca pode estar satisfeito, por melhor que o país esteja. O Portugal que eu mostro pode não agradar a muita gente, Lisboa, por exemplo, é uma cidade povoada de estátuas por todos os lados.”
A estatuária significa a mumificação de um mito não questionado?
“Pois, e eu busco aqui saber qual é o segmento, a classe social que se identifica com essa versão das coisas que lhe é imposta. Veja: uma questão igualmente mitificada ou até mesmo mistificada é a da maternidade: através de tudo o que possa significar para a mulher, a maternidade é uma busca egoísta de auto-identificação de um produto que vai sair e que é dela. Da mesma forma me interessa determinar como essas relações de identificação recorrem muitas vezes a artifícios, a pessoas com dois rostos, a pôr a funcionar uma duplicidade diante da realidade. Com relação a Portugal eu assumo a bipolaridade do amor e do ódio, como o cocu, o marido enganado pela mulher mas que a ama, sente saudades dela, tudo ao mesmo tempo. Faço também um ajuste de contas duplo: com esse provincianismo português de querer parecer cosmopolita a todo custo - e para mim todo cosmopolitismoo se deriva de um profundo provincianismo, de um arraigado sentimento de não se estar à vontade - e com o país que mentiu.”
Para você, nós também, no Brasil, vemos Portugal através de mitos solidificados: os grandes descobrimentos, Camões, Fernando Pessoa, a Revolução dos Cravos? Ou seria a identidade portuguesa diferente pelos séculos afora?
“A diferença está, como você disse há pouco, quando conversávamos, no colonialismo, no engodo salazarista. Mas sou capaz de reconhecer que hoje, com toda a sua frustração nacional, Portugal, é infinitamente melhor do que a pasmaceira fraudulenta dos tempos de Salazar. Hoje temos liberdade e ainda respiro ávido esta liberdade, da qual fui privado nos primeiros 50 anos de minha vida: não me venham cá a tentar embaralhar as ideias. Portugal tem uma alta taxa de desemprego, como a Alemanha Federal, a Inglaterra, os Estados Unidos, a crise é mundial. Mas, senhores, estamos livres de retórica e do horror do colonialismo português em África! Considere as relações de Portugal com Angola, hoje: são fraternas, já se reconhece que o povo português também sofreu atrozmente com a guerra enlouquecida colonialista em que Salazar lançou Portugal.”
Para Cardoso Pires é de fundamental importância sublinhar que, a seu ver, o mito colonialista da “supremacia européia” intrínseca predomina ainda nas relações de muitos países com relação aos Estados Unidos. Para ele, só pode tomar como modelo os Estados Unidos um país que se ressinta de um complexo de inferioridade com relaão à Europa, pois os Estados Unidos são, esmagadoramente, a soma de muitas Europas, muitos países europeus e muitas culturas européias. Adverte que o mito europeu sai caro a um país como a Argentina, que imita servilmente, em sua opinião, o modelo do Velho Mundo. Não se trata, crê, de um país (talvez sua cortesia lhe impeça de dizer neste caso o Brasil também) da América Latina voltar-se para a Europa ou, por ser riquíssimo de recursos continentais e humanos, identificar-se com os Estados Unidos apenas por essa coincidência de grandeza de território e abundância material.
Ele atribui aos países latino-americanos uma pujança própria, uma vitalidade telúrica que ultrapassam a da Europa atual e a própria América do Norte, com todo o seu formidável poderia tecnológico. Talvez, supõe, convenha aos Estados Unidos adjudicar à América Latina um papel subalterno, de um conjunto de países vergado por uma dívida gigantesca, mas aí se esquece que a dívida norte-americana é maior ainda e é mantida artificialmente à custa da totalidade da comunidade que comercia com os Estados Unidos ou que financia seus rombos deficitários. Não que seja possível uma catalogação primária, estulta, dos EUA como um diabo chifrudo, povoado por analfabetos isolacionistas e/ou imperialistas. Nem, por outro lado, podemos cair numa deificação que entra já na lista dos mitos, mistificações e mentiras tanto quanto o slogan antiamericano imbecil.
Inteligentemente, o extraordinário escritor português assinala, obliquamente, sem interferência indelicada no rumo que o Brasil deva seguir, a independência brasileira de modelos externos: sem a sua autonomia e sua própria “invenção” a partir de sua própria experiência, o Brasil encontrará a sua resposta específica para a descoberta, precisamente, da sua autonomia, sem espelhos deformantes. Da mesma forma, instado insistentemente, expõe que Portugal, de fato, faz parte da própria substância brasileira e o Brasil não estaria bem aconselhado, crê, imitando os Estados Unidos avassaladoramente, esquecendo-se de Portugal, cuja literatura, séculos a fio, constitui uma herança comum aos dois países, a Portugal e ao Brasil. O Brasil não poderia isolar-se de um ciclo português que hoje Le Monde, em Paris, o Sunday Times, em Londres, The New York Times, nos EUA, reconhecem como extremamente fecundo, pois isolar-se dessa herança que fala tão mais perto ao Brasil seria decepar também a ligação do Brasil com a pluralidade de centros de irradiação de cultura mundial característica da nossa aldeia eletrônica e impressa global. Principalmente agora que a Europa, exangue, nada produz de importante literariamente na França, na Alemanha, na Espanha, etc.
Modestamente, José Cardoso Pires omite o que a imprensa internacional já divulgou: o reconhecimento de sua importância transnacional na Inglaterra, na França, na Itália, na Dinamarca, na Hungria, na Tchecoslováquia, na Polônia, na Romênia. Prefere falar do lance de quixotismo que vê, aquele “grão de loucura” que está por trás dos grandes feitos, das sagas épicas, nos Bandeirantes. Atrozes caçadores de ouro e de esmeraldas, escravizadores dos índios - tudo é verdade -, mas Quioxotes com um pé na terra e, segundo ele crê, os primeiros a divisar o Brasil em sua inteireza, plasmando-o com suas bandeiras alucinadas selva adentro. Isso os irmana também aos navegadores da Escola de Sagres, que com seu grão de loucura mas o sonho fincado no saber concreto, científico dos cartógrafos enfrentaram o oceano Atlântico. Esse “mar proceloso” povoado, durante a Idade Média, de monstros temíveis serviu-lhes, na realidade, para desvelarem o caminho para a África Austral, para as Índias e finalmente para o Brasil, depois que Fernão de Magalhães circunavegou toda a esfera terrestre.
A longa - a primeira, de que se tem notícia - meditação a respeito das frustrações e conquistas da Revolução dos Cravos, ele reconhece, faz de Alexandra Alpha um livro polêmico, aberto a diversas interpretações, causador de iras, de acusações de “reacionário”, de antiportuguês, até de “cabotino”. Só lhe importam, porém, os julgamentos de meia dúzia, não, não tantas, apenas três ou quatro pessoas inteligentes e argutas. E será difícil desentranhar amor do ódio que o autor vota a Portugal: tantos personagens apagados, tantas mulheres temerariamente corajosas, tantos homens covardes, do bando que sempre diz “sim, mestre!”. Portugal é alternadamente o refugo do mar, o sobejo do dito “o meu país é o que o mar não quer” ou “no meu país não acontece nada”: então urge inventar um país, desventrá-lo em suas possibilidades latentes. Neste livro singular, destemido, por vezes lírico em um autor vincadamente objetivo, há voos surrealistas e, como dizem pedantemente os linguistas, toda uma polissemia, uma variedade de interpretações e abordagens. Um método dinamicamente visual usa como que tomadas de câmeras panorâmicas, à maneira do fantástico voo inicial, batismal, do anjo-desportista da asa delta que da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, se lança rumo à praia de Ipanema. Surgem aproximações, close-ups de protagonistas fugazes, quase fantasmagóricos. A poesia do voo livre se casa, arrevesadamente, com o tique-taque de uma bomba-relógio de um terrorista suicida, louro kamikaze insuspeito.
Comparado no estrangeiro a (Ítalo) Calvino, a (Witold) Grombrowicz, a García Marquez, Cardoso Pires os engloba a todos: pelo frescor de sua inventividade ora caricatural, ora originalíssima, pelos círculos concêntricos que descreve em torno de Portugal entre voluptuoso e esquizofrênico, no sentido de duas faces do deus Janus e com laivos mesmo da morbidez de amar o que lhe parece difícil: abraçar lucidamente o seu fado, palavra que a etimologia já demonstra brotar da mesma origem que “fatalidade”: a de ser português. Nas mãos plasmadoras, conscientes, de Cardoso Pires toda uma literatura multisecular, que se interrogou a si mesma sobre quem era, na realidade mostrou um significado tão radicalmente complexo do que significa essa emaranhado de conceitos às vezes em antítese: a portugalidade.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Cardoso Pires reinventa Portugal},
booktitle = {Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns
escritores portugueses},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {6},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-6/15-jose-cardoso-pires/04-cardoso-pires-reinventa-portugal.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1988-01-16. Aguardando revisão.}
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