Holocausto de um país, o Paraguai

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
O Estado de São Paulo, 2002/09/29. Aguardando revisão.

O extraordinário escritor contemporâneo paraguaio Augusto Roa Bastos é, ao lado do novelista peruano Mario Vargas-Llosa, um atormentado pela história de seu desafortunado país. Requintado, culto em várias línguas, na cultura da Antiguidade greco-romana, já em seu primoroso livro, Eu, o Supremo, escavara os livros de História, gravara várias dezenas de horas com pessoas que soubessem alguma coisa ainda que esgarçadamente incompleta ou apagada quase por inteiro na descorada memória humana, recorria a jornais e anotações curtas, cartas e toda a lasca de pesquisa que o ajudasse a recompor a fisionomia dos males que vergastaram a sua pátria. Em Eu, o Supremo, ele olha com visão microscópica o trajeto das ditaduras que assolaram o Paraguai.

O retrato que evoca Hitler, Nero e outros monstros investidos de um poder supremo desenha a dinastia dos tiranos Francia e o pai Carlos Antonio, de Solano López para concluir amargamente: o gene das guerras está no sangue dos humanos – da resistência heroica púnica à conquista de Roma, a dominadora de quase todo o mundo de seu tempo, do Norte da Inglaterra ao Norte da África; a extinção das línguas, rituais e religião dos indígenas das três Américas trucidados pela colonização europeia – inglesa, francesa, portuguesa e espanhola. O massacre quase se diria pontual de tribos contra tribos, de invasores contra os habitantes autóctones, o genocídio stalinista, a loucura maoísta – a aparente genética da guerra apavora quem lê a queda de Tróia, a formação das colônias europeias na Áfricam, com os flamands de língua holandesa, como os mais inacreditavelmente perversos e inclementes no antigo Congo Belga. Uma pilhagem ditada pela soberba das nações brancas dos alvos de conquista por quaisquer meios – a guerra do ópio na China e, atualmente, as dezenas de embates bélicos longevos: o Líbano, Angola, do Vietnã à destruição sistemática no Oriente Médio entre palestinos e o governo feroz de Israel contrapondo-se ao assassínio de civis pelos grupos da Intifada, do Hamas, sem esquecer a Guerra de Secessão dos Estados Unidos e a destruição da população paraguaia pelo Império brasileiro, o Uruguai e a Argentina.

Seu livro recente publicado pela Record, o relato da Guerra Grande (238 páginas) traz enfado e cansaço ao leitor de bestsellers facilmente digeríveis e assombro aos leitores que, de página em página, deparam com o mural apavorante criado pelos países sul-americanos que hoje, com involuntária ironia, compõem o Mercosul. Todo o vasto conhecimento de Roa Bastos da civilização grega e as leis ditadas por Sólon à utopia paga com sangue da guilhotina da Revolução Francesa de 1789 e com a submissão às ditaduras político-econômicas. Com sarcasmo e desprezo, ele alude à conquista da Espanha pelos bárbaros germânicos e se refere à hegemonia patologicamente alucinada do atual presidente Bush: “Custou-nos bastante livrar-nos do poder dos godos, com seus vice-reis e suas cortes. Ainda que, a julgar pelas aparências, diga-se que dos godos passamos aos gordos saxões.”

Seu eloquente estilo, eivado de reflexões morais e de análise profunda das tarefas que incumbem ao Estado, tem como diálogo uma suposta tradução da Divina Comédia de Dante para o idioma espanhol tentada, numa pausa entre as mortes das tropas e um breve, inquieto repouso “pacífico”, por um general argentino e um pintor que narra a guerra, desenha os cadáveres, e a matança feroz sem tréguas como pano de fundo. Passo a passo esvaem-se os combatentes que não conseguiram fugir, degolados à mão, e prisioneiros incapazes sequer de fugir seguindo a música dos versos italianos e o desenrolar-se da “guerra grande” que reduziu o povo paraguaio à proporção de, hoje em dia, 14 mulheres para cada homem. “Não há palavras estrangeiras – observa o cético intelectual militar da Bacia do Prata. Cada língua funda sua pátria potestade ali onde é pronunciada... Veja, o senhor, com palavras, escreveu uma guerra. O interesse do Estado subordina os demais interesses.”

Nesse diálogo que contrasta, como em D. Quixote e Sancho Pança, entre uma visão culta, aristocrática, amante da sabedoria e o pensamento e a sabedoria do povo quase analfabeto, mas cheio de prudência, ceticismo e, paradoxalmente, a crença em Deus, o magistral escritos paraguaio – insuficientemente conhecido ou apreciado por toda a América Latina, pelo menos – faz da abissal e belíssima poesia religiosa e filosófica de Dante e a ida aos infernos um terceiro personagem, atemporal pois a “guerra grande” dos quatro países sul-americanos evoca a descida ao calabouço do sofrimento físico e álmico (como gostava de adjetivar o nosso extraordinário Guimarães Rosa). Surpreso com as virtudes racionais e humanas do aparentemente rústico e singelo pintor das batalhas, Cândido.

Nessa troca de ideias entre o pintor e o general argentino, Roa Bastos espelha a sua própria dúvida quanto à verdade da História em si. “A imaginação cria por instinto... Você vai guardando essas imagens em sua cabeça isolada e depois, de noite, no sossego, começa sua guerra com os troços e os destroços. Você por acaso pensa que essas imagens são fiéis à matança? A memória do homem é a mais enganosa. Nunca estamos no tempo presente, salvo na memória que se torna copiosa como faz as suas cópias. Toda a História contemporânea é uma fraude.”

Seria então a Verdade inatingível, irreproduzível fora do seu tempo? Entre muitas afirmações de dúvida quanto à captação genuína de uma guerra, a História sempre se revelará incompetente, vista com parti pris. Com os pincéis e gravuras de um Goya, Roa Bastos, com a passionalidade espanhola temperada pelo raciocínio frio e cético da França, conclui:

“A História não tem final. Desde o início dos tempos sempre houve fogueiras de violência destrutiva. E também sempre houve o fogo do espírito para purificar o dano, conjurando-o por meio da arte, que é mais forte que a morte”.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2023,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {Holocausto de um país, o Paraguai},
  booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
    os despotismos e os totalitarismos},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {12},
  date = {2024},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/02-america-latina/01-holocausto-de-um-pais-o-paraguai.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {O Estado de São Paulo, 2002/09/29. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Holocausto de um país, o Paraguai .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.