Menotti del Picchia: “nada me orgulha mais do que ter sido poeta

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1978-01-28. Aguardando revisão.

Múltiplo nas atividades que desenvolveu ao longo de seus lúcidos 86 anos de idade, Paulo Menotti del Picchia resiste à especulação imobiliária que tenta em vão, transformar sua bela casa da avenida Brasil, perto da Rebouças, em São Paulo, em mais um espigão. Latinamente comovido com a inauguração do busto que fez de sua segunda esposa, a pianista Antonieta Rudge, e inaugurado há dias na Praça Portugal por autoridades paulistanas, ele mantém a par da clareza das reflexões uma ironia galhofeira, que tenciona menos ferir do que revelar o grotesco de posições que outros assumem. Democrata convicto atravessou uma fase decisiva da literatura e de toda a cultura brasileira que vai dos versos escultóricos de Olavo Bilac à ruidosa e controvertida Semana de Arte Moderna de 1922, no Teatro Municipal, da qual ele foi um dos pinoneiros menos reconhecidos. O Jornal da Tarde quis recolher suas memórias orais, vivíssimas, que desmistificam sem piedade, recolacando muitos nomes nos lugares prévios hoje desmentidos, mas por ele certeiramente encaixados em seus devidos contornos. Em sua casa gostosamente antiquada, o poeta-pintor-escultor-tabelião, jornalista, deputado, incentivador do cinema, concedeu esta longa entrevista a Leo Gilson Ribeiro.

Menotti del Picchia - Eu nasci ali onde está agora o Banco do Brasil (na ladeira da avenida São João). Como eu digo sempre: puseram um monumento de ouro em cima de um pobre! Havia umas casas dos imigrantes italianos que primeiro se estabeleceram ali. Então eu saía e ia no riacho Anhangabaú pescar lambaris. Nessa hora, nas proximidades desse lugar, desciam as mulheres dos primeiros árabes que chegaram ao Brasil - eu estou dando a você as minhas memórias para você ter um panorama daquele tempo. Então elas saiam com cestas na cabeça, acho que era trigo, eram os antepassados dos Malufs, dos Calfats, dessa gente toda que depois ficou multimilionária! Daí, desse Anhangabaú, eu fui parar com papai na cidade de Itapira (no interior do Estado de Minas Gerais), aí fiquei no Grupo Escolar, que lá se chama Júlio Mesquita e fui tocando p’ra diante.

LGR - Qual era a profissão de seu pai?

Menotti del Picchia - Papai era arquiteto, era pintor, foi um dote que eu herdei dele. Contratava a construção de uma casa com a sua equipe que incluía até pintores (para decorarem a casa por dentro).

LGR - Seu pai era toscano?

Menotti del Picchia - Toscano! Agora ele saiu de lá não propriamente como imigrante mas porque era socialista e o governo da Itália naquele tempo oferecia para os que tinham ideias socilistas só duas escolhas: ou ir para a ilha de Pantelária ou vir para a América.

Depois, como papai conseguiu uma obra grande em Pouso Alegre, ele resolveu me mandar - interno - para Pouso Alegre. É aqui que começa o meu drama jornalístico. Fundei lá um jornal que se chamava O Mandu, eu e um companheiro tínhamos assim uma tipografiazinha de porcaria e íamos entregar os jornais impressos em carros de praça. De Pouso Alegre fui para Campinas que tinha incontestavelmente um dos maiores Ginásios da época no Brasil, pois tinha lá Coelho Neto Bierrembach, Vanzolini, todos professores de grande tradição. Daí vim para a capital, onde fiz Direito aqui no Largo São Francisco. Fiz um bom curso até.

LGR - O Sr. é que escolheu seguir Direito?

Menotti del Picchia - É, escolhi porque era mais fácil para mim, papai era pobre… Eu não tinha meio de me sustentar, só em São Paulo é que era possível arranjar uma pensão e com isso estudar. Formado em Direito, eu voltei para Itabira, onde fundei o jornal O Grito. Era um jornal político, que aliás fez muito sucesso!

LGR - Qual era a tendência do seu jornal?

Menotti del Picchia - A tendência era anárquica, porque eu não entendia nada de nada mesmo! (ri) Foi sempre meu espírito, essa inquietação nessa multiplicidade de coisas que eu faço, pintura, poesia, jornalismo etc. Então com aquele jornal eu fiz uma bruta politiqueira, tem até um trecho aqui no meu livro Lais que fala da surra que um jornalista leva de um adversário político, é um episódio real! Em Itabira eu me casei com uma filha de fazendeiro lá, que me deu sete filhos. Era de uma estirpe boa porque era dos Cunha Preto, Cunha Bravo, aquela gente toda, donos da fazenda de “Santa Catarina da Capoeira do Meio”. Nesse ínterim eu escrevi os Poemas do Vício e da Virtude, um livro de poemas que eu acho que tem muito vício e pouca virtude… Aliás, depois de alguns dos versos desse livro a Rchel de Queiroz tirou a “Canção do Sapateiro”, uma coisa muito engraçadinha, muito bonitinha musicada por ela. Pois é, há pouco tempo até a Rachel me escreveu: “Olha velhote, quando eu era moça, assim pelos dezesseis, eu musiquei a sua”Canção do Sapateiro” e tocava no violão”. Eu respondi pra ela: “Você então não guarda essa melodia? Já calculou a fortuna que nós íamos fazer agora com ela? Você entrando para a Academia e tudo mais!…”

Desde esse tempo eu era um pouco politiqueiro, sabe? Acho que foi outro traço que herdei do papai. Vai daí eu comecei a integrar, a dirigir uma fazenda. Eu era bom fazendeiro porque a fazenda era boa, dava tudo sozinha… Por essa época eu ainda era chucro, não tinha publicado ainda o Juca Mulato, mas o Amadeu Amaral escreveu um poema sobre o Moisés, que era uma maravilha. Imgine, que maravilha, eu lá naquela escuridão de Itabira, recebendo de um revista daqui de São Paulo um escrito do Amadeu Amaral, fiquei comovido, entusiasmado, fiquei um galo de crista larga… Comecei a ficar meio valente. Aí aparece o Juca Mulato, na realidade ele não surgiu, ele explodiu. Explodiu porque nasceu naquela época em que estávamos em plena força de uma organização feudal que era a monocultura cafeeira. O café dominava tudo, os homens, a economia, a cultura e eu então, nessa ocasião, escrevi o Juca Mulato que justamente conflitava com o espírito literário do litoral brilhante: o Olavo Bilac, aquela gente toda, enquanto o interior continuava completamente escuro com os seus Jecas Tatu denunciados pelo Monteiro Lobato e com a realidade terrível revelada pelo livro do Euclides, Os Sertões. Havia um contraste e nessa pirâmide social, quanto mais se subia, mais a cultura era toda francesa, toda voltada para fora. Então naquele meio e que o parnasianismo apresentava os versos mais perfeitos, surge um Juca Mulato que você não classifica: não diz se é romance, nãomarca! diz que é parnasiano, ele é só ele: uma réplica, uma síntese desse constraste, dessa separação de duas realidades e duas culturas lado a lado: de um parte, no interior, a ignorância, o fanatismo, a miséria, o desamparo; do outro, no litoral, o esplendor, o requinte, entende? O Juca Mulato surgiu então como necessidade de um revisão dos nossos valores e das nossas prioridades.

LGR - Então o Juca Mulato seria assim um prenúncio do Movimento de Arte Moderna da Semana de 22?

Menotti del Picchia - Exato. Eu estava naquele tempo dirigindo A Gazeta, quando me apareceu Oswald de Andrade. Ele me disse: “Olha, Menotti, a Daisy, minha amada, ficou entusiasmada com o Juca Mulato, você podia fazer uma visita a ela comigo?” Aí eu respondi a ele: “Oswald, você não acha que é tempo de fazermos uma renovação de valores aqui? Tudo nosso é copiado da França, é copiado de não sei onde, está faltando a nossa marca! Você veja que o Euclides (da Cunha) escreve aquele livro genial, acusando uma noite escura de ignorância no Brasil sertanejo e no outro Brasil aquele esplendor de sol que não tem sentido num país como o nosso!” Aí então comeou a romper o movimento moderno nosso de 22.

LGR - Então foi inicialmente a ideia de milionários depaysés que queriam copiar a Deauville da belle époque no nosso Municipal?

Menotti del Picchia - Qual, aquilo não existiu! Eu estou lhe contando sobre o nascimento, o gérmem do movimeno que depois amadureceu. Nessa ocasião o Oswald foi procurar o Mário de Andrade, nos juntamos com o Guilherme de Almeida. Os Prado nem existiam para esse novo movimento: nós nos reuníamos no Petit Trianon. Aí nos resolvemos ampliar o movimento, trazendo também para ele os artistas plásticos: fomos buscar os pintores primitivos, o escultor Brecheret…

LGR - A Anita Malfatti?

Menotti del Picchia - A Anita foi a primeira, não é? Agora você vai ver o sentido dramático dessa Semana de Arte Moderna…

LGR - Mas a Semana, vista pelo Sr., se propunha exatamente a que?

Menotti del Picchia - A fazer uma revisão dos valores todos e a nos libertar da nossa passividade em aceitar as escolas estrangeiras para fazermos nossos versos parnasianos, simbolistas e tal e coisa. Partimos nós para uma integração dos dois Brasis. Aí é que está o pensamento brasileiro na sua universalidade: naquele momento em que o mundo todo se transformava, depois da Guerra, com Spengler, com Keyserling saudando o mundo que nasce, os grandes pensadore, tudo nos fez compreender que tinha havido uma grande sacudida no mundo, principalmente Oswald, eu e o Mário éramos as cabeaças dessa constatação.

Então nos integramos num único pensamento de renovação, não na criação de mais uma escola literária mas de colocar o pensamento nosso aqui, radicá-lo, integrá-lo no ambiente brasileiro, sem fazer regionalismos, entende?

LGR - Então o Juca Mulato já era uma expressão ou um prenúncio dessa atitude, porque no final do poema ele volta para se radicar na sua terra natal?

Menotti del Picchia - Sim, ele estava dentro da sua terra, mas a transcendia, as visões que ele tinha o faziam sentir-se um homem universal, mas estava numa terra típica, com traços próprios, e essa terra era o Brasil. Acho que foi esse significado verdadeiro do Juca Mulatoque explica o sucesso que ele fez por toda parte. Nós queríamos colocar o nosso pensamento dentro dessa ambiência, sem deixar de ter informações universais. Havia ao lado de um movimento de translação um movimento de rotação nacional em torno do seu próprio eixo. Assim, enquanto lá fora giravam os grandes sábios e filósofos, o Spengler, o Keyserling, Freud revelando o mundo inteiro, enquanto se processavam essas grandes revoluções, nós então, cada um com seus dotes: o Mário er de uma grande cultura, o Oswald era de melhor cultura e de uma intuição formidável, nós vimos então que era possível criarmos umas como que fórmulas nossas, livres, sem impor escolas nem nada e por meio das quais cada um fizesse o que quisesse. Fomos então procurar a Anita Malfatti, que se juntou a nós, o Di Cavalcanti, o Brecheret, - o Graça Aranha e a Tarsila vieram depois.

Esse grupo inicial reuniu-se e quando eu publiquei As Máscaras, esse poema tão lírico, tão fora da modernidade, o Oswald de Andrade resolveu me homenagear e me deu esta escultura da minha cabeça, feita pelo Brecheret. Ele convidou um grupo para lançarmos o nosso pensamento.

LGR - Em que data foi isso?

Menotti del Picchia - Em 1921, portanto, antes das noitadas de 22, o grupo modernista está não só composto e coeso, como representa já uma força nova, dotada de consciência. Faz-se necessáro então divulgar o que estava acontecendo. Osso se dá a 9 de janeiro de 21, durante um banquete oferecido a Menotti del Picchia com a presença de Mário da Silva Brito. Então neste banquete para comemorar As Máscaras, um poema, aliás, dos mais passadistas, que não tinha nada de moderno, o Oswald faz um discurso e já contando com a presença de alguns dos “inconfidentes” que ele tinha levado para a reunião. Como eu já era deputado naquele tempo, havia muita gente importante, da política e de outros setores, e o Oswald aproveita para fazer o discurso de homenagem e eu agradeço. Então (consultando um jornal da época) como você vê está aqui transcrito: “Tú és nosso (me dizia o Oswald na saudação), junto às duas bandeiras que consagramos a ti entregamos a marca ou a insígnia das reponsabilidades que te esperam”. Bonito, não? E, daí, é que saiu mais tarde o movimento político de 30. Mas como diz aqui ainda: “Menotti del Picchia propõe - é a que se chama a Mensagem do Trianon - o rompimento com o passado, ou seja, a repulsa às concepões românticas, parnasianas, realistas, independência mental brasileira através do abandono das sugestões européias, mormente lusitanas e gaulesas: uma nova técnica da representação da vida, visto que a que procuram por conhecidos e antigos métodos não apreendem mais os problemas contemporâneos (veja só a consciência clara que nós tínhamos do problema!); outra expressão verbal para a criação literária que não é mais a mera transcrição naturalista, mas recriação artística - quer dizer, não é mais a visão pura da coisa, do tema, mas a sua transmutação artística ou recriação artística. Por fim: reação ao status quo, quer dizer: combate em favor dos postulados apresentados etc. etc”.

Então já nesse banquete do Trianon em que me foi oferecida a escultura da minha cabeça, já saiu a mensagem da renovação, isso em 1921. Esses pobres diabos (que depois se apossaram da ideia de 22) nem existiam, não valiam nada! Então em 21 rompe o pensamento nosso que como eu disse a você vem lá da confluência dos dois Brasis: o Brasil ignorante e o Brasil excessivo. Toma-se uma bandeira dessas e com ela se formula a parte programática que já está contida aqui.

LGR - E que continha inclusive um conteúdo social também, não?

Menotti del Picchia - Profundamente social. Depois pelo discurso que eu fiz naquela noite você vai ver o diabo… Enquanto estamos neste pé estamos aumentando a nossa “turma”, enquanto no Rio já apareciam o Drummond de Andrade e o (Manuel) Bandeira, já eram dois que estavam lá à espera, aí rompe lá do Rio a presena do Graça Aranha, que vinha com todo o prestígio de Canaã…

LGR - E era membro da Academia Brasileira de Letras…

Menotti del Picchia - Membro da Academia Brasileira, era um dos grandes escritores brasileiros e ele tinha amizade com esses tais Prados, porque ele era homem da sociedade e tal. Bem, então nós combinamos fazer as noitadas do Teatro Municipal. Eu era redator-diretor do Correio Paulistano, portanto o homem do Washington Luís, que era o Presidente. O Washisgton Luís era meu grande amigo e eu então arranjeicom ele essa coisa toda e ele botou o Correio Paulistano à nossa disposição, o resto todo (da imprensa) era contra. Veja só: o Correio Paulistano, o mais conservador e reacionário dos jornais, foi o transmissor da palavra nova através da mocidade inquiera que nós éramos. Vieram o Graça Aranha, o Vila-Lobos, Brecheret, Guilherme de Almeida, Anita Malfatti. Esse grupo todo resolveu fazer inclusive exposição concertos e três noitadas de explicações (ao público).

A primeira coube ao heroico Graça Aranha. O Graça Aranha sentou-se lá no palco, fez um discurso que hoje é (considerado) clássico, mas que não tinha nada que excitasse aquela gente. Mas havia uma porção de gente já prevenida de antemão contra o Oswald e contra o Mário, porque o Mário teria demonstrado nos poemas dele um sentido profundamente revolucionário.

Na segunda noite fui eu que fui comandar. Eu botei aquele pessoal ao meu lado, assim, (mostra uma foto), você nem sabe a alegria com que eu lhe mostro estas fotografias, es estou tão alegre, tão eufórico com a minha retomada de saúde que estou ficando insuportável, mas olhe só as nossas loucuras! No meu discurso eu dizia, veja só, coisas como esta: (lendo) “Morra a mulher lírica!” Esta reportagem que é do quinquagéssimo aniversário da Semana, quando fizeram várias manifestações aqui no Teatro Municipal, registra: (lendo:) “Nesta noite todos sabem, tanto o público como os próprios modernistas, que algo haverá, algo, algazarra, a palestra de Menotti del Picchia prevê que os conservadores devem ser enforcados, um a um, nos embaraços dos seus assobios e suas vaias. Mas, apesar da certeza do tumulto, o orador oficial da noite, intérprete do grupo, expõe o ideário modernista, define as direções…” Mais adiante: “Se o discurso de Graça Aranha foi abstrato (o Graça Aranha fez um discurso muito vago), com a curiosidade metafísica de repisar conceitos velhos, expondo filosofias que não esclareceu, o de Menotti, direto, claro, agressivo, quase incontinente para a época, refletindo a média das opiniões do grupo, mostrava o caráter guerrilheiro do Movimento” e por aí vai, citam trechos do que eu disse: “Aos discóbulos de Esparta oporemos Friedenreich e Carpentier… À derrocada de Illium, às princesas das baladas, dos castelos, preferimos a datilógrafa garota…”

“A nossa estética, como tal, é de reação, portanto guerrilheira. O termo futurista, com que erradamente nos etiquetaram, aceitâmo-lo porque era um cartaz de desafio… Nós não somos nem nunca supusemos ser futuristas, eu pessoalmente abomino o dogmatismo e a liturgia da escola de Marinetti, seu chefe, porém, para nós, é um precursor iluminado”. Porque você sabe nós não queríamos ser caudatários (do Futurismo). “O que nos agrega não é uma força centrípeta de identidade técnica ou artística… As diversidades das nossas maneiras as verificareis na complexidade das formas que nós praticaremos, a ideia geral do nosso grupo é de libertação contra o faquirismo estagnado, contemplativo, que anula a capacidade criadora. Ainda espero ver erguer-se o sol do Partenon em ruínas…” Por aí vai, veja: “Basta de exaltar as artimanhas de Ulisses no século em que o conto do vigário atingiu perfeição de obra-prima… Basta de escrever sobre correrias dos sátiros caprinos atrás das ninfas levépedes e esguias. Na Babilônia paulista moderna as ninfas dançam maxixe ao som do jazz… Morra a Hélade!” Era coisa de louco!…

“À mulher-fetiche, à mulher-cocaína, l’eternelle madame queremos em vez uma Eva ativa, bela, prática, útil no lar e na rua, dançando tango, datilografando uma conta corrente, aplaudindo uma noitada futurista, vaiando os ridículos, tremelicantes, poetastros da frase cheia de termos raros. Morra a mulher tuberculosa!… No acampamento da nossa civilização pragmatista a mulher é a colaboradora inteligente e solerte da batalha diuturna e voa no aeroplano e reafirma a vitória brasileira de Santos Dumont e cria o mecanismo do amanhã em que descobrirá o aparelho destinado à conquista dos astros!! Só isso, não: não nos limitamos sommente a banir da gaiola das rimas o fetiche femmina nem a rechaçar para as montanhas as tropas olímpicas dos deuses! Queremos libertar a poesia do presídio canoro das formas e fórmulas acadêmicas, das a elas elasticidade…” e vai por aí…

LGR - O Sr. pôde continuar ou as vaias e os apupos faziam mais barulho?

Menotti del Picchia - Eu tinha posto o Oswald de Andrade atrás de mim no palco e já tinha um grupo combinado para nos vaiar, o que nós queríamos mesmo. Então botei a meu lado o Oswald de Andrade, o Mário de Andrade ,Guilerme de Almeida, o Plínio Salgado, o Cassiano Ricardo, depois os do Rio de Janeiro como o Ronald de Carvalho… Quando eu acabei de falar foram aquelas vaias mas quando eu anunciei: “Vai falar Oswald de Andrade”, ah, foi um sarilho desgraçado. O Oswald de Andrade de pé, lendo o discuros dele e o pessoal viando e eu dizendo: “Escutem”, quando terminou, ele depois me confessou que ficou com um pouco de medo, confessou mesmo que estava apavorado.

LGR - E o Mário de Andrade?

Menotti del Picchia - Quando eu chamei o Mário de Andrade, você não imagina, o teatro veio abaixo! Ele tinha escrito lá uns versos da Paulicéia Desvairada, o Mário no princípio ficou meio assustado de certa forma, havia até marcas físicas desta hora. Foi minha vez de serenar o tumulto, ninguém obedecia, a sessão, porém, não podia parar. Então chamei Mário de Andrade. (Lendo:) “À vista Mário, o grande Mário, a plateia pareceu ficar alucinada. O clamor ressoou com violência dos escribas e dos fariseus da patuleia judaica que gritavam:”Crucifiquem! Crucifiquem!” no ato de Pilatos, quando o covarde legado de César entregou à turba a figura sanguinolenta do Cristo… Era contra o Mário de Andrade que a revolta da assistência explodia com maior veemência. Como no Horto, o Filho do Senhor, Mário de Andrade, pela primeira vez, fraquejou. Adivinhei nos seus olhos a súplica que o Cordeiro dirigiu ao Pai Celeste na hora suprema da agonia: ‘Afasta de mim esse cálice!’ Não, não havia ceder, compreendi a angústia do Mártir, pois Mário tornou-se o Tiradentes da nossa Inconfidência e vendo que ele recuava ao impacto estertórico da plateia, seguirei-o pelo braço e disse: ‘Mário, mas o que é isso?’ O Grande Artista, glória da geração, reagiu já sereno e heroico, vi-o voltar para a plateia, fronte larga como uma praa coruscante de um sol rebrilhando à luz dos refletores, mão nervosa premendo o original amassado, a voz que procurava tornar dominadora: (São Paulo, comoção da minha vida! Aí a vaia veio descuminal!” A certa altura houve um fato muito engraçado que foi este: foram os oradores falando, quando chegou a vez do Ronald de Carvalho. O Ronald de Carvalho era bonito, bem penteado, muito elegante, nós todos, o resto, tudo era bagulho… (lendo…) “Então o jovem poeta de Epigramas Sentimentais era uma figura aristocrática e bela. Vestido com apuro britânico, cabelo repartido com um risco nítido… impressionou a assistência, notadamente a feminina, que não era pequena. Nessa hora, porém, das galerias onde haviam-se entrincheirado os estudantes, um deles latiu como cachorro ‘Au, au!’ Foi o bastante para desviar a atenção da massa e se fazer curto silêncio. Dele se aproveitou, atrevido e sorridente o saudoso Ronald: ’Senhores e Senhoras, todos são testemunhas de que há um cachorro nesta sala e todos verificam que ele não está do lado de cá, está do lado de lá e apontou as galerias…”

LGR - E além desses há outro fato que o Sr. se lembre e que não esteja registrado durante a Semana?

Menotti del Picchia - Você quer ver uma nota muito engraçada? Coube-me naquela noite, no hall do Teatro Municipal, onde o povo se estarrecia diante das estátuas e dos quadros modernos, por solicitação de personalidades representativas da sociedade paulista, servir de cicerone, explicando o que fosse o Cubismo, o que era aquela “perspectiva sentimental” que invertia muitos valores, queria saber porque as audácias expressionistas, surrealistas, que reformavam os cânones dos clássicos. Eu ia explicando. Mas o choque era grande, dada a brusca passagem da doçura acadêmica para as violências expressionistas ou para sínteses cubistas… Minha amiga, a Sra. Renata Crespi - essas já eram pessoas lá da D. Olívia, sem importância nenhuma no Movimento -, a Sra. Do Prefeito Prado, parou perplexa diante de um retrato pintado por Anita Malfatti, no qual o modelo sofria várias deformações anatômicas. Poucos dias antes um terremoto tinha abalado São Paulo. O quadro espantou a ilustre Dama: “Que é isto? Um retrato?” Respondi: “Minha Sra., é o célebre retrato de Oswald de Andrade pintado pela artista Anita Malfatti.” “Oswald?”, interrogou D. Renata, “assim com o nariz do lado, com o braço fora do ombro?” “Não se espante, dona Renata, é um retrato dinâmico-psíquico-ultra-realista: o modelo foi surpreendido em movimentação sísmica”, já que a obra tinha sido pintada pela grande artista no dia do terremoto…

LGR - Naquela época a sociedade de São Paulo era assim tão conservadora?

Menotti del Picchia - Era gente rica, fazendeiros e filhos de fazendeiros, frequentando escolas francesas, de modo que essa nossa agerssividade chocou muito.

LGR - Naquela época o Sr. Ainda era deputado?

Menotti del Picchia - Eu tinha sido deputado estadual, mas eu comecei desde cedo mesmo foi no jornalismo, como o tal de O Mandu…

LGR - Por que esse nome, O Mandu?

Menotti del Picchia - Ah, é tão ingênuo… Foi porque quando o padre do colégio me advertiu eu disse: “Mas, Seu Padre, e o direito dos escritores?! A iberdade de imprensa?” Ele respondeu “Que liberdade de imprensa nem coisa nenhuma!” Foi meu primeiro choque contra a censura. Depois veio o jornal O Grito, depois fui para a Gazeta, depois para o Correio Paulistano, com o Oswald (de Andrade) criei Papel e Tinta, a primeira revista nova, com Assis Chateaubriand passei ara o Diário de São Paulo, onde fui considerado um dos grandes cronistas e quando eu estava com o Assis Chateaubriand eu fiquei com a revista A Cigarra, comprada por ele. Então foi no fim da Revolução Constituicionalista, quando eu fui secretário do Petoran, nessa ocasião, aí aconteceu que, acabada a Revolução, a polícia tinha muita preocupação comigo e com o Assis Chateaubriand, no tempo de Vargas. Eu, como diretor de A Cigarra, fui chamado pelo chefe da Polícia, que era amicíssimo nosso, apesar de tudo e ele nos advertiu: “Olha, vocês não vão fazer uma grande reportagem da Revolução (de 32) que passou”. As autoridades não queriam que nós déssemos uma difusão à Revolução passada porque havia uma tensão muito grande, nós tínhamos perdido a Revolução, o Getúlio estava aqui atirando os seus mandatários para cima de nós, e sabiam que o Assis Chateaubriand era o diabo e eu era dois diabos juntos, então mandaram nos chamar, dizendo que nós tivéssemos paciência, que deixássemos passar essa data da Revolução em branco. Nós não dissemos nem sim nem não. Tapeamos o homem. Fomos para a redação, procuramos tudo o que havia de mais estridente para fazer uma revista agressiva, fotos do Sr. Ibrahim (Nobre) fazendo discurso, o Pedro de Toledo, então fizemos aquela revista e mandamos soltar à tarde. Foi um estrondo!

LGR - Mas o Sr. também demonstra, nos seus discursos e proposições, uma nítida preocupação política e social?

Menotti del Picchia - Ah, eu sempre fui socialista, mas ponha aí, hein? Socialista convictamente de-mo-crá-ti-co! O que me levou sempre a choques com os totalitários, seja os fascistas como com os comunistas.

LGR - Se não me engano, o Sr. Apresentou uma proposta para se formarem prefeitos que de um município mais simples iriam subindo até atingir a posição de prefeito de uma cidade complexa como é São Paulo, não é?

Menotti del Picchia - Foi, o meu projeto - precoce - com se vê agora com o caos municipal de São Paulo - da “Carreira para prefeito”. Eu argumento da seguinte maneira: assim como um delegado de polícia, um juiz vão subindo de grau, não começam logo designados para um posto de grande responsabilidade, sem experiência e só por conchavos políticos, é necessário - e isso nós vemos na São Paulo do dia a dia - que um prefeito vá ascendendo de municípios menores a cidades maiores. Mas prefeitos totalmente infensos a problemas e injunções políticas e portanto imunes à corrupção.

Este foi um plano que eu elaborei quando era vice-líder do presidente do Estado, Júlio Prestes, e deputado na Câmara de São Paulo. Apresentei também o projeto de, ao mesmo tempo, se criar um Departamento de Município, assim candidatos a prefeito estudariam em profundidade os problemas básicos do município e, subindo de grau, atingiriam até a complexidade de uma metrópole como São Paulo, compreende? Através da criação de um organismo de planejamento de expansão ordenado do município, seria evitada essa acumulação diária, crescente, de favelas em São Paulo. Era uma fórmula de impedir que o erário municipal se esgotasse com gastos insuficientes sempre para uma superpopulação. Ora, para alimentar, dar emprego, alojamento, escola e hospitalização a essa acumulação de miséria vinda de todo o Brasil nenhuma taxação jurídica nem física bastaria!

LGR - O Sr. se refere a uma destinação que se daria aos migrantes que buscam uma sobrevivência em São Paulo?

Menotti del Picchia - Excedenes populacionais seriam canalizados, justamente, para cidades médias e menores, capazes de descentralizar o excesso de indústrias que envenena São Paulo com a poluição e daria melhores condições de vida às populações indigentes que vêm arribar aqui! Quando um homem corajoso como aquele prefeito, como é o nome dele? Não me lemnro… Quando ele diz que “São Paulo precisa parar” tiram o homem da Prefeitura…

LGR - O Sr. diz o Figueiredo Ferraz…

Menotti del Picchia - O Ferraz, você vê como ele e antes dele eu, tínhamos razão: hoje desembocamos nese monstruoso desordenamento de população e crescimento que talvez agora não possa mais ser contido como qualquer pessoa comprova no dia a dia em São Paulo.

Mas eu me preocupei, muito antes que os problemas se tornassem insolúveis, com outros aspectos do Brasil também. Veja só: eu sou o autor do único livro favorável ao divórcio no Brasil, quando o tema ainda era tabu entre nós escrevendo, em 1935, veja você, em 1935, um livro chamado Pelo Divórcio. Tem coisas, aliás, que guardei para escrever mais tarde, quem sabe, nas minhas Memórias

LGR - Como o que, se o Sr. puder dar um exemplo?

Menotti del Picchia - Bem… eu me lembro muito bem de uma declaração do General Rodrigo Otávio Jordão de que “Temos que entrar para a democracia”. Isso me ocorreu quando houve aquele processo incrível contra o Ulysses Guimarães. Sim, porque é no mínimo incrível processarem um santo, um homem incapaz de matar uma mosca como é o Ulysses Guimarães, só porque ele exprimiu as suas ideias políticas, meu Deus do Céu! Só porque disse três ou quatro palavras é quase condenado à prisão, disse que queria que predominasse um espírito mais livre no País! Ainda graças a Deus esse processo se deu no governo do Geisel, porque se fosse durante um governo reacionário aí nós estávaos perdidos!

LGR - Mas, voltando è literatura e especificametne à poesia, como é que o Sr. vê a situação atual no Brasil?

Menotti del Picchia - Devido à TV, há desinteresse pelo romance. Quanto à poesia, houve uma exacerbação paroxística de se encontrar fórmulas novas na poesia, mas a questão principalmente é de não confundir versos com poesia. Versos todo mundo faz, até bobos, mas poesia raramente aparece. Quando fiz Juca Mulato estava em plena virgindade intelectual e numa visão cósmica do momento, porque o Juca Mulato não é só um matuto, é uma criatura humana e um elemento da natureza. A poesia existe até em caboclos incultos, como por intuição e profundidade, como na trovinha (recita) “No seio da Virgem Mãe se encarnou divina Graça/ Entrou e saiu por Ela/ Como o sol pela vidraça”. Aí temos a transcendência do fenômeno místico, Cristo não é conhecido materialmente - encarnou pela Divina Graça. Eu não sou contra nenhuma fórmula poética, até as mais estrombóticas, mas sou a favor da imposição da técnica em determinados instantes. Há pouco vieram umas alunas me procurar om um poema sério, chamado “concreto”. Era desse inteligentíssimo professor de literatura Haroldo de Campos ou Décio Pignatari, formidáveis acrobáticos, mas quero ver quem vai ler a poesia deles daqui a algum tempo… eu peguei o poema concreto, li e reli mas não tinha sentido, não tinha nem um exotismo, era uma coisa lisa, eu li, li, mas disse a elas com franqueza: Li, mas não entendi, não sou contra nem a favor porque eu não entendi, eu posso ser burro, era o caso de consultar um bom poeta ou poetisa que estivesse a par dessas técnicas modernas. Mas nem a pessoa consultadae abalizada não entendeu. Então se trata de um empulho, não se trata de poesia concreta, mas concretina… A poesia, através do tempo, tem uma forma de eternidade, toda a inspiração do meu Juca Mulato vem daquela frase do maior de todos os poetas, Dante Alighieri, “L’amor che muove il sole e altre stelle”Como eu digo no Juca Mulato. “Não sabe quando o amor/ Os espaços profundos a fecundar fecunda o ventre/ das eternas gestações nebulosas”.

LGR - Hoje, com a distância do tempo, que influência o Sr. acha que o Movimento que o Sr. iniciou com o Oswald e o Mário de Andrade teve na literatura brasileira?

Menotti del Picchia - Teve uma influência definitiva porque não ditou nenhuma regra, não impôs nenhuma forma: pregou a plena liberdade e instou a consciência do artista a se integrar com o seu assunto dentro do seu mundo e do seu cosmo nacionais. A essência da Semana de Arte Moderna, no seu sentido de integração do artista à terra bem nossa, com a nossa gente, acho que a Semana teve a sua infuência na Revolução de 1930, como o próprio Getúlio delarou em um dos discursos dele. Como eu disse, mais tarde, em mensagem minha, “As foras coletivas que provocaram o movimento revolunionário do Modernismo na literatura brasileira, que se iniciou com a Semana de Arte de ’22, a inquietação brasileira, fatigadas dos velhos regimes e de velhas fórmulas, foram as causadoras da Revolução de ’30.” Quer dizer então que esta vivência até hoje, 60 anos passados quase, se essa presena existe é porque não era um movimento literário, mas era uma renovação profunda da própria estrutura do homem brasileiro. Eu tive a alegria de, como desencadeador dessa Revolução, verificar na Câmara Federal, que foi ela que edificou a estrutura de pensamento brasileiro, isso é que é importante. Aliás, eu sempre me mantive fiel à minha crença na democracia. Sempre fui contra o integralismo e contra o comunismo. Sou um socialista democrático; enquanto o Miguel Reale comandava os integralistas, eu e o Cassiano Ricardo lutávamos contra eles nas ruas, de outro lado os comunistas nos comabatiam, surgia nosso movimento da Bandeira, subdivisão do movimento Verde-Amarelo, de um lado saiu o Plínio Salgado para fundar o integralismo, de outro o Oswald de Andrade, para fundar o comunismo. Nós saímos para o centro, com o Cassiano e outros e o lema nosso era “contra ideologias forasteiras e dissolventes, opõe o pensamento original da tua Pátria!” Isto é um pensamento de brasilidade, eu e o Cassiano, o Motta (Cândico Motta Filho) sempre combatemos os dois extremismos, combatemos a favor da democracia, tirando do comunismo a ideia da justiça social e do fascismo a ideia da ordem.

LGR - E nessa vida tão múltipla, que atividade lhe deu maior satisfação?

Menotti del Picchia - O que mais me orgulha, o que me deixa mais satisfeito é ter sido poeta. Dentro da poesia está toda a beleza do mundo e toda a grandeza da alma dos homens. É a melhor política, essa, de se ver o mundo através da beleza, pois só ela permanece e se purifica. A poesia é a alma lírica do mundo. Visceralmente, eu sou poeta.

É. Tive uma vida movimentada, mas com grande alegria e deixo 60 descendentes, entre netos, bisnetos e contraparentes. Na festa que me fizeram, no Clube Pinheiros, eu disse, agradecendo a homenagem da minha família: “Eu me orgulho de todos vocês, meus netos e filhos, não porque vocês sejam inteligentes, mas porque vocês sempre agiram com dignididade”.

 

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1978) 2022. “Menotti del Picchia: "nada me orgulha mais do que ter sido poeta .” In Alguns artistas da Semana de Arte Moderna de 1922: Entrevistas, depoimentos e ensaios, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 5. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.