Um ensaio para a conscientização. E que chega à grande estreia

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1978-1-14. Aguardando revisão.

Bruxos ambos, Carlitos e Dalton Trevisan remexem em seus caldeirões as mesmas poções diabólicas de compaixão e riso, lágrimas escorrendo ao mesmo ressoar das gargalhadas sufocadas, afluentes de uma mesma e incongruente receita mágica de arte. Enquanto o cineasta inglês revolve a massa humana com a lente da câmera perceptiva das desditas dos mortais, o escritor brasileiro traça, com a caneta, cotidianos Infernos de inibições, ambições frustradas, uma tristeza tenuamente disfarçada pela caricatura.

À medida que a fileira de livros do autor paranaense avança – nem todos, é indiscutível, de valor igual – mais e mais ele se aproxima de um estilo telegráfico, diálogos telexados em suas súbitas interrupções voluntárias, como numa “obra aberta” de reticências a serem preenchidas pela sensibilidade e argúcia pelo leitor. Os temas são os de uma caixinha de música aparentemente monótona e repetitiva para a percepção de um leitor desatento, para o qual as melodias parecerão sempre as mesmas, em seu ritardando de mola gasta ou prestes a se esgotar.

Trava-se a sempiterna guerra conjugal. Contam-se os feridos, mortos e estropiados das colisões inevitáveis dos desastres do amor. Ou se enfocam lúbricas incursões do vampiro de Curitiba à cata de louras vítimas nuas, mas de botas pretas e chicotinho sado-masoquista à mão, à espreita de seus burgueses festins sexuais.

Sobretudo, como na panorâmica chapliniana, são os derrotados pelo tropel do Sucesso Econômico, os desprovidos de prestações do Banco Nacional de Habilitação, dos cartões Hollerith com os descontos do Fundo de Garantia ou do INPS que perambulam pelos parques municipais: manadas de mendigos-bêbados mas solidários entre si, a marchar para o túmulo do Vencido Desconhecido, sem trombetas nem chamas ardentes, como paquidermes sorumbáticos a perder as presas rumo ao cemitério final dos elefantes marginalizados na darwiniana luta pelo crediário e pela sobrevivência crua.

No entanto, um exame mais microscópico assinala sutilíssimas modificações na paisagem humana ou urbana que se deslocam, quase imperceptivelmente, de um volume a outro. Inegavelmente, cada vinheta da vida da pequena burguesia de que são cortadas estas fatias vivíssimas se aproxima, irrefreável, de uma melancolia final. Há os mini-heróis descendentes de D. Quixote com a manteiga a escorrer-lhe pela cara e a vituperar contra o maligno mago Merlin, mas por detrás de suas fanfarronadas perrengues do “eu sou homem, eu faço e aconteço” se delineia, com a cueca a cair, a impotência, se esboça o esboroar-se de proezas eróticas atléticas passo a passo com fantasias sexuais delirantes e teóricas e que se esvaem no vômito das ressacas.

Da mesma forma, por trás das esposas Messalinas quarentonas e gordas, Lucrécias Bórgias que esperam a buzina do chofer de caminhão com um código de calcinhas estendidas no varal para indicar, como bandeiras, se o chifrudo está em casa ou não, a camada delgada de maquillage não esconde as bochechas macilentas; a luz mais forte revela crateras e ruínas dentárias; cabelos empapados de laquê no lusco-fusco da penumbra se transformam em tristonhas tinturas amarelecidas; os seios derreados e murchos, a boca sangrando como feridas do tempo, avivadas pelo batom excessivo.

Na garimpagem insistente, há diamantes inestimáveis. O primeiro conto, “Mister Curitiba”, tem o único defeito de ser a maior obra-prima do livro. O fato de ser sido proibida pela Censura a sua publicação numa revista indica uma de 3 hipóteses: 1) a hipocrisia dos critérios sob os quais vivemos; 2) a sua ausência total de discernimento intelectual ou, mais provável ainda, ; 3) sua ignorância arbitrária e terminante: proíba-se a nudez do “David” de Michelangelo, dê-se o certificado de “boa qualidade, livre para exportação” (!) à nojenta chanchada de jogos de palavras inqualificáveis denominada Elas são do Baralho e, como explica a publicidade do filme: elas querem um baralho duro, novinho para jogar seu jogo preferido: buraco…

É uma oportunidade que o leitor tem de refestelar-se livre e inteligentemente com um paralelo brasileiro do culto das ninfetas pelo Humbert da Lolita de Nabokov. O riso vem aos borbotões provando simultaneamente que a Censura, vetando a publicação deste conto, participa de um tricampeonato invencível: não tem senso de humor, não tem inteligência e não tem humanidade, pois as peripécias a que Dalton Trevisan meramente alude em menos de seis páginas são de uma perfeição irritante. Como Michelangelo, ele deve ter martelado sua criação, pedindo-lhe que falasse ou mostrasse um deslise. Não há.

A mistura, sabiamente dosada, de lubricidade estapafúrdia em kitsch sentimental, a duplicidade moral do sedutor, que entremeia a sedução da menor com a preocupação de que sua filha, igualmente menor, caia de macieira – tudo dá a este episódio um simbolismo moral transcendente. A macieira não é a queda emblemática do Paraíso, o Conhecimento Carnal não é, segundo a doutrina teologal bíblica, a expulsão do Paraíso da inocência, o efêmero do gozo não é um prenúncio da morte de todos os prazeres fugidios, herança precária do Éden para os banidos dele? Intervenção da esposa, furiosa, através do telefone, não é a Espada Flamejante do Arcanjo Gabriel expulsando da terra de leite e mel os transgressores de uma moral contida no livro, apenas talvez – erigida na verdade por eremitas enlouquecidos pela concupiscência e pela autoflagelação no deserto?

Com igual contenção, com avareza até de palavras, de forma pudica, Dalton Trevisan enfileira os pecados capitais como Joyce os enfeixou em Os Dublinenses como: a monstruosa sedução dos meninos pelo velho tarado que compra a sua inocência com dinheiro, silêncio e bolinhas de figurinhas em “O Caçador Furtivo”. A solidão fúnebre do morto-vivo, o João anônimo, entrevado solitário, que só assina cheques, os filhos indignos de sua progenitura viril, a mulher uma megera, Xantipa indigna daquele Sócrates perdido nos bairros pobres de Curitiba.

São os mitos do povo brasileiro. Não propriamente do povão, porque os sonhos deste se restringem a necessidades mais rudimentares: comer. Dormir? Ter um emprego. Um teto. Quem sabe? uma esperança. Não: são os sonhos e valores hierárquicos do subproletariado brasileiro que desfilam como numa transmutação artística de conclusões sociologicamente irrefutáveis: a consulta à cartomante, a busca da feitiços enterrados em colchões, os adultérios florescendo nos traços fisionômicos dos filhos e filhas bastardos de maridos enganados, pobres Otelos despojados de qualquer grandeza e qualquer glória a verem a pinta típica do queixo do dentista da mulher espocar, ostensiva, no queixo da filha que ele, pai putativo, sabe não ser sua, “de meu sangue”.

Obliquamente, Dalton Trevisan acumula em toda a sua vasta e magnífica bibliografia um insuspeitado Relatório Kingsey da Insatisfação Sexual Brasileira. Sem querer, suas histórias traçam o perfil das frustrações eróticas do brasileiro médio metropolitano, preso a tabus, alvejado pela hipocrisia, vivendo realidades duplas, ambas insatisfatórias: uma semi-liberadora da sua libido natural e saudável, mas logo semi-destruída pelos complexos de culpa impostos pela Tradicional Moral da Família de Bons Costumes e outra coercitiva, a rebentar em ódio, em malevolência, vingança, tédio, martírio indescritível.

Dalton Trevisan é um afluente do pensamento libertador de Wilhelm Reich, o grande cientista revolucionário que reconheceu na estrangulação do instinto sexual a raiz de todos os totalitarismos, do nazista que desemboca na megalomania psicótica de Hitler à negação do sexo cultivada artificialmente pelo realismo socialista soviético ou pelas duchas de água fria e prática intensiva de ping-pong dos chineses impedidos de se casarem antes de idade plenamente adulta.

Como em outros livros, Dalton Trevisan recheia de citações eruditas seu texto críptico, aparentemente narrativo apenas de tão claro. Agora, à citações bíblicas sucedem-se as de um poeta religioso, T. S. Eliot, que em poema famoso denominara abril como o mais cruel dos meses. O autor curitibano inicia um conto parodiando:

“Janeiro e o menos cruel dos meses”. É provavelmente o relato mais patético de todos os que compõem A Trombeta do Anjo Vingador. Há descrições hilariantes, em que o parceiro de jogos amorosos copara a reles companheira à “Maja Desnuda” de Goya ou ambos esquadrinham o corpo feminino com se fosse a engrenagem de um automóvel, segue-se a parca, mas destroçadora volta à casa do solteirão contra a vontade, o marido farrista punido pela mulher arquicorneada e farta daquela farsa.

É um deserto de afeição humana de absoluta desolação que espreita todos os personagens do magistral sugador de jugulares que se esconde sob o pseudônimo de Dalton Trevisan. Quase que com os requintes sinfônicos os pensamentos monologais do homem sozinho se alternam com o bilhete da faxineira avisando que cortaram a luz, com as contas da televisão não pagas, os avisos de que o título vencido tem que ser resgatado no cartório. Seu diálogo final é com o cigarro, antes de adormecer, atormentada cigarra noturna, pela lembrança da mulher-formiguinha implicante, mas que agora o deixou apodrecer, depois que ele tanto dançou e cantou no verão. Morta a incomparável Clarice Lispector, quem no Brasil retém tanta genialidade para destilar o humano em imagens urbanas tão típicas, tão trágicas, tão alucinogenamente lúcidas?

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1978–1AD) 2023. “Um ensaio para a conscientização. E que chega à grande estreia.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.