Policarpo Quaresma, uma obra-prima envolta em doce amargura
A compreensão do espírito que animou o romancista carioca Lima Barreto a compor o personagem título de suas páginas espantosas, Triste Fim de Policarpo Quaresma, pode ficar em parte impedida pela tradução imperfeita da frase de Renan que lhe serve de epígrafe. No original francês de seu Mar Aurèle, está claramente exposta a noção de ruptura entre o idealista e a realidade que o circunda:
“Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transpose les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire »
Como qualquer aluno médio da Aliança Francesa sabe, a tradução em português que vem logo abaixo está incorreta:
“O grande inconveniente da vida real e o que a torna insuportável ao homem superior é que, se para ela transportamos os princípios do ideal, as qualidades se tornam defeitos, se bem que frequentemente o homem íntegro aí se sai menos bem que aquele que tem por causas o egoísmo e a rotina”
Si bien que significa a tal ponto que, de tal modo que, correção que, convenhamos, modifica todo o sentido da frase.
Tivesse tal erro primário sido cometido por um principiante no estudo do francês e não teria sido tão grave. Mas numa edição cuidada, que se quer erudita, com frondosas citações de Luckács e outros críticos, fica lesada a inteligência do leitor que não puder discernir na infeliz tradução uma das linhas-mestras que delineiam todo o romance de Lima Barreto: Triste Fim de Policarpo Quaresma, Editora Ática.
É óbvio o parentesco do major, patriota e funcionário Policarpo Quaresma com Dom Quixote ou com o príncipe Mishkin de O Idiota de Dostoievsky ou com qualquer personagem que queira sobrepor seu idealismo à rudeza destruidora e diluidora da realidade que o circunda. Não há maior lugar-comum do que o afirmar que os “inconformados” e “animados por um ideal elevado” são os mártires da história política (Ghandi, Tiradentes, Martin Luther King), cultural (Baudelaire, Bach, Mozart), social (Wilhelm Reich, Rosa Luxemburgo) ou qualquer outra esfera do penoso progresso humano. De certa forma, Triste Fim de Policarpo Quaresma é o típico Erziehungsroman em sua forma trágica: é um romance em que o herói ou anti-herói aprende, por sua própria e dolorosa experiência, a reconhecer os limites da sua esfera ideal de ação e os obstáculos, intransponíveis, que os interesses dominantes erigem contra seu inconformismo ou ingenuidade.
Os fatos patéticos que marcaram a vida de Lima Barreto são notórios: mulato, pobre, escorraçado pelo preconceito racial das “rodas” literárias do Rio de Janeiro da sua época (1881-1922), pela futilidade dos prosadores e poetas brasileiros que, na sua esmagadora maioria, estavam tão distantes do Brasil quanto possível, tentando aclimatar-se a uma “selva” oposta em tudo ao refinamento de Paris e suas escolas de parnasianismo, simbolismo e outras flores exóticas mal importadas por nossas alfândegas intelectuais. Lima Barreto passou do alcoolismo à loucura, depois de lutar asperamente para manter o pai que enlouquecera, dedicando-se ao jornalismo, a empregos públicos, e vindo a morrer depois de propor profeticamente o lançamento da “negrice”, uma corrente literária que desse ao negro o relevo que tem na sociedade brasileira e, comovedoramente, depois de ter focalizado os males que corroem o Brasil com um misto inusitado, original, de esperança, de amargura, de pessimismo e de ironia.
Inimigo acérrimo de Machado de Assis, Lima Barreto isolou-se de seu meio ambiente: jamais quis pertencer a nenhuma academia literária, abominava a descaracterização cultural do Brasil, já predominante em seu tempo. Embriagava-se de lieratura francesa exatamente para não copiá-la servilmente, mas, ao contrário, enraizar a literatura brasileira fora da estufa onde se cultivavam tendências europeias e retratar as diferentes camadas de nossa população em romances, cujo realismo é tocado sempre de um comovente elo de calor humano e de poesia. Excelente, a biografia que fez dele Francisco de Assis Barbosa (Editora José Olympio, A Vida de Lima Barreto), aviva e aclara os traços fundamentais desse grande precursor dos conceitos principais da Semana de Arte Moderna de 1922.
Não que fosse possível reduzi-lo a mero “precursor”, pois com Lima Barreto as correntes que prendiam o romance brasileiro às matrizes do Velho Mundo já se rompem, concreta e comprovadamente. Policarpo Quaresma é, em grande parte, o próprio autor, com pinceladas caricaturais que, porém, não lhe retiram a aura de doçura e perspicácia intelectual que distinguem o romancista carioca. Farto de verificar, diariamente, quanto o Brasil, estrangeirado até a medula, se avilta, se apequena e se nega a si próprio, esse humilde funcionário público idolatra um conceito que os internacionalismos hoje em modo tornaram risível e ao qual o senador Teotônio Vilela se refere desassombradamente: a Pátria. Quaresma envia ao Congresso um ofício, pedindo que se adote o tupi-guarani como nossa língua oficial. Quaresma saúda quem vai visitá-lo com os prantos típicos de uma tribo tupinambá em vez do distante aperto de mão, o importado handsshake britânico. Considerado louco, passa no hospício uma temporada que, se não arrefece o seu patriotismo, o amargura profundamente. Seu contato com a roça é igualmente desolador; a roça, o interior são lugares abandonados pelo governo, entregues às saúvas que devoram as colheitas, às doenças dos Jecas-Tatus que uma espécie de maleita mental impede de defender seus direitos, quando não o quintal das arengas da baixa politicagem. Quaresma, por não apoiar um partido político ou mesmo se definir em termos políticos, é injustamente multado, de forma dolosa e impune. Escreve ao Marechal Floriano Peixoto presidente da República e ingenuamente se enreda em facções militares e termina condenado ao pelotão de fuzilamento. Um romance picaresco? Uma história divertida como é engraçado o Tartarin de Tarascon, de Daudet? Uma confissão apavorante de impotência diante do acomodamento e do servilismo das oligarquias brasileiras que o esmagam ao mesmo tempo ao mesmo tempo que obliteram a sua memória?
Triste Fim de Policarpo Quaresma roça, frequentemente, a estatura de uma obra-prima: “E desse modo ele ia levando a vida, sem ser compreendido, e a outra metade na repartição, também sem ser compreendido. No dia em que o chamaram de Ubirajara, Quaresma ficou reservado, taciturno, mudo, e só veio a falar porque, quando lavavam as mãos num aposento próximo à secretaria e se preparavam para sair, alguém, suspirando, disse: ‘Ah! Meu Deus! Quando poderei ir à Europa!’ O major não se conteve: levantou o olhar, consertou o pince-nez e falou fraternal e persuasivo: ’Ingrato! Tens uma terra tão bela, tão rica, e queres visitar a dos outros! Eu, se algum dia puder, hei de percorrer a minha de princípio ao fim!”
Num país em que a memória nacional é carunchada em igrejas, bibliotecas, velhos casarões ainda de pé, ele se espanta: “Como é que o povo não guardava as tradições de 30 anos passados?” Os que fazem da adulação ignóbil seu modo de “subir” na vida povoam estas páginas ao lado de Quaresma: “Empregado do Tesouro, já no meio da carreira, moço de menos de 30 anos, ameaçava ter um grande futuro. Não havia ninguém mais bajulador e submisso do que ele. Nenhum pudor, nenhuma vergonha! Enchia os chefes e os superiores de todo incenso que podia. Quando saía, remancheava, lavava três ou quatro vezes as mãos, até poder apanhar o diretor na porta. Acompanhava-o, conversava om ele sobre o serviço, dava pareceres e opiniões, criticava este ou aquele colega e deixava-o no bonde, se o homem ia para casa… Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio”. A falsa erudição que até hoje o brasileiro médio pensa “tirar de letra” é uma escada para os altos cargos e para a admiração da patuléia ignara, entontecida por aquela oca retórica plagiada de tomos vetustos e compreendidos pela metade. Os movidos pelo egoísmo ou pela rotina corriqueira sobressaem-se, como na reflexão ética de Renan, mal traduzida como epígrafe deste livro: os loucos, os miseráveis, os idealistas é que estão à margem do “triunfo”, do “sucesso”, nessa pluralidade de “infernos sociais” que a vida apresenta:
“Casas que mal dariam para uma pequena família são divididas, subdivididas, e os minúsculos aposentos assim obtidos alugados à população miserável da cidade. Aí nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna menos observada da nossa vida, sobre a qual a miséria paira com um rigor londrino. Não se podem imaginar profissões mais tristes inopinadas da gente que habita tais caixinhas..”
Mas mais “democrática” e universal é a loucura. “Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentido que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta, numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos e dos outros e do mundo… Não é só a morte que nivela: a loucura, o crime, a moléstia passam também a sua vassoura pelas distinções que inventamos… Saiu o major mais triste ainda do que vivera toda a vida. De todas as cousas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais depressora e pungente”.
Como Adolfo Caminha, Lima Barreto antecipou-se excessivamente a seu tempo: de temperamento anárquico, revoltado com sua condição, mas saudoso da monarquia, horrorizado com a República imposta pelos militares positivistas, ele ironiza o “progresso” material que não modifica minimamente a ética do comportamento humano. É um trecho que adquire imediata atualidade se se substituir o termo “positivismo” pelo de “materialismo científico”:
“Eram os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento do regime normal, a religião da Humanidade, a adoração do grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escritura fonética e eleitos calçados com sapatos de solas de borracha!… Os positivistas discutiam e citavam teoremas e mecânica para justificar as suas ideias de governo, em tudo semelhante aos cantos e emirados orientais”.
A carta em que Quaresma se dirige à irmã e reexamina a sua vida é o momento culminante deste romance melancólico, trágico, pungente:
“Esta vida é absurda e ilógica; eu já tenho medo de viver, Adelaide. Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos amanhã, deque maneira havemos de nos contradizer de sol a sol…
O melhor é não agir, Adelaide; e, desde que o meu dever me livre destes encargos, irei viver na quietude, na quietude mais absoluta possível, para que do fundo de mim mesmo ou do mistério das cousas não provoque a minha ação o aparecimento de energias estranhas à minha vontade, que mais me façam sofrer e tirem o doce sabor de viver…
Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que derramei e o sofrimento que vou sofrer toda a vida foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer…
Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo e maníaco e a vida vai-se fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.”
Não só a loucura, a miséria, a guerra esgotam esta saga urbana: sensível à condição da mulher, Lima Barreto já denuncia a “casa de bonecas” ibseniana em que a mulher brasileira é obrigada a viver, sem participar das ações, reflexões e decisões nacionais: seu único “destino” e casar-se e, uma vez casada, “conhecer o seu lugar”. Nem mesmo a Olga que, superando os preconceitos que lhe querem tolher os movimentos, tenta, inutilmente, salvar aquele “pândego” e só depara com homens pusilânimes e medíocres consegue superar essa crosta de imobilidade.
Há quem queira ver nas frases finais do livro uma esperança: “Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima… Esperamos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros”.
Será justa essa aferição da conclusão de Lima Barreto? É impossível determinar, a não ser por um parti pris ideológico, que sim ou que não. De qualquer maneira, o que o leitor constata é uma mecânica da imobilidade do Brasil: de 1911, quando foi publicado esse livro, até hoje, o que mudou senão a aparência? Que modificações houve senão de alcance estatístico? De forma confusa, no entanto, sem rótulos precisos de “esperança” ou “desânimo”, Lima Barreto incute em quem o lê a noção dual de que o prisma das coisas tristes é sem dúvida mais amplo e mais abrangente do que o da alegria, mas viver, como um inexplicável paradoxo, imbui as derrotas de uma atmosfera que só o enigma da doçura define e delimita.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Policarpo Quaresma, uma obra-prima envolta em doce amargura},
booktitle = {Racismo e literatura negra},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {1},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-1/2-literatura-brasileira/08-policarpo-quaresma-uma-obra-prima-envolta-em-doce-amargura.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1983/4/9. Aguardando revisão.}
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