A África, hoje. Em dois bons livros - LGR comenta as obras de Chinua Achebe e Cyprian Ekwensi

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1983/05/28. Aguardando revisão.

Com a preponderância avassaladora da economia e da política como únicos critérios da nossa época, ficam relegados a segundo plano os aspectos culturais de tal modo que a Nigéria, para o brasileiro medianamente bem informado, se reduz a um esqueleto: petróleo, população imensa e guerra do Biafra. Ignora-se que, desde a sua libertação do domínio inglês, há mais de duas décadas, e até mesmo antes de sua independência política, a Nigéria já se distinguia de todos os outros países da África Negra pela sua rica efervescência cultural. Com cinco universidades, entre elas a mais importante ao sul do Saara, a de Ibadan, com a revista Black Orpheus (Orfeu Negro), que já antes da libertação divulgava os temas e conquistas da poesia da négritude de um Léopold Senghor ou de um Aimé Césaire, a Nigéria celebra o passado faustoso das esculturas de bronze de Benin e se afirma no presente com a poesia de nível internacional, de John Pepper Clark, na sua pesquisa de música popular, desde o high life de Gana até o dixieland e o jazz dos Estados Unidos e os sons do Caribe.

Se, através de editoras portuguesas e uma ou outra brasileira, o Brasil trava conhecimento, assombrado, com o vigor criativo e expressivo de romancistas, como José Luandino Vieira e Manuel Rui, angolanos, a surpresa não será menor ao descobrir agora os talentos nigerianos que a Editora Ática em sua oportuna Coleção de Autores Africanos, lança pioneiramente: Chinua Achebe, com O Mundo se Despedaça e Cyprian Ekwensi com Gente da Cidade. É pena que a Ática siga, na revelação dessa literatura, , um zigue-zague estonteante. Ao lado de um romancista importante, original, como José Luandino Vieira, imprimir-se um farsante desprovido de talento – como o português grotescamente autodenominado de Pepetela e sua imitação fracassada da narrativa oral africana naquele infanticídio literário chamado As Aventuras de Ngunga – é dar mostras de uma versatilidade de critérios levada à esquizofrenia ou de uma ausência de critérios capazes de distinguir o essencial do que lhe é oposto, adiposo, supérfluo, prejudicial, inútil. Basta recordar outro aborto pseudoliterário, o insuportável Portagem do moçambicano Orlando Mendes, que não se consegue colocar na pele de um mulato e sufoca o leitor desprevenido numa atmosfera lacrimosa, evocativa das piores radionovelas brasileiras da década de 40.

O Mundo de Despedaça (no original inglês: Things Fall Apart) tem como epígrafe versos do grande poeta irlandês William Butler Yeats:

“O falcão, a voar num giro que se amplia, 

Não pode mais ouvir o falcoeiro; 

O mundo se despedaça; nada mais o sustenta; 

A simples anarquia se desata no mundo” (W. B. Yeats, “O Segundo Advento”)

Simbolicamente, Chinua Achebe alude ao desmoronamento das tradições tribais autóctones com o aparecimento do homem branco – o missionário, os comerciantes, as autoridades. No entanto, a capa que a editora dedica ao livro é excessivamente teatral e dramática, sugerindo que uma África Negra pura e sem mácula foi enforcada pelo opressor europeu, o que é uma simplificação de uma situação muito mais complexa e que o próprio livro desmente. Originário dos orgulhosos e diligentes Ibos, Achebe tem a extraordinária qualidade de não ler o Pravda em sua tradução para o inglês, o yoruba ou qualquer outra língua africana que lhe seja acessível. O Mundo se Despedaça é, possivelmente, o livro mais equilibrado, mais justo e sereno de quantos já se escreveram a respeito da inserção violenta do Continente Negro nas correntes da interdependência política, econômica, cultural do nosso planeta, hoje transformado na aldeia eletrônica prevista por McLuhan. Como este romance corajoso comprova, a sociedade aborígene da Nigéria – e haverá exceção para esta regra para qualquer sociedade humana? – não vivia num paraíso, do qual o colonizador a desalojou bruscamente. Com grande equanimidade, Chinua Achebe ousa mostrar as falhas e injustiças das organizações tribais intocadas pela civilização ocidental europeia. Assim, as comunidades se baseavam numa forma monárquica de clãs oligárquicos. Quem mais rico fosse, mais títulos e poder possuiria. À semelhança das castas da Índia hindu, os esus eram párias, intocáveis. Sociedade marcadamente machista, nela à mulher fica reservada apenas um punhado de posições nitidamente subalternas: lides domésticas, ventres reprodutores e dóceis de pequenas poligamias de quatro, cinco esposas legítimas para cada herói da tribo. A crueldade estendia-se também ao abandono, na Floresta Maldita, das crianças nascidas gêmeas e consideradas maléficas, dos doentes acometidos de moléstias, como o inchaço. E as lutas físicas consagravam o líder e eram a forma de aferir o “valor” de um homem naquela comunidade que punia severamente qualquer transgressão de seus mitos: os pobres, os descrentes da ética do trabalho, da riqueza e da força eram mantidos à margem dos demais e desprezados inclementemente por todos. Com grande sensibilidade, Chinua Achebe capta esses instantâneos de um passado em que a paz se conseguia através das guerras de conquista, da submissão total aos chefes do momento e a normas nunca postas em dúvida antes. Okonkwo, o grande lutador de ambição desmesurada, jamais se conforma por não ter recebido herança alguma de seu pai indolente. Sua ascensão não conhece os limites do escrúpulo nem da afeição nem da doçura. Todos que se interpuserem entre seus objetivos obsessivos e ele serão abatidos sem piedade. Buscando o apoio das divindades que tão mão o aquinhoaram, ele chafurda no sangue, na violência, na tirania:

“Mas essa noite especial estava escura e silenciosa. E em todas as nove aldeias de Umuófia, um pregoeiro com seu agogô pedia a cada um de seus habitantes que estivesse presente ao encontro, na manhã seguinte. Okonkwo, no leito de bambu, tentava imaginar qual seria a natureza da crise – guerra contra um clã vizinho? Essa parecia ser a hipótese mais provável, e ele não tinha medo da guerra. Era homem de ação, homem de guerra. Ao contrário do pai, era perfeitamente capaz de ver sangue. Durante a última guerra de Umuófia, fora o primeiro a trazer para casa uma cabeça humana. Essa era a sua quinta cabeça; e ele ainda não era velho. Nas grandes ocasiões, como o funeral de alguma celebridade da aldeia, bebia o vinho de palma no primeiro crânio que cortara”

Antes da intrusão do mundo da opressão colonialista branca, no entanto, Chinua Achebe mescla, em dosagens esplêndidas, os mitos e provérbios africanos com sua aura de colorido e poesia impressionantes. Há o espírito pessoal (uma espécie de anjo da guarda) que pode influenciar mal ou bem o destino de cada um: chi. Há as deliciosas citações de ditados africanos: “Eneke, o pássaro, diz que desde que o homem aprendeu a atirar sem errar a pontaria, ele, o pássaro, aprendeu a voar sem pousar”. O onipresente senso de humor, o riso espontâneo e irreverente do africano pontilha também estas páginas: “Todos riram gostosamente, exceto Okonkwo, que deu um riso meio sem graça, porque, como diz o ditado, mulher velha fica sempre um pouco sem graça quando se faz menção de ossos secos num provérbio”. O Festival da Colheita do Inhame, a planta da virilidade e alimento principal da tribo, enseja evocações de grande beleza plástica por ocasião de seus preparativos:

“Faltavam apenas três dias para o Festival. As mulheres de Okonkwo tinham esfregado as paredes das choças com barro vermelho, até que rebrillhassem. Depois, tinham desenhado nelas motivos decorativos em branco, amarelo e verde-escuro. Em seguida, pintaram seus próprios corpos de vermelho e desenharam arabescos, com tinta preta, no estômago e nas costas. As crianças também foram enfeitadas, os cabelos parcialmente raspados a formarem bonitos desenhos..”

O sensível e perspicaz autor nigeriano não omite, porém, as vozes que se insurgem contra a barbárie de certos costumes irracionais: as mulheres que surdamente se rebelam contra a lei de atirar os gêmeos recém-nascidos, sem enterro, na Floresta Maldita; o ancião sábio que recrimina Okonkwo pela crueldade de matar o adolescente, cuja vida lhe tinha sido entregue e que devia considerar como seu próprio filho, deixando o sacrifício do rapaz, decidido pelos oráculos dos deuses, a outra pessoa. Uma dessas críticas é contra a proibição, absurda, de que alguém morra no decurso da celebração da Semana de Paz anual:

“- Contaram-me ontem – disse um dos visitantes mais moços – que, em certos clãs, se considera uma abominação que um homem morra durante a Semana da Paz. 

  • E realmente é verdade – falou Ogbuefi Exeudu – Existe essa crença em Obodoani. Se um homem falecer nessa semana, não é enterrado. Jogam-no na Floresta Maldita. É um mau costume o que essa gente segue, um mau costume o que essa gente segue, porque lhe falta compreensão. Atiram na floresta uma grande quantidade de homens e mulheres, sem enterro. E qual é o resultado? Seu clã vive cheio de espíritos mais desses mortos, sem tumba, ávidos de causar danos aos vivos.”

Para o leitor deslumbrado com a poesia e a situação comovedora das mães, cujos filhos, crianças perversas, morrem pouco depois de nascer para voltar a surgir de seus ventres e morrer prematuramente, são eloquentes as cenas que evocam o lamento dessa perda e os esforços, em vão, das mães a querer esconjurar a morte que lhes arrebata os filhos ainda pequenos:

“Ekwefi já sofrera muito na vida. Dez vezes tivera filhos e nove deles tinham morrido na primeira infância, quase todos antes dos três anos. À medida que ela ia enterrando um filho atrás do outro, sua dor foi sendo substituída pelo desespero e, mais tarde, por uma terrível resignação. O nascimento de um filho, que para qualquer mulher era a coroação de sua glória, para Ekwefi tornara-se simplesmente motivo de agonia física, destituída por completo de promessa. A cerimônia do nome, passadas sete semanas de mercado, tornara-se um ritual vazio. Seu desespero, cada vez mais profundo, encontrava válvula de escape os nomes que dava aos filhos. Um deles fora um grito patético: Onwmbiko, isto é: ‘Morte, eu te imploro’. Mas a morte não prestou ouvidos à súplica e Onwunbiko morreu no décimo quinto mês de vida. A seguinte, uma menina – Ozoemena: ‘Que jamais isso venha acontecer de novo’ – morreu no décimo primeiro mês, e mais dois se foram depois dela. Ekwefi, então, tornou-se desafiadora e chamou o próximo filho de Onwuma: ‘Que a morte se satisfaça’. E a morte assim o fez”

Chinua Achebe deplora, evidentemente, que a África Negra tenha trocado os males de suas comunidades tribais pelos males do mundo tecnológico, prosaico, utilitarista, do europeu e do branco norte-americano. Uma igreja que se diz cristã e abençoa a escravidão de milhões de africanos é superior eticamente às divindades africanas às vezes caprichosas, às vezes cruéis, às vezes indevassáveis, em termos de compreensão humana do passado? As fábricas e favelas substituem com vantagem a era das lutas, das colheitas, dos inhames, do infanticídio? O sangue derramado pelo Império Britânico vale mais que o sangue das lutas entre tribos em guerra?

O romancista nigeriano (apesar dos percalços da tradução brasileira, sem estilo e demasiado aderente ao original inglês) responde com sarcasmo: para os invasores brancos aquele “incidente” do suicídio do chefe Okomkwo e os tabus dos “nativos” de não tocaar na corda do enforcado serão apenas um apêndice do livro que o comissário inglês já esboçou. Seu título não poderia ser mais sarcástico e arrogante: “A pacificação das tribos primitivas do Baixo Níger”.

Não, sublinhe-se bem que Chinua Achebe seja um saudosista de um Èden inexistente: ele entoa, isso sim, um lamento pela imposição de um único padrão social, cultural, político , econômico: o do lucro, da concorrência, da imitação servil dos códigos trazidos pela civilização branca.

Já em Gente da Cidade, Cyprian Ekwensi avocará para si a tarefa de retratar a Nigéria de hoje, com seu tumulto urbano, sua transição repentina de um estágio cultural para a proletarização citadina, para a burocratização e uniformização das metrópoles do século XX. A violentação das sociedades africanas é também, sem nenhuma metáfora, a destruição de suas estruturas éticas, a perda de sua identidade psíquica. É tarde, agora, porém, parece concluir Ekwensi: seus personagens são repórteres, músicos, moças que vendem sua beleza exótica a brancos milionários, favelados vindos de Gana ou do Alto Volta todos indistintos naquele caldeirão governamental de Lagos, a capital e seu burburinho cacofônico.

A África tornou-se igual aos outros continentes? A extirpação da sua personalidade foi total? Não parece ser a resposta de autores tão diferentes e, no entanto, semelhantes em sua visão da Nigéria atual: a África milenar sutilmente se insinua em meio a uma civilização que lhe é antípoda e nela reconstrói o lado positivo da herança africana – a doçura, a humanidade, o riso, o abandono do relógio de ponto em prol de uma cooperação comunitária cheia de solidariedade e reconquistada alegria. Apesar dos preconceitos e da opressão, a África vive.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A África, hoje. Em dois bons livros - LGR comenta as obras de Chinua Achebe e Cyprian Ekwensi .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.