Uma viagem ao monstruoso arquipélago que a Rússia omite dos seus mapas

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1975/06/07. Aguardando revisão.

Procuram-se jovens ocidentais “avançados”, dispostos a renegar publicamente o Ocidente. Oferece-se: uma boa vida burguesa em Moscou, ótimos salários. Entrar em contato com a KGB (Polícia Secreta da União Soviética), ou Sr. Gromiko, Ministro das Relações Exteriores.

Um jovem sueco idealista, Erik Arvid Andersen, abandona a fortuna do pau milionário e alista-se voluntário no Exército inglês para combater os nazistas na Normandia, durante a Segunda Guerra Mundial. Mas ter vencido a maior ameaça que já pesou sobre a aldeia global – o Terceiro Reich de Hitler – não lhe bastou. As desigualdades sociais continuavam a atormentá-lo no Ocidente. Sua simpatia pelo comunismo soviético desperta a atenção de Gromiko, que jantara em casa da família Andersen em Estocolmo. Erik é convidado a Moscou: são banquetes, recepções com artistas, operários, membros do Partido – é o paraíso. Sutilmente, entre uma ida ao Ballet Bolshoi e uma visita a uma fazenda-modelo, Gromiko lhe propõe: que tal denunciar o capitalismo, capitalizar os pobres das democracias ocidentais e acusar o próprio pai de opressor dos operários subpagos?

Erik Arvid Andersen horrorizava-se: primeiro, seu pai paga a seus empregados excelentes salários. A Suécia tem o segundo rendimento per capita mais alto do mundo, em seguida ao dos Estados Unidos. Na Suécia não há miséria, nem analfabetismo, a previdência social é perfeita. E depois: como acusaria o próprio pai?

Era uma situação imprevista para os russos. O que fazer? Ofereceram-lhe uma datcha (casa no campo), dão-lhe refeições requintadas e as obras de Marx, Engels, Lenin e Stalin para que ele se “eduque” politicamente. Passado um ano, é inútil: ele quer voltar para o Ocidente, achando que errara – lá é que deveria combater as injustiças. Ameaçam-no com os horrores dos campos de concentração. Afinal, como as autoridades de Moscou podiam devolvê-lo à Suécia? Solução: é mandado durante vinte anos para o apavorante Arquipélago Gulag. Aos pais de Erik a agência Tass informa que ele “acidentalmente afogara no rio Spree” e enxugam o suor do rosto: “Ufa, para que formos nos meter com esse filhinho de papai incapaz de obedecer e salvar a própria pele?”

É inútil procurar nos mapas da Rússia esse monstruoso arquipélago. Está murado, o Inturist, o Centro de Turismo da União Soviética, não o levará lá, os guias e intérpretes abanam a cabeça: nunca ouviram falar de tal coisa. E é possível que nunca tenham mesmo. Gulag é uma catacumba, um rio subterrâneo de massa humana, nacionalistas da Ucrânia, da Estônia, da Lituânia, cientistas, professores de filosofia, estudantes, operários – todos compõem esse gigantesco universo carcerário que flui incessantemente. Nutre-se de denúncias, de cartas anônimas, de trens abarrotados de prisioneiros – milhares dos quais totalmente inocentes – que vomitam sua carga pelo vasto território quase três vezes maior que o Brasil, os 22 milhões de km2 da URSS.

Na bacia do rio Kolimá, noticia a revista Priroda (Natureza), da Academia de Ciências de Moscou, acharam-se , em 1949, fósseis de peixes denominados tritões, que, embora sob espessa camada multimilenar de gelo, estavam tão frescos que podiam ser saboreados pelos presentes com prazer. Kolimá era a ilha maior desse arquipélago desconhecido e os que devoravam esses tritões eram os prisioneiros: o leitor dessa nota aparentemente só de interesse científico é Aleksandr Solzhenitsyn, preso 11 anos por ter ironizado a figura de Stalin numa carta a um amigo.

Ele recorda:

“Este arquipélago, cheio de enclaves, recortava-se policromo sobre o outro país, a que estava incorporado, penetrava nas suas cidades, pairava sobre as suas ruas – e, no entanto, havia quem não se apercebesse de nada, embora muitos tivessem ouvido falar vagamente de algo; só os que lá tinham estado conheciam tudo.

Entretanto, como se tivessem perdido o dom da fala nas ilhas do arquipélago, eles guardavam silêncio.

Numa inesperada virada da nossa história, uma parte insignificante desse arquipélago foi dada a conhecer ao mundo. (Quando, em 1956, durante o 20° Congresso do Partido Comunista da URSS, Kruchev denunciou os crimes de Stalin e permitiu a publicação de Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch, do ex-prisioneiro Solzhnenitsyn). Mas as mesmas mãos que nos apertaram as algemas abrem agora conciliadoramente as palmas e dizem: “Não... Não se deve mexer no passado!... Aquele que recorda o passado perde um olho!” E, no entanto, o provérbio acrescenta: “Aquele que esquece perde os dois!”

As décadas vão correndo e lambem irrecuperavelmente as cicatrizes e úlceras do passado. Outras ilhas, durante esse tempo, estremeceram, foram-se derretendo, desbordaram, e o mar polar do esquecimento vem bater sobre elas. E um dia, no século futuro, este arquipélago, o seu ar e os ossos dos seus habitantes, congelados numa camada glacial, serão apresentados aos descendentes como um inverossímil tritão.

Não ouso descrever a história do arquipélago: não me fio dado ler documentos. Mas alguém, algum dia, virá a consegui-lo?... Aqueles que não desejam recordar tiveram já tempo bastante (e terão ainda mais) para destruir os documentos todos, completamente.

Os onze anos que ali passei, incorporei-os não como uma desonra, nem como um sono maldito, mas quase amando aquele mundo monstruoso. E agora, tendo-me tornado por um feliz reverso a pessoa a quem foram confiadas as inúmeras cartas e relatos tardios, talvez eu saiba transmitir algo dos seus ossos e da sua carne e, para além disso, da carne ainda viva dos tritões ainda hoje vivos”.

Aleksandr Solzhenitsyn não escreveu sozinho estas quase 600 páginas alucinantes (Editorial Difel, no Brasil). Teve o apoio de 227 companheiros de prisão que lhe entregaram relatos e cartas. Se nas bibliotecas do Estado (e são as únicas existentes na Rússia) toda e qualquer menção aos campos de concentração foi retirada de circulação e inúmeros comprovantes foram queimados, trinta e seis escritores, “encabeçados por Máximo Gorki”, contribuíram para descrever este Inferno carcerário: foram os autores de “um vergonhoso livro sobre o canal do Mar Branco (construído por prisioneiros), os primeiros que na literatura russa enalteceram o trabalho forçado.”

Os métodos de prisão, o clima, o sadismo bestial e a arrogância da polícia secreta – é impossível o leitor não se lembrar imediatamente das sinistras descrições feitas pelos sobreviventes dos campos de concentração nazistas – Dachau, Auschwitz, Treblinka. Primeiro a pancada brutal na porta, no meio da noite. Depois arrombar armários, paredes, espalhar objetos pelo chão e pisá-los. Para buscar “provas” arrancam ataduras do corpo de doentes e dentes de ouro dos detidos. Quando se trata de altas patentes militares ou do Partido favoráveis a uma “liberalização” da hermética sociedade soviética, são promovidos de cargo e levados para um trem de luxo, posto à sua disposição. O destino desse trem é Gulag.

Se você entra numa fábrica, verificam seu cartão de identidade e o prendem. Se você está com 39 graus de febre num hospital militar, se você está sendo operado numa mesa de cirurgia, quase sem vida, banhado em sangue, conduzem você para a cela de Lubianka, no centro de Moscou. Você é preso pelo eletricista que foi anotar seu relógio de luz, pelo ciclista que esbarrou em você, pelo funcionário da Caixa Econômica, pelo gerente do cinema: todos os podem prender e só “depois, tarde demais, você verá, muito escondida, a chapa vermelha” da KGB.

Fugir? É impossível. Na URSS existem, como para os pretos na África do Sul, passaportes internos. Quem quer ir a outra cidade tem que ter autorização da delegacia de polícia locar, explicar o motivo da viagem, quanto tempo ficará lá. E chegando ao destino, se for dada a permissão, dentro de 24 horas você tem obrigação de registrar-se na delegacia locam em que se encontrar.

Como todo governo totalitário, o regime instituído na Rússia depois de 1917 vive esquizofrenicamente tomado pelo medo, por isso as ondas de milhões de detentos se avolumam ano a ano:

Em 1929/30 são 15 milhões de mujiques retirados de suas terras e atirados ao Gulag. Mas os mujiques não têm o dom da escrita: deles não ficaram protestos nem memórias.

Em 1944/46 a torrente assume as proporções de uma inundação: são nações inteiras das Repúblicas Soviéticas canalizadas para o Gulag, seu volume engrossado por prisioneiros russos repatriados da Alemanha e temidos como portadores de “ideias novas”.

Em 1937 a correnteza arrasta intelectuais, pessoas cultas, de altas posições do Exército, no Partido, nas ciências, nas artes, nas universidades. Os “órgãos” do Presidium têm quotas de prisioneiros a preencher, como os fornos crematórios de Dachau e Auschwitz tinham que “aperfeiçoar” a produtividade da solução final para o problema judaico: exterminar um número maior em menos tempo, numa aceleração estatística do gráfico da morte violenta.

Desde os tempos inflamados de Lenin estimulava-se o arbítrio, enaltecia-se o terror. Massacrem todos os contrarrevolucionários, os operários democratas, os socialistas e evidentemente esses “insetos sem expressão econômica”, os intelectuais! E nessa curiosa entomologia se inseriam também os padres e freiras, os pacifistas que não pegavam em armas por dever de consciência, os membros das cooperativas, os estudantes revoltados.

Para isso, a União Soviética inaugura um Serviço de Dedetização inédito no mundo: A Vetcheká, a Comissão Extraordinária de Toda a União que, como zelosa guardiã da Revolução Bolchevique, engloba todas as funções: investiga, detém, instrui o processo, faz a acusação pública, procede ao julgamento e executa a sentença.

Até 1922 não existe um Código Penal na Rússia “socialista”: a justiça revolucionária, infalível na política como o Papa em assuntos teologais e leigos, ordena o fuzilamento de camponeses, de oficiais de intelectualidade das forças armadas, de anarquistas, de mencheviques (partido minoritário derrotado pelos bolcheviques). A ponto do romancista e memorialista russo revolucionário, Vladimir Korolenko, pouco antes de morrer, enojado com o rumo sanguinário da Revolução de 1917, escrever a Górki, que também se revoltava com a matança insensata:

“A História registrará um dia que a revolução bolchevique reprimiu os revolucionários e os socialistas autênticos, empregando os mesmos métodos que o Tsarismo, isto é, métodos puramente policiais”

A sanha assassina volta-se contra os trotskistas, a partir de 1925 e mais acentuadamente contra os engenheiros. Produzem-se situações kafkianas: o chefe do Comissariado do Povo para Transportes, Nikolai Karlóvitch von Mekk sugere aumentar as composições ferroviárias para distribuir melhor os bens de consumo do país. Então esse espião fascista queria era desgastar as vias férreas para privar a República de sua movimentação? É fuzilado. Seu sucessor, o Camarada Kaganóvitch, autoriza composições duas, três vezes mais pesadas: recebe a Ordem de Lenin. Quando os engenheiros advertem para o perigo real dos trilhos cederem sob essa sobrecarga são “fuzilados por sua falta de confiança nas possibilidades dos transportes socialistas”.

Não: nem Kafka teve fantasia suficiente para inventar os 14 parágrafos do Artigo 58: este artigo pude qualquer ação ou inação sob a face da terra, como explicou um jurista com ares de superioridade: “Nós não fazemos diferença entre a intenção e o próprio delito e nisto reside a superioridade da legislação soviética sobre a legislação burguesa!”

Assim, existem categorias dentro do artigo 58 dignas de Iddi Amin ou de Goebbels: alguém pode ser condenado e até fuzilado por PE, isto é: presunção de espionagem ou, inacreditavelmente, por crime de END – espionagem não demonstrada. Substituiu-se a acusação formal por um dos dois rótulos abrangedores de todos os delitos: resquícios burgueses ou atividades contra o Estado. Um grupo reunia-se para tocar jazz? Dez anos de cadeia. Um operário semianalfabeto treinava escrever seu nome nos jornais, às vezes em cima dos retratos de Stalin? Detenção de oito anos. Um encanador desligava o rádio quanto transmitiam as intermináveis cartas de adulação ao Paizinho condutor da Pátria? Um vizinho o denuncia e aquele elemento socialmente perigoso pega oito anos de campo de concentração. Se um mestre de genética seguia a lei de Mendel e ia contra a teoria de Lissenko era fácil escolher a pena a ser-lhe imposta: crime por VAT, ou seja, por enaltecer a técnica americana, ou PZ, por admirar o Ocidente, penas extensivas a todos os estudantes, professores, jornalistas e artistas, com mais rigor para os que não citassem abundantemente Lenin, Marx e Stalin em seus cadernos, aulas, artigos e romances.

Nos primeiros anos depois da Revolução de Outubro órgãos da imprensa como Semanário da Tcheka, a Espada Vermelha e o Terror Vermelho debatem: era admissível aplicar a tortura do ponto de vista do marxismo? Logo essas discussões tornaram-se estéreis. Os campos de concentração são entregues à guarda de ladrões e assassinos de delito comum. Eram mais simpáticos às autoridades do que os dissidentes políticos. Começa então a Inquisição que precede de alguns anos a hedionda carnificina de Dachau, Auschwitz, Theresienstadt:

Os prisioneiros são imersos em banhos de ácidos;

Aos resistentes aplica-se torniquete de ferro no crânio;

Alguns torturadores mais sádicos preferem a “marca secreta”, uma forma de “pau de arara” soviético: introduzir uma baioneta em brasa no ânus do prisioneiro;

Para homens fortes prefere-se esmigalhar os testículos sob o peso das botas do carrasco que o olhava fixamente nos olhos.

Fazem-se exatamente como nos campos nazistas, “experiências” da resistência humana à dor: passeia-se sobre o coração de um homem acorrentado enquanto um médico tranquiliza os algozes: “Podem continuar, a pressão dele ainda aguenta!”

Para se chegar a esse estado de coisas não basta o terror para quebrar a espinha dorsal de um povo. Solzhenitsyn toca nos sintomas decisivos dessa esclerose social: a princípio a desenfreada cupidez pelo poder de um homem sobre o outro insensibiliza. No estágio seguinte recrutam-se sequazes de baixa cultura e inatamente sádicos. Para eles, perpetuar o poder constituído pelo Tirano cercado de bajuladores sanguinários torna-se meramente um trabalho como outro qualquer. Eichmann, defendendo-se da matança de judeus quando julgado pelo tribunal de Israel, não respondeu justamente isso, que estava cumprindo ordens superiores?

Não sentir. Não pensar. Não sentir e não pensar equivalem a privar um ser humano de sua condição humana: tirar-lhe a mente para raciocinar e o coração para compadecer-se. Aí, todas as fronteiras são ultrapassadas. Acima do bem e do mal está o álibi, o pretexto que encobre todos os crimes e todas as boas intenções: a ideologia.

A ideologia é a justificação dos covardes e cruéis, desde os conquistadores portugueses, espanhóis e ingleses a trucidar os índios e a escravizar os negros trazidos da África até os padres da Inquisição e os nazistas cada um com sua justificativa redentora: convertes os infiéis judeus e muçulmanos à única Fé verdadeira, da Igreja Católica ou extirpar o mundo dos vermes das raças impuras – os latinos, os eslavos, os negros, os mestiços, os índios, os orientais – capazes de impedir o Advento do Super-Homem nazista, o Prometeu da Raça Humana como Hitler o descreveu em seu Minha Luta.

E Solzhenitsyn pergunta: onde estão os Bertrands Russell e os Sartres para julgar os crimes cometidos por Stalin, por Kruchev e por Brezhnev em nossos dias? Por que um tribunal, justíssimo, se ergue para condenar os crimes dos nazistas em Nuremberg, depois da derrota alemã e não se ergue outro paralelo para julgar e condenar os que hoje vivem uma velhice tranquila, cultivando flores e lendo os clássicos em Moscou, em Kiev, em Leningrado?

Indiretamente, Solzhenitsyn acusa o próprio Ocidente de inércia e complacência quando diz que neste momento os carrascos de ontem e de hoje discutem em suas datchas (casas de campo, privilégio dos artistas, dos cientistas, dos altos funcionários do Partido ou dóceis aparatchik, seguidores cegos do aparelho estatal) a influência de Heidegger sobre Sartre, as relações do fauvismo com a pintura de Kandinsky e Cézanne. Acredita que dez tomos de Em Busca do Tempo Perdido de Proust poderiam ser acrescentados à devassa desse arquipélago que como uma tênia ou um câncer mina o organismo inteiro do povo russo.

E é o povo que está encarcerado, humilhado, violado, torturado:

“Acaso não é nosso povo, ultrajado e enganado, que jaz ao nosso lado, sobre os catres dos corredores?”

A Rússia tzarista iniciou, com Tchekov, com Dostoievski, a literatura carcerária, seguida por Le Mie Prigioni, de Silvio Pelico, na Itália, por Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos, encarcerado pela ditadura getulista no Brasil.

No entanto, neste século do terror, este horripilante Arquipélago Gulag forma com dois outros livros a mais cabal acusação ao totalitarismo engendrador da violência sem punição: forma, ao lado de Treblinka e de Ascensão e Queda do Terceiro Reich, a mais profunda meditação humana sobre a desumanização do homem pela bestialidade da violência, um grito de alerta e, apesar de todo o sofrimento, de esperança também no ser humano:

“Devemos condenar publicamente a própria ideia da violência de uns homens sobre os outros! Calando o vício, fazendo-o entrar no corpo só para que não saia no estrangeiro, nós o semeamos, e ele surgirá ainda mil vezes mais forte no futuro. Não castigando, nem sequer censurando os criminosos, nãos apenas os protegemos na sua velhice insignificante, como também solapamos as bases, para as novas gerações, de qualquer fundamento de justiça. E por isso que elas crescem na”indiferença” e não devido à “debilidade do trabalho educativo”. Os jovens compenetravam-se da ideia de que a infâmia nunca é castigada nesta terra, mas é sempre fonte de prosperidade.

Como é desolador, terrível, viver num país assim!”

Para estupefação dos europeus e de muitos norte-americanos e latino-americanos, o terceiro homem na hierarquia da China Comunista, Teng Hsiao Ping, bradou sem reservas ao presidente Giascard d’Estaing em sua recente visita oficial a Paris: a maior ameaça mundial é o poderio crescente do regime soviético.

Para discutir qualquer opção ideológica, o leitor brasileiro consciente – marxista ou não – tem agora este livro que acusa com o peso de mil julgamentos de Nuremberg e o poder explosivo de mil Hiroshimas: a denúncia de um autor prisioneiro, expulso de seu país por publicar fatos que sua memória e a de outros retiveram, já que o acesso a arquivos do Estado lhe foi vetado.

A conclusão realista a que se chega é a de que o Nazismo foi apenas o primeiro estágio da barbárie em dimensões mundiais, abatido graças ao sacrifício de dezenas de milhões de vidas. O nazismo renasceu, porém, sob a capa do social-imperialismo soviético, neste indelével e devastador arquipélago Gulag, que regurgita não do “sangue, suor e lágrimas” de Churchill, mas do sangue, suor e horror extraído de milhões de seres humanos agora, neste mesmo instante em que se lê este Jornal.

Nas palavras eloquentes de Solzhenitsyn, consciência de uma Nação como antes dele já o tinham sido Tolstoi, Tchekov e Dostoievski, Parternack e inúmeros outros defensores da integridade humana e da sua dignidade intrínseca;

“Feche os olhos, amigo leitor. Ouve o ranger das rodas? São os trens vermelhos (dos prisioneiros) que passam. A cada minuto do dia e da noite. A cada dia do ano. E esta água que marulha? São os barcos dos detentos que vagam. E os motores dos”tintureiros” (como fora escrito em cores vivas: “Transporte de Carnes” ou “Beba Champagne Russa!”). Desembarca-se, embarca-se, translada-se sem cessar. E este rumor? As celas superlotadas das prisões de trânsito. E estes gritos? Os prantos das pessoas roubadas, violentadas, espancadas.

Passamos em revista todos os modos de transporte e concluímos que todos são péssimos. Fizemos a ronda das prisões de trânsito sem descobrir nenhuma boa. E a última esperança do homem, de que as coisas ficarão mais suaves e de que no campo de concentração será melhor, mesmo essa esperança resulta vã.

No campo, será pior.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Uma viagem ao monstruoso arquipélago que a Rússia omite dos seus mapas .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.