Cecília Meireles. Um canto fascinado e lúcido
“Além disso, o universo não poderia deter-se num limite extremo, já que a natureza não o permitiria: ela quer que a matéria seja limitada pelo vazio e o vazio pela matéria e por meio dessas alternâncias tudo seja infinito”
Lucrécio, De Rerum Naturae
A grande, intimista poesia de Cecília Meireles se cria enre essas três alternâncias: a matéria é a natureza que ela descobre deslumbrada - flores, grilos, o mar, céu, os seres humanos -; o vazio é a busca incessante, através da morte, de um Deus de feições talvez incompreensíveis ou mesmo a ausência de Deus; o infinito é o tempo, que desagrega vidas, esperanças, ilusões, os sentidos e a própria morte, reintegrando tudo num ciclo: o infinito que é a impenetrável eternidade.
Sem aderir ao movimento do Modernismo de São Paulo de 1922, liderado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e outros, a sua aparição reticente, silenciosa na grande poesia de língua portuguesa, nada tem a ver com propósitos nacionalizantes, nem com a poesia anedótica ou, menos ainda, de conteúdo ideológico. Cecília Meireles no mesmo ano da ruidosa e revolucionária Semana de Arte Moderna do Teatro Municipal de São Paulo surge do convívio de escritores católicos, fundadores das revistas Árvore Nova, Terra de Sol e Festa, no Rio de Janeiro, entre os quais Tasso da Silveira e Andrade Murici. Ao contrário da rebelião paulista, o grupo com o qual Cecília Meireles sentiu mais afinidade tinha por bandeira a continuidade da poesia, do fazer poético. Era pela ligação com a magnífica tradição de poesia portuguesa e, em sentido mais amplo, ibérica, que a poesia brasileira se inseria entre as grandes vozes poéticas do seu tempo, pois além da continuidade ininterrupta através dos séculos, a poesia teria como característica principal aquela de ser universal.
Cecília Meireles denota claramente traços de semelhança acentuada com Rosalía de Castro, a grande poetisa galega, pela sua temática do amor; com García Lorca pela sua raiz poular, pela fluidez fácil com que seus versos deslizam. E até mesmo com a severidade de uma Santa Teresa d’Ávila, pela sua renúnica ao mundo, pelo seu severo reconhecimento de que tudo é pó, vaidade vã, transiroriedade sem maior significação. Nela a posia, fascínio e lucidez diante da fugacidade da Beleza e da vida, se faz o canto, inútil, sem dúvida, diante da deteriorização inexorável de tudo, mas destino incorercível: “Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta.”
A melancolia do tempus fugit, da ampulheta de nossas horas diminuindo, grão de areia a grão de areia, nosso tempo, coexiste com a celebração do mundo, mas impregna toda a poesia de Cecília Meireles de formas e tempos de verbos no passado: “foi”, “passaram”, “caiu”. Para muitos leitores - e não há apenas uma interpretação absolutista - os versos da maravilhosa poetisa carioca brotam de um ceticismo diante da possibilidade de a vida ter um sentido apreensível pelo ser humano: a forma de diálogo efêmero do poeta ou poetisa com a natureza que sua sensibilidade apreende agudamente e decifra é a descrição, a enumeração dos encantamentos, embora fugidios, que o mundo apresenta a seus olhos. Seria uma poesia estoica? Seria uma poesia que sabe que morre assim como as estrelas, os átomos, o sol fenecem? A sua foi a lira de um Orfeu desesperado por não ter recuperado Eurídice os Infernos, embora seu canto paralisasse, enfeitiçadas, as bestas mais primitivas?
Para outros, não, a poesia de Cecília Meireles transcende o ceticismo sombrio hispânico, a portuguesa saudade e o veredito terrível de Heráclito deque o tempo não permite que nos banhemos duas vezes nas mesmas águas de um rio, indetíveis. Então a sua poesia desembocaria muito mais no Ganges sagrado do hinduísmo: a harmonia universal não captada pelos limites intransponíveis da inteligência meramente humana é que preside ao cosmos: em tudo há um plano, uma geometria oculta, uma música platoniana das esferas e que talvez ninguém melhor do que Andrade Murici ao escrever, com um acerto que não deixa de surpreender nunca sobre a poesia de Cecília Meireles: “A mais escarpada e selvagem solitude de alma, a mais atonal música poética da geração”.
Música. Todas as percepções sensoriais - o cheiro, o tato, o paladar, a imagem vista - se misturam não só no canto que brota da terra, do mundo das coisas, do embalo do mar, mas se tornam a música refinada, peregrina, dese instrumento, cravo, alaúde, guitarra que, segundo seus temas, Cecília Meireles dedilha para fazer soar a sua música triste, raramente jubilosa, frequentemente desesperançada e em surdina como uma composição lunar de Debussy sobre um jardim molhado de chuva e emudecido de cores.
A criação vasta de Cecília Meireles não termina aqui nem o seu cultivo da poesia é obsoleto, apenas em octassílabos, rimances ou redondilhas. Ela espantosamente se renova com uma espontaneidade inesperada e e repente se coloca à altura das mais fulgurantes imagens de um Ingaretti com seu “E subito/ M’illumino d’immenso” com a mesma economia de termos: “Soltei meus olhos no elétrico/ mar azul, cheio de músicas” ou: “A vida só pe possível/ reinventada”.
Além do bucolismo: “Os bois deitados olham a frente e o longe, atentamente,/ aprendendo alma futura nas harmonias distribuídas”, ela nitidamente exprime a sua herança simbolista (Cruz e Souza, Verlaine) ao unir num acordo a querela inútil e antiga da forma contra o conteúdo: “O excesso de interesse pela forma pode chegar a inutilizar a expressão e vice-versa. Todos sabem que um poema perfeito é o que apresenta forma e expressão, num ajustamento exato. Não sei se as condições atuais do mundo (a artista falava de 1949) permitem esse equilíbrio, porque serão raros os poetas tão em estado de vivência puramente poética, livres do atordoamento do tempo, que consigam fazer do grito, música, isto é, que criem poesias como se formam os cristais. Mas creio que todos padecem, se são poetas. Porque, afinal, se sente que o grito é o grito; e a poesia já é o grito (com toda a sua força), mas transfigurado”.
Além do La Vida es Sueño da sua poesia irmã a peça de Calderón de la Barca Cecília Meireles assombra mais ainda com uma obra elaborada décadas a fio, fruto de pesquisas históricas demoradas e seguras. E o esplêndido Romanceiro da Inconfidência, a síntese das raízes ibéricas da poesia brasileira com um sentimento que não é apenas nativista de reivindicações nacionalista, mas é o grito, o brado de que ele falara, diante da injustiça, o clamor pela tores, a admiração pelo heroísmo solitário de Tiradentes. Sem que de suas pesquisas longas e constantes, se tivesse maior notícia, explode no Brasil a nossa poesia mais doloridamente social e política. Que desafia o tempo na sua plural sinfonia de culto ao martírio, ao sangue não derramado em vão, daquele que mais alto e mais ousadamente sonhou com a igualdade dos homens, sem distinção de fortuna ou origem, com a liberdade real de um país, sem peias de esmagamento cultural nem econômico por uma nação colonizadora, e, com a fraternidade universal entre todos os homens de boa vontade na Terra, a fim de atingir os únicos ideais dignos de luta: a paz, a equidade, a justiça, a democracia concreta, a ausência de censuras eclesiásticas, fascistas ou estalinistas à expressão livre do pensamento e à ação individual em prol da coletividade oprimida.
Não do presunçoso e frequentemente hipócrita engajamento de certos tidos como “poetas” surge essa poesia vigorosa, vibrante, inesquecível, mas de uma mulher anterior a todos os feminismos errôneos (em contraste com o que por ceto não querem que a mulher apenas substitua o homem como “executivo” e herdeira do “enfarte dos gerentes”). É de uma mulher sutilíssima, capaz de chorar a morte de uma borboleta que sem querer, ao tentar salvá-la, esmagara, que se levanta esse impressionante mural de um sonho que se esboroou, em Minas, diante da mediocridade e do medo torpo dos “inconfidentes” que cercavam Tiradentes. Talvez intimamente não haja contraste, é possível que a perda do tempo e a perda da oportunidade de independência sejam os dois lados que se dão batalha mutuamente no rosto bipartido do ser humano: de um lado a derrota pela evanescência, de outro, o fulgor sempre vivo da esperança.
“Retrato”
“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhares tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que mem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?”
“Elegia a uma pequena borboleta”
“Como chegavas do casulo,
- inacabada seda viva! -
tuas antenas - fios soltos
da trama de que eras tecida,
E teus olhos, dois grãos d anoite
de onde o teu mistério surgia,
como caíste sobre o mundo,
Inábil, na manhã tão clara,
sem mão, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,
minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.
Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!
Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.
Choro esta humana insuficiência:
a confusão dos nossos olhos,
o selvagem peso do gesto,
cegueira - ignorância - remotos
instintos súbitos - violências
que o sonho e a graça prostram mortos.
Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!
E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
os espelhos que refletissem
voo e silêncio - os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!”
“Fala aos pusilânimes”
“Se vós não fôsseis os pusilânimes,
recordaríeis os grandes sonhos
que fizestes por esses campos,
longos e claros como reinos;
contaríeis vossas conversas
nos lentos caminhos floreados,
por onde os cavalos, felizes,
com o ar límpido e a lúcida água,
sacudiam as crinas livres
e dilatavam a narina,
sorvendo a úmida madrugada!
Se vós não fôsseis os pusilânimes,
revelaríeis a ânsia acordada
à vista dos córregos de ouro,
entre furnas e galerias,
sob o grito de aves esplêndidas,
com a terra palpitante de índios,
e a vasta algazarra dos negros
a chilrear entre o sol e as pedras,
na fina areia do cascalho.
Também pela vossa narina
houve alento de liberdade!
Se vós não fôsseis os pusilânimes,
confessaríeis essas palavras
murmuradas pelas varandas,
quando a bruma embaciava os montes
e o gado, de bruços, fitava
a tarde envolta em surdos ecos.
Essas palavras de esperanaça
que a mesa e as cadeiras ouviram,
repetidas na cela rústica,
misturadas à móvel chama
nas candeias que suspendíeis,
desejando uma luz mais vasta.
Se vós não fôsseis os pusilânimes,
hoje em voz alta repetiríeis
rezas que fizestes de joelhos,
- súplicas diante de oratórios,
a promessa diante de altares,
suspiros com asas de incenso
que subiam por entre os anjos
entrelaçados nas colunas.
Aos olhos dos santos pasmados,
para sempre jazem abertos -
vossos corações, - negros livros.
Mas homens novos, multiplicados
de hereditárias, mudas revoltas,
bradam a todas as potências
contra os vossos míseros ossos,
para que fiqueís sempre estéreis,
afundado no mar de chumbo
da pavorosa inexistência.
E vós mesmos o quereríeis,
ó inevitáveis criminosos,
para que, odiados ou malditos,
pudésseis ter esquecimento…
Chega, porém, do profundo tempo,
uma infinita voz de desgosto,
e com o asco da decadência,
entre o que seríeis e fostes,
murmura imensa: “Os pusilânimes!”
“Os pusilânimes!” repete
o breve passante do mundo,
quando conhece a vossa história!
em céus eternos palpita o luto
por tudo quanto desperdiçastes…
“Os pusilânimes!” - suspira
Deus. E vós, no fundo da morte,
sabeis que sois - os pusilânimes.
E fogo nenhum vos extingue,
para sempre vos recordardes!
Ó vós, que não sabeis do inferno,
olhai, vinde vê-lo, o seu nome
é só - PUSILANIMIDADE!”
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Cecília Meireles. Um canto fascinado e lúcido},
booktitle = {Poetas brasileiros contemporâneos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {4},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-4/5-cecilia-meireles/03-cecilia-meireles-um-canto-fascinado-e-lucido.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1984-11-10. Aguardando revisão.}
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