Ela foi muito mal-recebida no Brasil. Pelo tradutor

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1977/5/28. Aguardando revisão.

Senhor Editor da Seção “Biblioteca” do Jornal da Tarde

Era minha firme intenção escrever um longo artigo para a sua Seção, focalizando a suprema escritora inglesa de todos os tempos, Virginia Woolf, aproveitando a oportunidade do lançamento do seu livro To the Lighthouse, em sua, digamos, benevolente “tradução” em português sob o título Passeio ao Farol, publicação da Editorial Labor do Brasil.

Era meu propósito revelar, no que minha capacidade humanamente limitada me permitisse, a grandeza inigualável dessa radical revolucionária da literatura e do pensamento do século XX, essa ativa feminista, essa criadora, de um lado, do elo entre o fluxo da consciência joyceano e a celebração do efêmero recapturado pela arte, em continuação da recherce du temps perdu proustiano e, de outro lado, a antecipadora do nouveau roman francês com sua abolição de enredos balzaquianos, regidos pelo relógio, pela cronologia rígida dos acontecimentos, pela descrição física e caracterização minuciosa dos personagens.

Mais ainda: eu pretendia mostrar ao público dos meus hipotéticos leitores, por meio de que alquimia artística Virginia Woolf conseguiu criar uma ficção que nada tem a ver com a “novela” nem o “romance” tradicionais e se aproxima, como afinidade, muito mais das cores e da atmosfera de um quadro impressionista de Monet ou Pissarro, com o fugidio do momento captado em palavras em vez de flores, nenúfares ou um monte de feno. Ou de um relato (?) que tem muito mais a ver com o clima criado pelos sons diáfanos de Debussy na suíte que dedicou ao mar, com seus momentos mutáveis ou a fantasia divagadora do seu famoso L’Aprés Midi d’un Faune.

To the Lighthouse (Passeio ao Farol) é possivelmente a reflexão artística mais complexa e mais perfeita como obra de arte irretocável, de toda a literatura inglesa dos últimos 50 anos, sem esquecer nem menosprezar Joyce, Yeats, Auden, D. H. Lawrence nem E. M. Foster ou Henry James e T. S. Eliot.

O que me impede, então, de documentar a grandeza plural de Virginia Woolf?

A tradução em Passeio ao Farol há uma personagem que morre de parto. Igual destino foi funestamente traçado para o abrasileiramento desta complexíssima sinfonia de sons, cores, e profundas mediações filosóficas, sociais, psicológicas, humanas, artísticas. O tradutor Oscar Mendes não desconhece totalmente nem o inglês nem o português, justiça lhe seja feita. Mas suas liberdades e desleixos com esse texto deslumbrante, matizado, de uma profundeza ética e estética insuperável evocam um coro de milhares de carpideiras, de luto pelo estrangulamento de mais uma obra-prima transplantada para o nosso idioma com rejeição imediata do organismo que recebe enxertos indevidos. Dois exemplos, entre muitos, talvez testemunhem factualmente o que afirmo. Primeiro: no original (edição Everyman da editora londrina J. M. Dent &n Sons Ltda, n. 949, coleção Fiction, página 90), diz a sublime escritora:

The liftman in the tube is an eternal necessity

Seu tradutor brasileiro altera para simplesmente isto:

“O ascensorista no Trem Subterrâneo é uma classe escrava”

Quando o sentido é o de

“O ascensorista no Trem Subterrâneo (ou metrô) é (ou constitui) uma necessidade eterna”

Isto na parte em que a personagem do livro, o professor de filosofia, Mr. Ramsay, indaga se a sociedade tem necessidade de escravos para ser a melhor das sociedades, a que atinge o nível ótimo como civilização.

Em seguida, através dessa mesma personagem, a escritora transmite muito das suas dúvidas sobre a necessidade da arte, problema que angustiava também Thomas Mann: a arte seria uma mera decoração, um mero ornamento supérfluo para a precaríssima condição humana sujeita a problemas muito mais imediatos e contundentes quanto a injustiça social, a pobreza, a violência, a morte, a loucura, o envelhecimento inelutável?

Sua personagem, que se auto inspeciona no plano da reflexão ética, sente repulsão pela ideia de uma sociedade escravagista, por mais “civilizada” que possa ser: the thought was distateful to him, o que consideravelmente minorado em seu impacto ao ser traduzido simplesmente como “o pensamento causou-lhe desgosto”, quando, na realidade, disgust em inglês é muito mais forte, significa repulsão, nojo, revulsão e não “desgosto”.

O pior de tudo, nesse crescendo de absurdos, é quando o tradutor comprova o chavão batidíssimo de que nos falam os milênios, segundo o qual, o traduttore é traditore, ou seja, o tradutor é um traidor. Ai de nós, é um lugar comum repetido ad nauseam, mas verídico, comprovadamente veraz. Pois enquanto em continuação a esse encadeamento de pensamentos, a personagem (e a autora) continua dizendo (mesma edição inglesa citada, mesma página):

To avoid it, he would find some way of snubbing the predominance of the arts

O que significa, se nos ativermos ao sentido da frase, que

“Para evitá-lo (evitar aquele pensamento escravagista que lhe pareceu, linhas atrás, repugnante) ele achava ali alguma forma de repelir (com arrogância, com sentimento de superioridade) a predominância das artes”.

O que é confirmado linhas após quando o original diz: “Ele argumentaria que o mundo existe em função do ser humano médio e para ele; que as artes são meramente um ornamento imposto sobre a vida, não a exprimem. Nem Shakespeare lhe é necessário (ou indispensável ou essencial conforme a sensibilidade da interpretação)”.

Pasmo geral! O tradutor (teria cochilado? Queria melhorar a obra imelhorável de Virginia Woolf?) produz uma adulteração antibíblica, transformando em água insalobra o que no original é vinho ou néctar inebriante dos céus:

“Para evitar isso, descobriria algum meio de esperar (grifo e pontos de exclamação incrédulos!!!!!! nossos) o predomínio das artes”.

Senhor editor: a própria Virginia Woolf reconhecera nos seus trinta anos como crítica de livros no Suplemento Literário do jornal londrino The Times que conhecer uma obra-prima por meio da camisa de força de tradução é ficar privado do estilo que é inerente a uma obra de arte. Ela dizia isso com referência aos grandes escritores russos. Tólstoi, Dostoievski, Turguêniev etc. O maior escritor judeu da atualidade, Isaac Bashevis Singer, escreve em ídiche e frequentemente publica em inglês traduções de seus contos no Playboy (pelo menos publicava até recebermos o Playboy no Brasil e antes de se substituir seu texto esplêndido pelas revistas similares brasileiras, que no louvável esforço de evitar importações supérfluas, foram mais drásticas: suprimiram o pensamento que acompanhava o desnudamento de lindas mulheres simplesmente por uma pornografia tenuemente disfarçada de, como diremos?, eugenia ou convite ao cultivo de práticas viris). Como dizíamos, Isaac Bashevis Singer, parece ter antevisto os tradutores brasileiros. Por quê? Porque declarou que “o maior problema da literatura é a tradução”. Sacrossantas palavras! No Brasil, autor após autor é vítima de seu tradutor. O romance Ada, de Nabokov, não se pode considerar traduzido: tem uma média de dez erros por página de tradução. Manuel Puig teve seus Boquitas Pintadas transformado em Boquitas Borradas pela inepta tradução brasileira que “corrigiu” os erros propositais de gramática e ortografia de sua personagem principal. O Século das Luzes de Alejo Carpentier, teve inúmeros termos “fortes” ou assim considerados pela sua tradutora brasileira vitoriana ou puritanamente expurgados e abrandados para outros mais de salão, do tipo “marafona” ou “rameira” em vez do termo chulo usado pelas personagens vulgares do autor cubano. Recentemente, a única obra em prosa – e uma extasiante obra-prima – do grande poeta italiano contemporâneo, Prêmio Nobel de Literatura, Eugênio Montale, o seu delicadíssimo e filosófico A Borboleta de Dinard ficou metamorfoseado, quando entregue à “gang” de tradutores brasileiros, não numa borboleta, mas numa larva infecta, que nada tem da grandeza, da sutileza, da comoção e piedade humanas do livro original italiano. (Como, aliás, assinalei aqui em artigo no Jornal da Tarde. Comoção e piedade humanas que Eugênio Montale certamente estenderia a seus deturpadores brasileiros, invocando a máxima cristã de “Senhor, perdoa-os porque não sabem o que fazem”.

O pretexto sempre invocado é o de que a tradução é um “bico”, um meio de arredondar salários, é uma atividade paga com salários de fome. Mas o lesado final é sempre o leitor brasileiro.

Se no plano da indústria vigessem os mesmos padrões que vigoram, alegremente, no setor de traduções de livros, nossos carros seriam cabriolets puxados a burros. Nossa energia nuclear, assunto que provocou tempestades tripartites entre o Brasil, a Alemanha e os Estados Unidos do presidente Carter, se entregue a tradutores literários brasileiros não conseguiria implantar nenhuma usina em Angra dos Reis. Ou, se montada, a usina explodiria quando se apertasse o mero botão de chamar o elevador.

E não há soluções à vista. Ninguém nem nada pune, coíbe nem institui regras ou um acordo entre cavalheiros ou entre a ética e a lógica no plano da tradução no Brasil. O Instituto Nacional do Livro, o Ministério da Educação e Cultura, as Câmaras Brasileiras do Livro, as Associações de Consumidores (de geladeiras, liquidificadores e livros etc.), as editoras ninguém assume responsabilidades nem toma providências capazes, senão de sanar, pelo menos de minorar os flagelos do desperdício de know-how intelectual literário que se adultera e desperdiça nas infamantes traduções brasileiras que tornam os autores e os leitores as vítimas impotentes de engodos remunerados. Cada vez mais a tradução de livros no Brasil se assemelha à Máfia e à dublagem de filmes: ambas imunes a prestar contas a qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, a qualquer Tribunal de Contas, a qualquer auditoria de ética e estética profissionais. E, no entanto, perverter o pensamento de uma Virginia Woolf corresponde, intelectualmente, à malversação de fundos culturais que fazem da Lutfalla um jogo de novatos inexperientes em investimento a fundo perdido.

Há um consolo, embora não um remédio: é os leitores se inscreverem, pacientemente, em cursos de línguas e ao cabo de alguns anos de profícuo labor poderem ler no original, inadulterados, os grandes autores desfigurados pelas traduções brasileiras. Ou ainda, para os religiosos, aguardar com Fé inabalável, na justiça do Dia do Juízo Final, quando TODOS serão julgados pelos crimes cometidos contra o próximo e contra a humanidade pela balança incorruptível do Senhor. Essa talvez seja a forma do ajuste de contas final com os estupradores da obra-prima alheia e o momento em que os leitores e escritores, ambos vítimas da inépcia se libertarão da inércia e da modorra impune dos meios intelectuais responsáveis (ou irresponsáveis) pela deturpação de Virginia Woolf e outros em sua incorporação surrealista ao vernáculo.

Em outra ocasião, portanto, Senhor Editor, e livre da contingência de traduções, prometo um artigo em que eu coloque o melhor de minhas limitadas capacidades a serviço da tarefa imprescindível de enriquecer a inteligência e a sensibilidade brasileira com o mundo fascinante e multiplamente pertinente e rico de Virginia Woolf. Por ora, interpõe-se eticamente entre mim e este propósito um devastado Passeio ao Farol que levou 50 anos para ser traduzido em português nas condições, porém, a que aludi acima.

Seu melancólico e desalentado crítico literário.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Ela foi muito mal-recebida no Brasil. Pelo tradutor .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.