Vinte anos de poesia, à procura de novos caminhos
[continuação do artigo em que analisa a trajetória poética de Marly de Oliveira e de Carlos Nejar]
No meio de sua trajetória poética também Carlos Nejar hesita entre o épico e o social, a recordação, a nosso ver nefasta, do pior Neruda, o surrelista, e momentos de uma poesia vivíssima de fora e arrebato contagiantes.
Um País o Coração opta por abolir a vírgula para cimentar mais fortemente aquilo que é a única palpitação: o Brasil e a emoção, a pátria e o ser. Curiosamente, mais uma vez Orfeu, o da Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, está vagamente presente nessa reinvenção pessoal de uma ilíada brasileira. São centelhas flamejante que se desprendem das arestas de cada canto:
“A condição humana um vento”
“O mundo estava na infância”
“O mundo era a gravura
de alguma pátria secreta”
“O que nos difere dos mortos?
O mundo, A dividida casa
O capital da noite”.
Percorre todo o longo poema um sopitado sopro épico e social, que, todavia, deveria presidir a toda essa vasta geografia da América subjugada e resistente como se depreende dos instante magníficos:
“As eras se intercalam
na dor humana vigas”
“Cavalo o teu povo
batendo nas cordas
das ventas e ventos”
“Sem látego América
É o teu condado
e o limpo minério”
Torna-se claro o contraste entre o vigor da evocação histórica, através de associações de ideias e semelhanças de vocábulos como no trecho:
“América eu escavo
outra América
eu escavo
as florestas
este medo
eu escavo
os remendos da história
escavo escavo
o escravo
que mói
a palma
de meus sonhos
eu escavo
o teu abismo
e o ritmo
do que te chama”
E o gosto nerudianemente dúbio da metáfora:
“América é a amada
que partiu e a outra
que me achou pelo extravio
de um velocípede
num voante domingo
e a outra que chegou
por mão do esquecimento”.
Percorrer este Um País o Coração é alternar o deslumbramento com centelhas de uma originalidade marcante com outros em que o discernimento do poeta está ainda inseguro neste painel da epopéia para escolmá-lo melhor. Não há dúvida de que os grandes momentos são dignos do melhor Carlos Nejar de O Chapéu das Estações e Árvore do Mundo:
“Não há frio nem fome
a terra compreende
a dimensão do corpo
e a si mesma contra
o peso da treva
da relva do rio
- para os mortos coberta
A palha da terra
apascenta o homem
o gado que se cria
o chimarrão
no alpendre
Conhecemos um ao outro
Sem falar
Viajar a sua esfera
Por onde ainda é terra
Um ao outro”
Ou o friso esplêndido:
“Que raça - a dos reclusos
à mesa do poema
sedentos e oprimidos
com o pão
de um claro ajuste
Que se acheguem
Ao plácido Conselho
Suportar a loucura
Não se gasta
Nem se queima”.
Seria enfadonho repetir ad nauseuam exemplos alternados da grandeza e da perda do viço poético deste empreendimento novo de um poeta já indelevelmente inscrito entre os maiores da sua geração. O saldo já existente anula qualquer julgamento negativo de uma fase ainda não dimensionada em sua inadequação de linguagem e propósito poético.
Permanecem, portanto, tanto Invocação de Orpheu como Um País o Coração como exercicios poéticos e uma já fecunda lição rumo a um domínio mais pleno do seu estro lírico
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Vinte anos de poesia, à procura de novos caminhos},
booktitle = {Poetas brasileiros contemporâneos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {4},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-4/11-carlos-nejar/01-vinte-anos-de-poesia-a-procura-de-novos-caminhos.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1980-07-05. Aguardando revisão.}
}