O negro na literatura brasileira

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Anais do Seminários de Literatura brasileira: ensaios, 1990. Aguardando revisão.

Talvez a primeira observação que seria pertinente fazer com referência ao tema do negro na Literatura Brasileira seria naturalmente a manifestação mais óbvia, qual seja a de que a Literatura Negra está completamente à margem da marginalidade. Enquanto alguns grupos de reinvindicações feministas conseguem publicar algumas coisas que falam de seus problemas específicos e principalmente dos seus direitos civis pisoteados por uma classe dominante, machista e que não reconhece nenhum direito a uma minoria dentro do que eles chamam de “uma democracia”, isto é, a predominância absoluta de uma minoria, já o negro, por exemplo, tem os seus cadernos – Cadernos negros, Cadernos do canto negro - que são mais ou menos clandestinos e só circulam através de um certo gueto brasileiro. Durante as pesquisas que fiz para este seminário não consegui detectar, em nenhum autor brasileiro específico, a não ser nos autores negros, evidentemente, uma consciência do que fosse esse problema sociológico tão sério num país como o Brasil.

Em seguida gostaria de me referir ao fato de que a literatura, quando trata do negro, quando ela não é, de forma clandestina, senha de mensagem entre grupos negros e poetas e escritores negros, ela é feita pela parte soi disant branca do Brasil, de uma maneira bastante paternalista. Tanto por parte da crítica como também por parte do público, notamos que não existe um estudo específico sobre a produção literária especificadamente negra no Brasil ou que focaliza o negro, desde Gregório de Matos Guerra até hoje, no decurso de nossa literatura. Não só todos os propósitos das reinvindicações negras como também as suas contribuições importantes estão mais ou menos relegadas a um terceiro plano. A noção de diferença de epiderme, de diferença de pigmentação surge muito cedo no Brasil, já no Brasil de Gregório de Matos Guerra. Podemos citar, entre seus versos satíricos, alguns versos em que ele zomba da sociedade baiana em 1700, na sua própria época. Num trecho de seu poema ele diz:

Muitos mulatos desavergonhados trazidos sob os pés 

Os homens nobres postos nas palhas, 

Estupendas usuras nos mercados; 

Todos os que não furtam, muito pobres 

E eis aqui a cidade da Bahia.

Ele também se ri de todos os descendentes de índios, em outros versos famosos, quando diz:

Aqui é fidalgo nos ossos, cremos nós, 

Pois nisso consistia o maior brasão 

Daqueles que comiam seus avós

Não é, porém, apenas a tina vitriólica dos sarcasmos de parte da obra de Gregório de Matos Guerra que precocemente instaura o racismo como critério de julgamento a priori no Brasil. À medida que o tempo avança, um autor como Bernardo Guimarães, por exemplo, em meados de 1800, escreve a famosa, hoje famosa até na China, A Escrava Isaura. E baste um trecho de louvação da escrava Isaura, que passava por branca, para sabermos como é que o autor a descrevia:

“A sua tez é como o marfim do teclado, alva, que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada que não saberei dizer se é leve palidez ou cor de rosa desmaiada. Na fronte calma e lisa como um mármore polido, a luz do ocaso batia um róseo e suave reflexo. Di-la-eis, à luz do ocaso, misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração”.

Em outro romance, chamado Rosaura, a enjeitada, Bernardo Guimarães duvida que exista um brasileiro apenas cujos ascendentes não tenham puxado flecha ou tocado marimba.

Mas possivelmente haja um parti pris meu aqui. A grande explosão se daria com o Adolfo Caminha e seus romances extraordinários. Interessa-nos aqui principalmente O Bom Crioulo em que ele enfrentou a Marinha brasileira e seus mitos e tabus, como a chibata, que era usada contra violações mínimas nas castas inferiores aos oficiais, e, mais ainda, ele ousou, para um escândalo inimaginável na época, colocar, no mesmo romance, dois problemas absolutamente inéditos no Brasil - o racismo e o homossexualismo. Dois grumetes, um branco e o outro negro, têm uma relação passional. Quando o louro, inconstante, belo, afeminado, tendendo ao bissexual é morto pelo negro que por ele estava apaixonado, atinge-se um clima passional digno de Eugene O’Neill. Expulso da Marinha o escritor cearense, de meados a fim do século passado, é saudado hoje, até nos EUA como um genial precursor da literatura em que o black power e o gay power se afirmam como correntes poderosas que se opõem aos diversos preconceitos que deformam a sociedade norte-americana em sua contemporânea rebelião contra o cativeiro e a omissão a que são sujeitos esses dois segmentos da população norte-americana.

Com grande propriedade, Adolfo Caminha exprime em seu livro, o que ele chama de “esse acervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas”, esse “cortiço de vespas que se denomina sociedade”. A corrente racista continuava apenas os éditos da coroa portuguesa, que, já em 1726, proibia aos mulatos e homens de cor o acesso a qualquer cargo municipal em Minas Gerais até a quarta geração, medida também aplicada aos homens brancos casados com mulheres de cor. Há notícias de que jesuítas baianos comerciavam com escravos negros como se fossem moeda corrente na época, o que dá uma ideia das mudanças que cada século traz, lentamente, à posição do negro na nossa literatura e na nossa vivência diária.

Não é no período propriamente contemporâneo e sim no período moderno que nós encontraremos personagens negros, aqui e ali, em autores tão dispares quanto Coelho Neto, José Américo de Almeida, José Lins do Rego e Jorge de Lima. O racismo do historiador Oliveira Viana imperava quase que soberano, reforçado pela obra do francês Lapouge, Les sélections sociales. Oliveira Viana afirmava a superioridade intrínseca da raça branca sobre a negra e todas as demais, ao passo que, anteriormente, o Conde de Gobineau, no qual, se diz que Hitler e Himmler teriam se inspirado para criar a sua teoria nazista da Herrenrasse, a raça superior, ariana e alemã, proclama aos quatro ventos, no seu livro famoso Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, a predominância da raça loura, de olhos azuis, logo seguida pela raça latina e, em último, a raça eslava, considerada o lixo da raça branca. Quem já teve algum contato com fotografias de guerra já viu, por exemplo, mulheres russas, grávidas, amarradas com correntes à neve, num ritual macabro dirigido por Hitler, enquanto os tanques nazistas passavam em cima dessas infelizes. Das raças de cor, nem falar! O Conde Gobineau era um comensal frequente nos banquetes de Pedro II, achando que o Brasil só progrediria quando trouxesse milhões de imigrantes europeus para cá.

Com a proclamação da República, um autor prolixo e talvez desprovido de outro talento que não o de se enamorar de suas próprias palavras, Coelho Neto, escreve um estranho e confuso romance, O Rei Negro. Nesse romance, os pretos Macambira e Balbina, no meio rural do Estado do Rio, evocam o cativeiro e o autor dá uma nota feminista às mulheres, que já eram meros objetos de fecundação, sem maiores direitos. Coelho Neto tenta repetir as deturpações da língua portuguesa pelos negros; a alteração da pronúncia de palavras - “raio de roda”, “tá in cima”, “déssi”, “dexa”, “tá” e “Deus é grandi”. Mas os negros são mostrados aí como no realismo mágico da literatura hispano-americana, como sabedores de rituais secretos, de superstições primitivas que os levam à loucura, até que o negro Macambira, príncipe em sua terra de origem, se embrenha pela floresta incompreendido pelos que se opunham à escravidão e rechaçado pelos brancos.

Nós nos lembramos sempre quando lemos os poemas de Manuel Bandeira, que ele tinha acolhido a preta Irene como digna de entrar no céu. A boa preta Irene não precisa nem pedir licença para entrar no paraíso. Já José Américo de Almeida, no conto “A baiana”, fala de uma empregada que salva uma criança frágil.

“Generosamente a patroa de Irene ficou tocada de gratidão. Chegou a termos de pespegar um beijo no focinho úmido da Baiana. É verdade, assim a batizaram, desde que chegara, não sei se por causa da cor ou porque era ama de leite. Beijou só uma vez, mas beijou. Depois cuspiu muito e esfregou sabão nos beiços, o que a fez cuspir ainda mais”.

Com Jorge de Lima temos a primeira incursão moderna na poesia de um autor francamente a favor dos negros. É verdade que Olavo Bilac, na sua poesia a respeito do banzo, se referira à saudade do negro da sua África original, mas se trata de um exercício parnasiano estético, sem maior profundidade psicológica. Nós não precisamos nos referir ao famoso “Essa negra fulô, de Jorge de Lima, em que o poeta subverte o encanto da bela escrava e a coloca em primeiro plano pelo amor do patrão, em detrimento da patroa branca e que leva uma vida parasita. Jorge de Lima, católico militante, saúda o negro com sentimentalismo, é verdade, mas com uma veemência inusitada na Literatura Brasileira. Ele canta o negro como sendo o advento não só da libertação do cativeiro como também como a primeira raça que traz para o Brasil uma doçura desconhecida da raça branca, na Europa.

Finalmente chegamos, dentro dessa rapidíssima análise de algumas personagens negras da Literatura Brasileira, às personagens de Jorge Amado, que muita gente compara às mulatas de Sargentelli. Seriam as personagens de Jorge Amado simplesmente mulheres de cor, usadas como mero chamariz lascivo para o seu livro, como Gabriela e outras personagens? Eu não creio. Na sua vontade de prestar homenagem à mulher voluptuosa e de cor, o autor baiano retratou o protótipo do uso que delas fazem os homens, os donos da sociedade machista brasileira, que se limitam a querer apenas usar a mulher sexualmente. Gabriela possui, na realidade, toda uma carga anárquica da preguiça, de ruptura de tabus sexuais e, com a inocência de quem não sofre a limitação de outros tabus, busca o prazer. Se ele exige casamento ou não, não lhe importa. Se ele inclui o adultério e algum dinheiro para se manter, que diferença faz?

Ultimamente, a Antologia dos poetas negros brasileiros contemporâneos, sobre a qual eu chamei a atenção da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de São Paulo, coloca alguns excelentes poemas ao lado de outros execráveis, mas talvez seja possível terminarmos com a citação de Paulo Lima:

Até quando as estrelas 

Encravadas nas gretas, 

No céu aberto 

Nas palmas das minhas mãos, 

Chorarão as ninhadas 

Deste destino de ratos?

Ou, como diz Semog:

De repente, assim, assim 

Num passe de mágica, 

Como uma fonte atávica, 

Comera todas as palavras 

Ou será que nós já éramos mudos?

Restam as duas grandes figuras negras da Literatura Brasileira: Lima Barreto e Cruz e Souza. Com relação a Cruz e Souza, é engraçado observarmos que certos escritores norte-americanos que muitas vezes não compreendem bem o português, alguns dos nossos brasilianistas que não deram certo, veem no Cruz e Souza os atabaques da África original. Eu, até hoje, nem mesmo com um metrônomo, não consegui descobrir os atabaques de Cruz e Souza na sua obra simbolista. Ao contrário, eu creria que Cruz e Souza simbolista procurou em símbolos místicos e no uso de maiúsculas, muito comum nos textos místicos, no seu rebuscamento de palavras e na sua busca de mundos etéreos, com virgens louras, buscou justamente um alívio para a sua vida feita de racismo, de desconhecimento e de miséria.

Já Lima Barreto teria um destino bastante mais trágico. Não só a miséria e o racismo o perseguiram, como também a loucura do pai, que esteve ao seu cargo, e também, mais tarde, a loucura dele próprio e a frustação de todos aqueles que, no Brasil, e em outros lugares, denotam sinais de genialidade, desde Baudelaire até Lima Barreto. Com um pai louco e seu problema de alcoolismo agravado, ele foi escorraçado da sociedade dita “de moral e bons costumes” do Rio de Janeiro e nada o conseguiu salvar. Quem quiser ter uma impressão realmente comovente do final de sua vida, basta ler a biografia que dele fez a Editora José Olympio, com Francisco de Assis Barbosa. Lima Barreto não só se depara com o preconceito de raça, como também, como todo artista, ele questiona as ideias que lhe são dadas como aceitas e, quando titubeia ao receber essas ideias sem questioná-las, morre cedo e incompreendido. Talvez, como no sonho do grande líder norte-americano Martin Luther King, não haja, amanhã, justificativa para as palavras do estudioso do negro, Haroldo Costa, em epígrafe no seu livro, que nos sirvam de lembrança de um passado ultrapassado:

“É preciso não carregar a pele como um fardo”

Estas anotações, na realidade, sinto-as como prematuras. Amanhã, tenho certeza, o negro fará parte decisiva da Literatura Brasileira. Trará à criação nacional toda a brandura e sabedoria que falta aos rígidos gêneros dos brancos desprovidos de fantasia, darão facetas novas da literatura que não se enquadram no museu de formol da literatura cartesiana europeia, natimorta hoje. Afinal é da África, é da América Latina mestiça que nos vêm hoje as vozes mais importantes da metamorfose que Mallarmé queria: “da vida estuante na sua complexidade quase indecifrável de um poema, de um romance, a vida vista pelo prisma de um indivíduo e transformada naquele material de criação humana perene: o livro”. Seja qual for a sua cor e a sua origem, o negro, quem sabe, será amanhã a inovação indispensável e especificamente negra para a Literatura Brasileira e deixará de ser, de certa forma, sinônima com ela. Quem sabe o negro será amanhã a própria Literatura Brasileira, em sua parte decisiva. Assim seja.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1990) 2022. “O negro na literatura brasileira .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.