Circunstâncias do seu trabalho na imprensa impediram LGR de escrever (casos de Mário de Sá-Carneiro e de Aquilino Ribeiro) ou de escrever mais extensamente (casos de Fernando Pessoa, de Eugênio de Andrade e de Agustina Bessa-Luís) de alguns autores portugueses que ele tanto admirava. Fica claro, portanto, que a ênfase com que ao longo dos anos foi acolhendo a obra de José Cardoso Pires, deveria corresponder a uma igual produção de textos para os dois autores portugueses contemporâneos, Agustina Bessa-Luís e Eugênio de Andrade, que, segundo nosso crítico escreveu em um artigo de 1988 sobre o romance Alexandra Alpha de José Cardoso Pires, constituíam, em suas próprias palavras, “a tríade perfeita da Literatura com L maiúsculo escrita em português”. Infelizmente isso não ocorreu pelas contingências das publicações, das efemêrides (relacionadas ao nascimento ou morte desses autores) ou ainda em função das viagens de escritoras ou escritores portugueses ao Brasil.
Apesar disso, acreditamos que o conjunto de autores portugueses entrevistados e cujos livros foram resenhados por LGR oferece aos seus leitores não só um aliciador estímulo para as/os jovens leitores conhecerem grandes obras da multisecular tradição literária de Portugal, com a imensa vantagem de poderem lê-las sem a mediação de uma tradução, mas também um bom apanhado da intensa preocupação do nosso crítico com o resgate que nós temos de fazer da nossa relação literária e cultural com Portugal. Como LGR sumariza no mesmo texto que eu mencionei pouco acima, nós, brasileiras e brasileiros “linguisticamente estamos delimitados pelas fronteiras autênticas: as que têm ao Norte, Portugal, em torno, as literaturas hispano-americanas e, atravessando o oceano Atlântico, a Literatura africana de expressão portuguesa”. Em relação a todas essas fronteiras linguísticas nosso crítico dedicou especial atenção como o demonstra em relação à literatura hispano-americana o seu livro publicado em 1988, O Continente Submerso: perfis e depoimentos de grandes escritores de nuestra América, e este tríptico parece então se completar com este presente livro sobre a literatura portuguesa e outro, por nós também organizado, sobre o racismo e a literatura negra, ainda que neste caso, o livro que organizamos retrata muito mais do que o interesse de nosso crítico apenas pela literatura africana escrita em português a que mais acima ele próprio faz alusão.
Acreditamos, portanto, que os autores portugueses aqui reunidos possam despertar o interesse de muitas pessoas pela literatura portuguesa, uma literatura que desde o seu doutorado - defendido na Universidade de Hamburgo, na Alemanha, em 1958 - sobre Teixeira de Pascoais não deixou de ocupar as leituras e meditações de LGR até o final de sua vida, como diversas notas sobre autoras e autores portugueses escritas para a revista Caros Amigos, último veículo da imprensa no qual trabalhou, o demonstram. Assim, apenas para citar algumas dessas notas podemos mencionar primeiramente sua menção aos Poemas Escolhidos de Sophia de Mello Breyner Andersen selecionados e introduzidos por Vilma Arêas e editado pela Companhia das Letras em 2004 (Caros Amigos, nº 91) que ele sinteticamente apresenta: “Em certos pontos ela rememora os clássicos da Grécia Antiga, em outros ama o mar, as praias, chegando a momentos que recordam a poesia destemida e colérica de Cecília Meireles em seu belíssimo olhar sobre a independência sonhada por Tiradentes e os patriotas mineiros. Em pleno e repulsivo tempo de salazarismo, ela investe contra a era da mentira, do atraso, do colonialismo como masmorra de milhões de”graúdos” rapazes e um “Portugal além-mar”. Depois cabe referir-se à nota dedicada à 4a edição da “excelente” biografia portuguesa de seu adorado Eça de Queirós escrita por Maria Filomena Mónica (Quetzal Editores). Como sempre, LGR sai em defesa de um de seus autores prediletos ao comentar que “Eça tem sido acusado, sobretudo por devotos de Camilo, de ter usado um vocabulário pobre. Como é óbvio, não foi por incapacidade de ler os clássicos, ou de usar termos rebuscados, que Eça escreveu como escreveu. Fê-lo porque estava farto da retórica fradesca que, havia séculos, dominava as letras portuguesas. Nenhum outro escritor - com a exceção de Cesário Verde - inovou tanto quanto ele. A nossa língua é, ainda, a dele. É por isso que os seus escritos resistiram ao tempo. (…) Ao criar uma língua nova, ao dar-nos um mundo diferente, Eça modificou a forma como os portugueses se viam. À sua maneira, acabou por contribuir para a modernidade do país onde nascera”. Ainda neste mesmo nº 92 da Caros Amigos, nosso crítico chama a atenção para outra obra de Saramago recém publicada no Brasil, o seu livro O Ensaio sobre a Lucidez (Companhia das Letras). Seu breve comentário ao livro do ganhador do Nobel é bastante atual em sua visão bastante amarga da realidade: “Esse livro é um alerta para as nações à beira de um abismo ditadorial de esquerda ou de direita, é, muito dignamente, um alarme a respeito da malediência, da estupidez humana, da adulação visando cargos altos. (…) o diálogo curto dos cegos, no final do livro, é admirável pela sua impotência diante de um mundo de tiros que a escuridão dos olhos não consegue localizar, a não ser quando a morte já empunhou a loucura e a brutalidade como a única”solução” à ausência de eleições e de votos em qualquer país do mundo contemporâneo, do Iraque ao Brasil”. Dois anos antes de sua morte, LGR saúda com entusiasmo (Caros Amigos nº 107) a publicação da História do Futuro do célebre jesuíta português Pe. Antônio Vieira lançado em 2005 pela Editora da UnB ressaltando que “História do Futuro revela a beleza sutilíssima da oratória de Vieira e a pujança de sua crença na impossibilidade de mostrar à Face de Deus a monstruosa forma de tratar o índio como o fez o general Custer, dos Estados Unidos, ou de nossas tribos inocentes serem despeajadas de suas terras e suas imensas riquezas, sendo ele por isso espezinhado pela aristocracia lisboeta, recém-liberta do jugo de Madri”. Em suma, trata-se, segundo ele, de um “livro preciocíssimo” que “abrange também a volta da grandeza e da magnificiência do reino lusitano. É uma obra imprescindível para conhecer a fundo o espírito português e brasileiro”. Isso sem mencionar, é claro, as várias notas sobre as novas edições de Fernando Pessoa e seus heterônomos, que comparece em vários fascículos da Caros Amigos (números 21, 22, 24, 58 e 65). Terminemos esta breve menção às suas notas na revista Caros Amigos com as próprias palavras de LGR sobre a publicação no Brasil da obra em prosa O Livro do Desassossego (Caros Amigos, nº24: “De Fernando Pessoa, possivelmente o mais notável poeta e prosador português jamais surgido nessa rica literatura, surge uma requintada edição do Livro do Desassossego. Em sintonia inimaginável com Ítalo Svevo na Itália e sua obsedante descrição do tédio e do conformismo burocráticos em A Consciência de Zeno e até de O Processo de Kafka, Fernando Pessoa deambula pela Baixa lisboeta sob a máscara de um escrevente de contabilidade, Bernardo Soares, nesse romance que é impossível não classificar, se qualquer classificação couber aqui, como um romance metafísico. Excelente e sintética a introdução de Maria Lúcia Dal Farra. Romance que se arma como se quiser, de uma angústia sobre-humana, sem capítulos ordenados nem cronologia rígida, esse único romance de Pessoa é uma ponte entre a importante literatura portuguesa anterior à sua criação poética e filosófica e o mundo contemporâneo. Ao mesmo tempo que é, sem favor, uma concepção da condição humana inaudita mesmo na melhor ficção européia contemporânea e posterior ao aparecimento desse livro. Ele capta a essência atemporal da angústia de um presumível e pertubador niilismo paradoxalmente fascinante”.
Por fim, caberia chamar a atenção da/o leitor/a que em algumas das discussões com alguns importantes autores portugueses, mas em especial com José Cardoso Pires, algumas caracterizações da produção do jornalista e da crítica não acadêmica são evocadas e que podem nos auxiliar a compreender melhor a produção do próprio LGR. Na entrevista concedida em 1983 a LGR, Cardoso Pires ao falar da crítica literária de outros países afirma que há “uma crítica literária com uma toada diferente, totalmente antierudita! Dizem-se as coisas mais profundas e mais eruditas sem citações, quando apenas se tem talento, sem todo aquele aparato brutal do ensino universitário ou do neoacademismo”. O exemplo pensado por Cardoso Pires e nomeado pelo nosso crítico é de Angelo Rinaldi, que era então crítico literário do L’Express. Essa caracterização é bastante precisa ao se referir ao tipo de crítica feita igualmente por LGR, pois ele, identificando-se com esse tipo de crítica, relata ao escritor português que “talvez você saiba que, aqui no Brasil, pelo menos alguns círculos soi-disant eruditos acham que ao emitir uma opinião sobre um livro você, como crítico, está fazendo uma crítica impressionista, de impressões apenas, do tipo gostei, não gostei…”. Ora, é exatamente essa uma das críticas mais comuns feitas a LGR que se recusava a escrever em uma linguagem acadêmica, como, ao contrário, ocorre no caso daqueles que querem fazer da crítica uma exposição científica ou, nas palavras de Cardoso Pires, esse outro tipo de crítica visa “cientifizar para descobrir no livro lido uma metodologia própria que torne a análise”científica”, mas aí é que está a contradição: ninguém descobre, senão por palpite, nada a priori.” Em função dessa contradição, conclui o escritor português: “Esse tipo de”crítica literária” é uma auto-afirmação à custa de outrem: aí os “críticos” assumem uma posição de “elite”, por terem eles mesmos uma fundamental falta de comunicação: “Ah, quem não me entende, pior para eles, eu falo para mim!” No final das contas, assevera Cardoso Pires, essa crítica aparentemente científica é que é profundamente impressionista”.
Fernando Rey Puente
Reuso
Citação
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series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
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date = {2022},
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doi = {10.5281/zenodo.8368806},
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