À margem de uma tradução

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
(Prefácio à tradução que LGR fez da peça de T. Williams À Margem da Vida, Rio de Janeiro, Edições Bloch, 1ª edição: Editora Letas e Artes, 1964), 1968. Aguardando revisão.

Examinando a dramaturgia das duas superpotências nucleares mundiais da nossa era tecnológica, verificaremos que não existem blocos monolíticos e maciços nem no campo norte-americano nem nо russo. Ao lado do teatro comercializado e “digestivo” da Broadway deparamos com o teatro vital e decisivo da Off-Broadway, ao passo que na União Soviética se ergue, liderado por Evtuchenko, o côro crescente dos “jovens irados” antistalinistas e do antiobscurismo cultural. São os que combatem a ditadura esterilizante de Jdanov, que triunfara na pintura minuciosamente fotográfica do “realismo social”, nos romances e peças esterilizados por um otimismo patriota e sentimental artificial, sufocados por um critério vitoriano e “burguês” da moral. Era, finalmente, a reação contra 40 anos de estultície, de conformismo extremo simbolizado idealmente pelo teatro de Arbusov, o que recebia o imprimatur entusiasta da Comissão de Kultura soviética contra a qual Brecht ousou guera voz. Ele próprio, aliás, o magnífico Brecht, comunista, a invectivar contra os pontos, aliás vulnerabilíssimos, de um capitalismo opressor, sem, contudo, criticar jamais as chagas igualmente visibilíssimas da sociedade totalitária marxista. Será o caso de estudar essa forma sui generis de alienação, que foge à tarefa social e ética de uma crítica construtiva dos mores de uma sociedade e de suas imperfeições estruturais e humanas.

Mas, voltando ao teatro norte-americano, encontraremos, em sua variada produção deste século, depois de O’Neill, Elmer Rice, Lilian Hellman e outros, a messe da década dos 50, na qual sobressaem Arthur Miller - com sua temática social e seu teatro de idéias - e Tennessee Williams. As peças desse decênio focalizam principalmente o problema que me parece fundamental da psique americana: o do inconformismo do indivíduo a um certo modo de vida e a certas convenções sociais. Esse teatro é, portanto, descritivo do isolamento do indivíduo dentro de uma sociedade e da sua luta pela sobrevivência de sua individualidade, como tal, dentro de uma estrutura coletiva na qual imperam valores da massa. Esse isolamento, embora tenha seu tanto de splendid isolation, é na maioria das vezes uma revelação cabal da inaptidão dos sensíveis a se adaptarem a leis da selva de um mundo materialista e egoísta, povoado de filisteus ávidos de lucro e indiferentes ao sofrimento alheio. Com insistência monocórdia os dramaturgos americanos como seus colegas importantes do mundo ocidental apresentam no palco personagens acossados pelo inconformismo, seres que vivem voluntariamente “à margem da vida”, à margem da realidade brutal e inclemente. Se para outros autores esses marginais são homossexuais (Chá e Simpatia, de solução comercializada e happy end), toxicômanos, alcoólatras (A Hatful of Rain), fracassados (Picnic), etc., os protagonistas das tragédias de Tennessee Williams preenchem toda a gama das anomalias dos que se opõem a pactuar, a aceitar as sórdidas “regras do jogo”. Mas o Inferno em que se movem tem como dístico à entrada o da mais sinistra e total Frustração. Praticamente todos os “anti-heróis” de Williams sucumbem, vítimas da mesma dilaceração americana entre o seu inato idealismo romântico-humanitário e a realidade circundante.

Pode-se dizer que a sua dramaturgia contém dois personagens fundamentais, que se repetem, sob diversas formas, em quase todas as suas obras: um deles, a diáfana Laura desta peça (que é o primeiro esboço da Alma de Anjo de Pedra e da Blanche Dubois de Um Bonde Chamado Desejo), constitui como que um novo Dom Quixote de um reino interior, que povoa com figuras criadas pela sua imaginação o deserto árido em que vive, derrotada pela realidade e presa da solidão. Geralmente essa mulher-tipo da maioria de suas peças (uma transposição digna da Albertine, de Proust) vive num mundo fictício ou passado, de ideais nobres, de ilusão, de lanternas coloridas que ocultam o chocante prosaísmo da vida diária. É em parte o caso da mãe, Amanda, e sua evocação fantasiosa e nostálgica do Sul dos Estados Unidos, com seu ideal de cavalheirismo, de objetivos elevados, não-utilitaristas, de uma existência aristocrática e refinada.

Contrastando com essa figura-chave irreal e fascinante, “o manto diáfano da Fantasia”, irrompe, destruindo-a, o personagem de Jim ou de Stanley Kowalsky de Um Bonde Chamado Desejo: a encarnação da brutalidade animal, do instinto cego, da força do sexo, do dinheiro, da matéria, “a nudez crua da verdade”. Esse Sancho Pança poderoso e maléfico desmorona, quase sempre, o castelo nas nuvens de seus antagonistas, aniquilando-os também espiritual ou fisicamente.

É o que, já em embrião, revela esta peça digna, em muitos momentos, de Tchékov: o choque inevitável e insanável entre a realidade e a imaginação, a sensibilidade maravilhosa de Laura e o mundo quadrado de Jim, feito de cifras, de ambições de “sucesso”, de estéreis e mecânicas convenções.

O personagem puro, poético, Laura, é imolado por esse “representante do mundo exterior”, como ele é descrito e que, diametralmente oposto ao deus ex machina dos antigos, surge ao contrário como demoníaco catalisador da derrota, da morte, do estrangulamento do espírito e da alma. Simbolicamente, destrói-se a peça mais frágil e mais bela da coleção de animaizinhos de vidro que dá título à peça no original inglês. Desfaz-se o sonho, substituído pelo pesadelo ou, pior talvez, pelo vácuo, pela negação, pelo nada. É possível que nenhuma cena possa ilustrar melhor o mundo poético da sensibilidade e da angústia de Tennessee Williams do que o encontro entre Laura e o “cavalheiro de visita”, que significa para ambos coisas tão diversas, incompatíveis mesmo.

Minha melhor recompensa, ao traduzir À Margem da Vida, seria a de despertar entre os que ainda não conhecem Tennessee Williams, o fascínio que seu mundo desperta nos palcos de todo o globo de Nova York a Moscou, de Madri ao Rio de Janeiro e no coração de todos os que já viram ou leram suas obras. Elas possuem uma profunda afinidade eletiva com a sensibilidade brasileira: o Sul dos Estados Unidos e o nosso Nordeste, a Bahia e Nova Orleães, mutatis mutandis, ou, talvez, a semelhança entre as aristocracias rurais do Mississipi e de São Paulo, conforme as retrata Jorge de Andrade no setor nacional. Para os que, cega ou ingenuamente, veem no dramaturgo norte-americano um “alienado dos problemas sociais”, recomendamos a leitura de seu prefácio, “A Catástrofe do Sucesso” ... como se pudesse existir uma arte teatral legítima que não refletisse, de alguma forma, uma consciência social!

Finalmente, seja-me permitido confessar que a tradução dessa peça constitui para mim um trabalho de sincera e calorosa dedicação. Tentei dar aos diálogos a vivacidade e a espontaneidade saborosa que possuem no original, com sua alternância de cenas pateticamente cômicas e sombriamente trágicas; quis reproduzir as palavras um tanto pedantes de Amanda, mas cheias de uma graça requintada e antiquada, permeadas de doce melancolia, contrastando com as palavras ásperas e terra-a-terra de Jim e os monólogos pungentes de Tom, um eco longínquo do jovem Tennessee Williams.

Uma tradução será sempre, creio, uma adaptação, por melhor que seja, pois, as imagens mentais que as palavras e as frases despertam variam de língua para língua. A melhor tradução, parece-mе, deve ser sempre a que conseguir incorporar a outro idioma a intenção, o espírito, a essência, o colorido específico de uma obra, sem violar o original nem pecar contra o idioma para o qual se traduz. Afinal, o máximo que se conseguirá obter será uma reprodução do quadro ou a transposição, para outro tom, de uma melodia.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1968) 2024. “À margem de uma tradução .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.