Cecília em momentos de pouco brilho. Ainda assim, admirável

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1981-3-14. Aguardando revisão.

A incursão do político, administrador, escritor e editor Carlos Lacerda, falecido há pouco, deixou além de marcas profundas nos rumos da vida política, social e cultural brasileira, um vácuo até hoje não preenchido pela sua personalidade polêmica, combativa, lúcida. A Editora Nova Fronteira, empreendimento extraordinário do qual foi fundador e animador decisivo, frutifica até hoje e tem (teve?) como paralelo uma ramificação rarificada para consumo de poucos, denominada “Confraria dos Amigos do Livro”. Baseada em modelos franceses e de outros países de tradição editorial multi-seccular, a Confraria apresenta grandes nomes ilustrados por artistas plásticos insignes, um pouco à feição das editoras que, nos EUA ou na Europa, se dedicam a restritos clubes de consumidores de livros ou bibliófilos.

Cecília Meireles foi incluída nessa coletânea com uma seleção de poemas feitas por Carlos Lacerda e pelo seu competente sucessor à frente da Nova Fronteira, o poeta Pedro Paulo de Sena Madureira. Infelizmente, porém, a seleção não garimpou o que de melhor e mais expressivo existe da maravilhosa poetisa carioca neste livro intitulado Flores e Canções. Logicamente, qualquer antologia, por mais exígua ou extensa que seja, sempre reflete preferências subjetivas e deixa lacunas importantes para outros leitores. No entanto, Flores e Canções poderia ter captado melhor a essência da musicalidade, da sutileza schumanniana dos versos etéreos, sonhadores e melancólicos de Cecília Meireles. Para mencionar apenas um exemplo: por que a deslumbrante “Elegia para uma Borboleta”, um dos ápices da poesia escrita em português em todos os tempos foi esquecida? Pela sua relativa extensão? Pela falta de entrosamento entre o poema e as ilustrações da artista portuguesa Vieira da Silva? Ora, o que se constata imediatamente é que a pintora lusitana, grande amiga da poetisa, não está, neste série de ilustrações, em um de seus momentos de maior inspiração. Colorista fascinante em seus quadros geométricos-abstratos, Vieira da Silva aqui se apresenta seca, invernal, tosca, sem um interesse maior para todos que admiram sua obra, saudada em Paris como a de um dos maiores artistas deste final de século.

O que resta esta coletânea cara, nestes tempos de inflação galopante, em que o pão rivaliza com o livro que forçosamente tem de se antepor à leitura? Pouco. Evidentemente, um grande poeta não decai, mesmo em momentos menores: há sempre frases memoráveis, admiráveis, a salvar do aluvião de versos menos brilhantes. Assim, “Apresentação” já tem o valor de um pequeno poema sinfônico de Debussy, a demarcar claramente o território poético, intenso, requintado, intimista, da mesma Cecília Meireles que surpreenderia todos os leitores da literatura no Brasil com a pujança veemente, quase viril no seu desassombro, do Romanceiro da Inconfidência, esse insuperável painel de poesia social e política que nenhum dos “ismos” ideológicos engajados ou engasgados conseguiu sequer macaquear até hoje.

Em “Apresentação” é a Cecília Meireles camerística, ardente, fatalista na sua resignção perante a tristeza e a derrota que ressoa por inteiro:

“Aqui está minha vida - esta areia tão clara

com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz - esta concha vazia,

sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor - este coral quebrado,

sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança - este mar solitário

que de um lado era amor e , do outro,

esquecimento.”

A melosidade, a predominância de elementos visuais e táteis, a autobiografia poetizada já esboçam claramente o perfil da autora tantas vezes sublime de Retrato Natural e Mar Absoluto. Sem jamais decair numa lamentação choramingas, Cecília Meireles, com uma altivez estoica, canta seu canto frustrado, subjetivo, de desencontro com o amor e descreve o ambiente da Natureza colorida mas indiferente ao Fado humano em que tais tragédias íntimas são relatadas. Já aqui também está a presença do isolamento do poeta diante do mar e diante do burburinho inútil dos homens, o mar como serenidade diante do afã inconsequente dos altos e baixos humanos, o mar como permanência diante do efêmero e insignificante.

“Chorinho” é daqueles raros momentos em que a poesia de Cecília Meireles se coloca, geograficamente, no Brasil, forçando a sua inspiração quase sempre translúcida e imanentemente universal. No entanto, os versos: “Palavra desnecessária;/ um leve sopro revela/ tudo o que é medo e ternura./ Pela noite solitária,/ uma criatura apela/ para outra criatura” retornam à aura pessoal, de uma passionalidade contida, da busca infrutífera da realização amorosa. É que à semehança dos romances em prosa de Thomas Mann ou melhor ainda de suas histórias curtas como Tonio Kruger e Morte em Veneza ou Unordnung und fruhes Leid, a natureza é que apresenta uma perfeição irretocável na sua placidez majestosa, o ser humano e seu pensar, sofrer e agir manifestando-se como supérfluos, senão grotescamente inúteis, como diz Cecília Meireles no poema intitulado “Desenho”:

“Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,

e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas

que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,

pois a vida completa e bela e terna ali já estava”

Há uma afinidade eletiva, talvez nem pressentida pela própria poetisa, entre a sua criação poética e o lirismo alemão: em seus poemas de auto-reflexão e de diálogo com os deuses da sua amada Hélade também Hoelderlin dizia quase que exatamente como a poetisa carioca:

“Levai-me aonde quiserdes! Aprendi com as primaveras

A deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.”

É do Romantismo alemão qde um Wackenroder, de um Eichendorff, de um Moerike, também, que brota o mito da blaue Blume (a flor azul) que aqui tem a coloração mais intensamente luminosa dos trópicos mas é também procurada como um Graal da felicidade profana:

“A flor amarela está guardada em si mesma,

seu perfume, sob mil pétalas tranquilas,

seu pólen resguardado contra o vão decobrimento.”

Celebrando a morte de uma rosa que cercou de água e música para immpedir seu fenecimento prematuro, mas a rosa “morreu sem dispersão: roxa, secreta, toda em si mesma/ equilibrada/ com folhas, espinhos, pétalas, perfume, música e morte” ou a morte de uma anônima formiga em meio à Natureza solenemente bela e indiferente: “Alto, vasto, azul,/ como era belíssimo o céu/ em redor deste mundo!”, Cecília Meireles acentua o tom elegíaco de seus poemas, aquela celebração da finitude que nada tem de mórbido mas sim de uma aceitação herdeira da Grécia Antiga do passageiro, característica inelutável da mortalidade.

Importante, como colocação política da poetisa, é a sua veemente, mas sempre entranhadamente lírica, confissão de que não participa da poesia de consumo social imediato, a ser usada como slogans ou jargões-estribilhos de uma Esquerda Caquético-Dogmática (ou será pleonasmo?). Provocará arrepios em todos os assíduos seguidores dos gangsters Lenin e Gramsci a declaração calma de que “A minha inquietação não tem mais nada, nada, com o mundo geral em que se vive. Apenas eu mesma com minha voz armo e desarmo labirintos de lágrimas e penas. Eu mesma com as mãos de silêncio transformo protestos, debates, em pedras serenas. A minha inquietação é um teatro sem povo. É uma espada invisível, que às vezes traspassa os touros alados de vagas arenas”.

Aristocrática, descrente das bulas e panacéias ideológicas, a magnifica presença social de Cecília Meireles ao focalizar - como nenhum membro da poesia engajada no Brasil - a grandiosidade do movimento da Inconfidência Mineira impediu que qualquer crítica legítima pudesse ser levantada quanto à sua retitude moral, ao seu enraizamento e genuíno engajamento com as causas derrotadas da Liberdade, da Independência, da Injustiaça. Por isso ressoam como acusações terríveis e certeiras, até hoje, s suas palavras de asco diante dos pusilânimes que desvirtuaram os ideais românticos e naquela época utópicos de Tiradentes.

Aqui e ali resplandecem imagens que parecem sair de um desenho com lápis de cera de Paul Klee: “Caminho do campo verde,/ estrada depois da estrada” ou que simbolizam o diálogo da poetisa brasileira com o magnífico poeta indiano Tagore, quando numa modesta “Cançãozinha para Tagore” ela lhe dá a certeza de que:

“Chegaremos de mãos dadas,

Tagore, ao divino mundo

em que o amor eterno mora

e onde a alma é o sonho profundo

da rosa dentro da aurora.

Chegaremos de mãos dadas

cantando canções de roda.

E então nossa vida toda

será das coisas amadas.”

Há ainda metáforas soberbas como a que se refere a “ó lábio, limite do instante absoluto” ou o poema que, em linhas paralelas à de Garcia Lorca ou de Borges, evoca um punhal de prata e sua potencialidade de morte escondida no brilho do metal. Há a simbiose de azul das ondas entreabertas, a cor do mar a escorrer dos dedos e colorir as areais, há a asserção impávida, serena, de que “Tudo é em vão”.

No entanto, essa coletânea mostra apenas uma Cecília Meireles menor, quase que circunstancial, não deixando vislumbrar a magnitude atemporal do seu canto. Um dos mais límpidos e perfeitos do Brasil, ele permanece apesar do silêncio que se faz em torno da sua poética e da sandice do momento de descalabro cultural e moral pelo qual o Brasil de hoje passa, da inflação monetária à inflação de valores falsos, trombeteados pelos eternos moedeiros falsos de nossas sinistras siglas que se digladiam entre TFP e CPC.

Cecília Meireles, olimpicamente, paira acima da miuçalha do tempo das indignidades e, nem que seja em samizdat, permanecerá sempre como uma das vozes mais altas, mais preclaras, mais excelsas da poesia em qualquer literatura de expressão latina.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1981–3AD) 2022. “Cecília em momentos de pouco brilho. Ainda assim, admirável .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.