Orelha para a primeira edição do livro Estas Estórias (1969)

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Estas Estórias, 1969. Aguardando revisão.

Estas Estórias são um caleidoscópio do Grande Sertão que o escritor mineiro desvendou para a literatura brasileira e para o mundo: um caleidoscópio que mostra várias de suas fascinantes veredas. No “Vaqueiro Mariano” a captação épica, viril, da natureza selvagem do Pantanal mato-grossense, aliada à compreensão profunda dos seus herois anônimos, os vaqueiros que encontram em Mariano o seu arquétipo definitivo. Em “Os Chapéus Transeuntes” a criação matizada, risonha e filosófica de figuras que lembram uma commedia dell’arte mineira, com Vovô Barão e o Ratapulgo. Em “Meu Tio o Iauaretê” a pesquisa estilística realizada no monólogo do índio semi-agregado à civilização tecnológica que encerra, de forma inquietante, este esplêndido mural.

Mas para decifrar todo o facínio do seu texto, Guimarães Rosa pede unicamente a colaboração ativa do leitor. Como todo artista moderno, a partir de Baudelaire, ele faz com T. S. Eliot, com Joyce, Pound, Gadda, Cortázar e Benn proclamando: a arte – no século XX – tem uma linguagem própria, como a astronáutica, a música dodecafônica, a arte cinética. Se o leitor aceita o desafio inicial do esforço para penetrar nesse maravilhoso Reino da Linguagem que Guimarães Rosa criou – inclusive recorrendo ao dicionário para elucidar termos de uso não diário – ele vislumbrará um reino vasto, majestoso, que o acompanhará sempre.

A linguagem é o ponto de partida: ao recolher em caderninhos surrados a maneira de falar do povo brasileiro, o escritor leva o leitor a constatar que a expressão verbal popular está muito mais perto da metáfora poética dos grandes poetas universais do que a linguagem funcional da burguesia que só comunica, sem fantasia, no esclerosamento da convenção mecânica. Mais ainda: poderá verificar que o povo e o grande artista são dois aspectos do mesmo princípio criador: arrojado, vivaz, colorido, uma perpétua invenção de termos e ditos saborosos, elegantes, filosóficos, que refletem uma visão profunda das paixões humanas, que registram de forma concisa um fato irônico, malicioso, um encantamento ou uma decepção, um ideal ou um consolo: “aprendiz do que não quis”, “tropeçar também ajuda a caminhar!”, “vida-coisa que o tempo remenda, depois rasga.”

Fixando a linguagem de um povo em transformação acelerada de uma estrutura agrícola para uma urbanização industrial, cosmopolita, moderna, Guimarães Rosa capta entre seus valores espirituais, humanos, culturais, raras expressões arcaicas dos séculos XVII e XVIII, garimpadas ainda vivas nos arraiais, sertões e aldeias perdidos no interior de Minas, guardados por suas montanhas ou esparsos na imensidão do País do Boi, o Pantanal de Mato Grosso. São palavras elegantes – aluir, infanda, embelêco, nuga – tão atuais nos quistos sociais do nosso interior quanto nos textos empoeirados, em bibliotecas de Lisboa, de Fernão Mendes Pinto, Antônio Vieira, Camões, Sá de Miranda.

Não contente, Guimarães Rosa adiciona novas pedras, pórprias, à construção dessa sua gigantesca Brasília verbal – Uma Brasília que incluísse Ouro Preto e Cuiabá, o Rio Grande e a Bahia, Amazonas e São Paulo - : os neologismos. Às vezes são disposições diferentes de raízes portuguesas que surgem de forma expressiva e nova: “solsombreávamos”, “pluripompas”, “performar”. Outras, são elementos estrangeiros naturalizados brasileiros, imigrantes verbais vindos da Inglaterra, da França, da Itália, da Espanha, da Rússia, até da Hungria!

Guimarães Rosa é a confluência de grandes escritores europeus: tem de Joyce e de Gadda, a invenção poderosa de palavras; de Goethe o simbolismo religioso (Fausto e Riobaldo, o Diabo e o Amor por Diadorim, Mefistófeles e o Poder da Alquimia ou dos Jagunços em Guerra), além da precisão científica dos termos tirados da medicina, das ciências naturais, da botânica, da óptica, da geologia; de Cervantes a mistura de linguajar erudito e popular, como e o tom elevado de Dom Quixote se misturasse aos provérbios e ditos de Sancho Pança espraiados nas expressões coloridas dos vaqueiros, garimpeiros, prostitutas, jagunços, padres e mendigos de seu vasto Sertão brasileiro; de Proust a fixação na literatura, de um mundo perdido: o do interior brasileiro em célebre transformação sócio-econômica e cultural.

Guimarães Rosa não se limita a sintetizar os grandes ídolos sobre os quais o sol se pôs spenglerianamente na Europa: Proust, Joyce, Kafka, Musil, Mann, Woolf, Gadda. Nosso escritor é o pico mais elevado dessa Cordilheira que constitui a literatura latino-americana. Supera até seus irmãos geográficos das Américas: possui do mexicano Arreola e do argentino Cortázar a originalidade radical do conteúdo e do estilo; do argentino Borges o amor pelo exótico, pelo arcano misterioso e fantástico; a contenção clássica, a alegoria ética, existencial, religiosa do mexicano Rulfo e, do cubano Carpentier, a musical explosão e vigor de estilo.

O leitor vai num sobressalto, de uma estória a outra, num crescendo admirável até deparar com o Aconcágua da estória final: “Meu Tio o Iauaretê”. Aqui como Conrad numa sondagem intelectual do terror que se encerra no coração humano, Guimarães Rosa projeta-se já no futuro da criação literária mundial.

Como o autor diz a respeito do vaqueiro Mariano, o leitor verá que no seu estilo “umas palavras intensas, diferentes, abrem de espaços a vastidão onde o real furta à fábula”.

Por isso este livro é póstumo só quanto à “casca”, a localização histórica. Mas o “miolo”, o essencial, permanece como predissera o Mestre em sua última frase pública: “As pessoas não morrem: ficam encantadas.” O encantamento de Guimarães Rosa não morreu com ele: absorve, enfeitiça, enriquece e marca indelevelmente o seu leitor, como quem trilha nas pegadas de um gênio.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1969) 2022. “Orelha para a primeira edição do livro Estas Estórias (1969) .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.