Dentre os papéis e documentos de Leo Gilson Ribeiro encontrei duas conferências datilografadas que nunca foram publicadas. Ambas foram concebidas no âmbito de uma série. No primeiro caso, não consegui aferir quantas outras conferências integralizariam o curso sobre a literatura alemã. A primeira é intitulada “Caminhos e encontros” e foi inspirada em um ensaio homônimo do escritor austríaco Hugo von Hofmannsthal que nosso crítico traduz ao final desta primeira conferência (a única que encontramos), a qual é especialmente interessante por ser um testemunho em primeira pessoa das memórias juvenis de Leo Gilson Ribeiro e da sua experiência na Alemanha do pós-guerra onde estudou em Hamburgo e Heidelberg. No segundo caso, o próprio autor confirma que se trata da primeira de uma sequência de três conferências que foram por ele pronunciadas na Escola de Teatro da Universidade da Bahia em julho de 1959 e que tinham por escopo investigar a literatura dramatúrgica em três momentos históricos: o período barroco (analisando a Espanha e a Alemanha – este o conteúdo da primeira e única palestra deste ciclo que aqui publicamos), o período romântico (investigando a Alemanha e a Inglaterra) e, por fim, o período expressionista (ocupando-se da Alemanha e da França). O título da série das três conferências era “As interrelações da pintura, da música e da literatura”.
Julgo as duas conferências muito reveladoras do modo de pensar a literatura comparativamente, o que obviamente Leo Gilson Ribeiro apreendeu na sua formação em Vergleichende Literaturawissenschaft (Literatura Comparada) nas universidades de Hamburgo e Heidelberg na Alemanha, mas esse modelo comparatista que foi adotado por nosso crítico também parece ter sofrido a inspiração das ideias do grande historiador inglês Toynbee, que ele tanto admirava, e que procurava entrecruzar as histórias nacionais dos diversos países para poder obter um panorama histórico mais amplo. Por essa razão, aliás, resolvemos inserir aqui três breves textos dele sobre Toynbee.
Essas comparações são feitas quer com outros literaturas (como ocorre no caso das duas conferências aqui reproduzidas), quer com outras artes, por exemplo, com a pintura e a música, duas áreas de grande interesse de nosso autor e que frequentemente são evocadas para melhor ilustrar as particularidades de um texto literário. O texto da primeira conferência não tem nenhuma data, mas tudo indica pelo desgaste do papel no qual ela estava datilografada e pelo estilo de escrita adotada pelo autor que ela deve ter sido concebida no início dos anos 60 do século passado quando nosso crítico ainda morava na cidade do Rio de Janeiro, logo após retornar da Alemanha para o Brasil em 1959.
Por abordar especificamente o Barroco, que já havia sido ocasião de reflexão nas duas conferências iniciais sob a dupla perspectiva da Espanha e da Alemanha, o ensaio pouco conhecido que foi publicado em 1998 – por conseguinte, quase quarenta anos depois da segunda conferência – e que aborda o período barroco no Brasil pareceu-me formar um enlace interessante entre esses dois períodos tão diversos da vida de Leo Gilson Ribeiro, onde a ênfase de seu trabalho não era mais divulgar uma literatura pouco conhecida entre nós, como a alemã, mas, sobretudo, o de apresentar e divulgar as particularidades da literatura brasileira.
Ora, os dois outros ensaios aqui reunidos tratam especificamente da questão dessa especificidade da literatura brasileira em um texto sucinto, mas denso e original em suas formulações fundamentais e o outro que ele publicou em uma revista de Psicologia trata da interrelação entre a Literatura e a Psicologia. Este é igualmente um texto sintético, mas cheio de intuições e dicas muito úteis de como explorar inúmeros escritores estrangeiros e brasileiros em estudos psicológicos ricos e complexos sem perder-se em estereótipos reducionistas.
Por fim, a outra conferência, proferida por ocasião do primeiro concurso nacional de contos, ocorrido em Curitiba em 1967, mostra o engajamento político que nosso crítico sempre teve com o intuito de divulgar a literatura reivindicando melhores condições para a sobrevivência dos autores e denunciando os abusos editoriais e as falhas governamentais em fornecer auxílios eficazes e fundamentais para a consolidação da literatura em nosso país. Ao longo de toda a sua vida professional LGR escreveu inúmeras cartas abertas para diversas autoridades públicas (de presidentes e ministros da cultura até governadores ou prefeitos) pleiteando a defesa da cultura, do livro, de um controle mais eficaz da qualidade das traduções e de uma remuneração mais justa do trabalho do tradutor.
Além desses textos mencionados, inseri mais três textos neste volume: um artigo escrito poucos dias depois da chegada do primeiro ser humano à Lua, Neil Armstrong, em 20 de julho de 1969 por meio da espaçonave Apollo 11, onde Leo Gilson Ribeiro faz um brevíssimo inventário da presença da Lua na literatura, um outro artigo de 1969 onde nosso crítico apresentava quatro escritores para os seus leitores, a saber, A. Grinsberg, J. Genet, E. Gadda e J. L. Borges. Trata-se de um texto bem interessante, pois explora bem a vertente comparatista não apenas relacionando esses autores entre si, mas principalmente ao relacionar cada um desses autores com outros escritores a fim de melhor compreendê-los. E, por fim, um longo texto de nosso crítico que esteve em um importante congresso sobre a literatura da América Latina na Unicamp durante três dias e publicou um relato sobre o encontro para os seus leitores do Jornal da Tarde (e que foi publicado no segundo e último livro que o autor organizou em vida: O Continente Submerso). É um texto valioso, pois possibilita entrever algumas das dificuldades de pensar do ponto de vista da crítica literária a América Latina de modo integral apesar das diferenças entre o Brasil e os demais países hispano-americanos, bem como a acompanhar com clareza o patrulhamento ideológico que havia em relação ao nosso crítico e sobre o qual ele mesmo se refere explicitamente ao final desse texto.
Acreditamos termos podido condensar nesses escritos tão variegados, escolhidos por nós para compor mais um volume das obras reunidas de Leo Gilson Ribeiro, algumas características e alguns dos interesses principais expostos de modo mais ou menos explícito no âmbito da imensa quantidade de artigos produzidos por nosso crítico para os veículos de imprensa nos quais trabalhou por quase cinquenta anos contribuindo assim para a ampla divulgação de outras literaturas em nosso país, na descoberta de novos valores artísticos em nosso meio, bem como no zelo pelas traduções aqui produzidas e na busca de incentivos governamentais para a aquisição de livros estrangeiros e para a publicação de obras literárias de qualidade em nosso país. Mas, talvez, acima de tudo, para a divulgação da literatura em toda a sua extensão e diversidade para os seus leitores. Espero, portanto, que as/os novas/os leitoras/es, que provavelmente jamais tenham tido a oportunidade de ler um texto de Leo Gilson Ribeiro, possam continuar a ser aliciados para a leitura de diversos escritoras e escritores, como nós seus leitores o fomos outrora, que criaram diversas obras esplêndidas ao longo de tantos séculos em distintos lugares do nosso mundo.
Fernando Rey Puente
Reuso
Citação
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author = {Rey Puente, Fernando},
editor = {Rey Puente, Fernando},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {9},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-9},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
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