Doris Lessing, a dama de ferro da literatura inglesa
Doris Lessing, a inclassificável “enfant terrible” e irrequieta Dame of British Writing contemporâneo, não se adapta a nenhum dos clichês literários do Establishment inglês. Ela, que anteriormente já revolucionara os mais inflamáveis temas da vida moderna – o racismo, a conceituação da loucura com uma supra lucidez, o feminismo, a importância schocking de que os depoimentos das empregadas domésticas (!) e dos tidos como loucos eram parte integral da busca do conhecimento social e do indivíduo –, incansável, revolucionou a própria conceituação de Literatura com seu último livro, Shikasta.
Se, no Brasil, como já de praxe, ela, e inúmeros outros autores decisivos do nosso século, só fora apresentada ao público leitor através de estilhaços de más ou péssimas traduções de suas obras – umas da década de 1950, outras, de agora, outra ainda de 1962 –, a reviravolta de 180 graus na sua criação única eletrizou tanto os leitores brasileiros quanto os de língua inglesa, desde 1979, com o aparecimento do que ela denomina de sua “ficção espacial” (“space fiction”).
Distinção importante: Shikasta tem, só aparentemente, alguns traços em comum com a chamada “ficção científica” de 2001: Odisséia no Espaço. Os sci-fi, como os americanos os chamam abreviadamente, abrangem, para citar só os mais famosos, o engenhoso Asimov, autor de Eu, Robô em que suspeita que o atual prefeito de Nova York não seja um ser humano: é um extraterrestre com aparência enganadoramente idêntica à de um homem como todos os outros. Ray Bradbury, em um de seus contos inesquecíveis, entre tantos perfeitos, apresenta uma cena do futuro dos Estados Unidos: o racismo conseguiu exilar todos os cidadãos negros, confinando-os num planeta remoto da nossa galáxia. Agora, astronautas brancos da Nasa desembarcam naquele esquálido lugar de desterro para pedir humildemente aos negros que voltem à América: as cidades estão destroçadas, a vida se decompôs em seguida a todos os erros do homem branco. Explosão acidental de uma usina atômica? O consumismo e o comunismo levados às últimas consequências da loucura e da destruição mútua? O autor não especifica que tipo de catástrofe se abateu sobre a mais poderosa Nação da Terra.
Mas e os robôs? E os Estados totalitários de Fahrenheit 451 que proíbem os livros, que incineram em grandes fogueiras, levando as pessoas a decorarem Goethe, Shakespeare, Cervantes, Tólstoi, etc? E a dominação por computadores sinistros como o Hal de 2001 de Arthur Clarke dotados de inteligência sobre-humanda? Shikasta (nome que a autora inventou para designar o caótico planeta Terra como o conhecemos hoje, no final do século XX) abrange tudo isso e muito mais.
Ao lado da Terra dilacerada por guerras intermináveis (Iraque/Irã; Rússia/Afeganistão; Eritréia/Etiópia) e cento e tantos outros conflitos “menores”, do Salvador à Índia dos Sikhs; ao lado dessa Terra eviscerada de suas florestas, com seus rios, mares e plantações devastados pela poluição pelos agrotóxicos, o deserto do Saara avançando 5 km por ano em toda a sua imensa faixa horizontal dos países árabes do Norte rumo à raquítica África Negra – ao lado de tudo isso, ou como sua causa oculta, existem outros planetas preocupados em salvar ou destruir a Terra. Doris Lessing confessa ao iniciar este livro – que sem exageros talvez seja a Bíblia galáctica do século dos mísseis, dos computadores, da pílula anticoncepcional, dos fanatismos raciais, nacionalistas, religiosos, ideológicos – que tinham criado “ou talvez encontrado um novo mundo, um reino onde o destino mesquinho dos planetas, para não falar dos indivíduos, é apenas um aspecto da evolução cósmica expressa pelas rivalidades e interação dos grandes impérios galácticos: Canopus, Sirius e seu inimigo, o Império Puttiora, com o planeta criminoso Shammat”.
Antes de ser encarcerado como louco pelo Governo norte-americano, o pensador e filósofo austríaco judeu Wilhelm Reich, psicólogo que rompera com Freud e fugira ao mesmo tempo das perseguições do Partido Nazista e do Partido Comunista de seu país, formulara teorias parecidas. Para ele, depois da explosão da bomba atômica no deserto de Alamo Gordo, no Novo México, EUA, em 1945, os planetas de nossa galáxia, e possivelmente até de outros sistemas fora do sistema solar, tiveram sua atenção aumentada ou despertada com relação ao minúsculo e inquietantemente irresponsável planeta Terra. Segundo Reich, as lutas entre o Bem e o Mal, para falar de maneira maniqueísta, existem também no Cosmos e a Terra estava sendo bombardeada pelas forças malignas de corpos celestes que passaram a emitir para a Terra nuvens imperceptíveis pelos grosseiros instrumentos humanos, mas capazes de disseminar na Terra guerras, fome, ódios, angústia, a desertificação, o aumento alucinante da população mundial e do terro em um mundo cada vez mais ingovernável. Para contrabalançar essa ameaça crescente, planetas “bons” enviaram espaçonaves e seres extraterrestres com aparência humana para apaziguar e salvar a Terra duplamente suicida e assassina. Teria Doris Lessing lido Reich, com o qual a sua “ficção espacial” apresenta tão surpreendentes semelhanças? Talvez não.
Porque ela vai muito além de Reich: para ela não só a literatura foi ultrapassada pelos eventos surrealistas que diariamente a imprensa mundial registra com distraído assombro. Além de “a realidade equiparar-se às nossas fantasias mais desenfreadas”, ela acredita “que é possível, e não apenas os escritores, nos ligarmos a uma supermente ou não-mente, ou inconsciente, ou seja lá o que for, e que isso pode explicar grande parte das improbabilidades e ‘coincidências’”.
O leitor brasileiro que tenha acompanhado, em inglês, o prodigioso itinerário ficcional de Doris Lessing não se assusta com a transformação, nem mesmo com a ruptura radical que essa inédita e revigorante “ficção espacial” de Doris Lessing nos trouxe agora, quando a literatura europeia não parece reagir nem mesmo aos últimos balões de oxigênio nem à maciça ingestão de comprimidos geriátricos antiesclerosantes. Realmente, o roteiro dos seus escritos anteriores deixava entrever essa preocupação cada vez mais planetária e metafísica, até mesmo teológica e filosófica que crescentemente marcaria sua deslumbrante criação transliteraria para não usar o pedantismo “metaliterária”.
Em Martha’s Quest ela denunciara simultaneamente, na década de 50, o racismo dos colonizadores ingleses da Rodésia (atual Zimbábue), colônia inglesa roubada a Portugal, para a qual sua família se transferira quando ela era ainda a menina Doris Tayler, bem como acusara o pisoteamento – indiscutível – dos direitos da mulher. Classificada em bloco com os “comunistas”, ela declina dessa honra: “Eu me aliara a eles (os comunistas) apenas porque eram os únicos a combater o racismo e a opressão da mulher”, confessaria francamente. Mais tarde, de volta a Londres, divorciada do insípido marido alemão Lessing, cujo sobrenome no entanto conservou, o livro The Golden Notebook (O Carnê Dourado) seria o ápice de sua solitária luta por um feminismo que nada tem a ver com o histerismo cacarejante de uma Betty Friedan, nem de uma Germaine Greer ávida de dinheiro e éclat na imprensa boquiaberta. Não: a sua reinvindicação feminista é, aprofundando a tese das três Marias portuguesas que deram o toque final à múmia do salazarismo putrefato, uma reinvindicação lúcida, minuciosa, baseada em milhares de anos de dominação da mulher através da História forjada pelos homens. Portanto, Doria Lessing fala do direito fundamental da mulher de SER alguma coisa mais do que um robô doméstico, hierarquicamente entre a geladeira e o forno de micro-ondas; algo mais do que a mãe mammissima, tetas assexuadas por onde escorre o leite do amor humano, “repouso do guerreiro”, segundo Nietzsche, “rainha do lar” entre panelas ganhas no Baú do Sílvio Santos e seu sorriso de Casanova-Camelô ou ainda beata da igreja, emanando eflúvios de carolice. Enfim, a escritora inglesa ridiculariza o espaço apertado alocado à mulher, espremida à força desde o código de Hamurabi e o “Direito Romano” entre o leite de conjugais e procriadoras delícias (para o homem), das panelas de papa gostoso ao silêncio de toupeira admitida às reuniões que falem de receitas, crianças, modas e frioleiras outras que lhe são “toleradas”. Não, duplamente: de que adianta trocar os papéis da mulher, Joan Crawford de voz rouca e chapéu texano dirigindo a Pepsi Cola quase com um enorme charuto na boca, quando a alavanca da mudança é a libertação também do homem de seu pedestal de machista onipotente cada vez mais impotente, neurótico, frustrado, enfartado, escravo de estruturas paleolíticas dos dois lados do muro de Berlim?
Em seguida, em Briefing for a Descente into Hell, influenciada fortemente pelas teorias inovadoras do psicólogo inglês Ronald Laing sobre a esquizofrenia e a loucura e, mais tarde, parcialmente retomadas na França por Lacan, ela concentrou todo o poderosíssimo arsenal da sua mente “dissidente” porque “vidente” à la Baudelaire em continuar peremptória e com ironia a dizer “não” a todas as sociedades em que vivemos, com seus valores, códigos e tabus mais do que obsoletos, injustos: ela examina a discordância que é trancafiada nos hospícios como nas “clínicas” psiquiátricas russas de hoje ou se suicida em desespero quando o consegue.
Ultimamente, Doris Lessing espera com uma esperança absurda o nascimento de “um novo ser humano”. Rósea ingenuidade, pensarão os afoitos, lembrando-se do “super-homem” de Hitler, o “homo sovieticus” da caquética URSS ou o “homo technicologicus” da era cibernética. Baseada em quê? Na crença cósmica da filosofia religiosa – se a denominação for exata – do Sufismo, originária, como ela, da Pérsia, séculos antes do reacionarismo nazistóide de Khomeini e sua gang de mullahs associados. Nada poderia estar mais diametralmente oposto ao pensamento de Doris Lessing do que a prática sanguinolenta de algumas seitas muçulmanas que ordenam que toda menina, uma vez atingida a fase da puberdade, deva submeter-se a uma operação dolorosa e, que se não mata (às vezes é feita com um canivete ou uma gilete suja), certamente a aleija para sempre, pois para outra meta não teria sentido a sua criação. Trata-se da ablação do clítoris para que no futuro a mulher jamais saiba o que é orgasmo e possa assim, como ordena o ritual, fornecer “maior prazer” ao homem que a for desvirginar. Ao contrário, o Sufismo, com sua intricadíssima complexidade, possui, no entanto, essa característica de uma crença otimista, se pudermos ser tão simplistas, da evolução cósmica, na qual o homem está incluído, como o Budismo e o Hinduísmo da Índia a expõe a milênios. Nessa mesma Teerã onde ela nasceu há 65 anos, antes de se mudar para a fazenda dos pais na Rodésia, surgiu dos séculos IX ao XII essa corrente do ascetismo místico, o Sufismo, baseado nos ensinamentos do Corão, mas oposto ao Islamismo ortodoxo, que logo se mostrou hostil a essa “heresia”. Se cada pessoa fizer um esforço pessoal – acreditam os sufistas através principalmente dos poetas Attar, Al Ghazali e outros –, ela vencerá o destino e imporá o seu livre arbítrio à vida por meio da renúncia, por meio do amor ao próximo, do desapego ao materialismo, todas estas formas de comportamento e de ação que têm em comum com o Cristianismo, antes da sua deformação por todas as instituições temporais que usurpam o nome de “cristã”.
A admirável romancista britânica já aludira à possibilidade de os agrupamentos humanos vencerem a guerra, a fome, a miséria em sua esplêndida Memórias de uma Sobrevivente (Memoirs of a Survivor), o estranho e fascinante livro escrito em vários níveis concomitantes: o plano sociológico de uma sociedade que se desintegra em meio a uma guerra civil, o lado “surrealista” em que uma parece se abre permanentemente para as imagens do passado e o plano da linguagem, que aparenta a pobreza econômica à pobreza vocabular e gramatical de segmentos sociais de uma nação.
Em Shikasta, Johor, um visitante vindo do distante Canopus, o planeta generoso que envia à Terra combalida um gás benéfico, o SOWF, capaz de desenvolver no coração humano a solidariedade com o próximo, a comunhão com o próximo, faz um relatório acabrunhante sobre as condições da Terra-Shikasta. Ao percorrer, comovido, esse planeta, tornado “um universo catastrófico”, desde a perda da Idade de Ouro, uma espécie de Paraíso, quando então a Terra se chamava Rohanda e a paz e o amor reinavam entre todos os seres vivos e o tigre bebia água junto com a corça, Johor constata, como quem percorre a era paleolítica ao inverso, o primitivismo da destruição das cidades por vândalos urbanos, pela poluição, pelas guerras, pela desertificação e a fome, nessa minúscula espaçonave, a Terra, em que viver ainda significa, há imemoráveis milhões de anos, devorar o outro para sobreviver. Os que têm noção da desolação que assolou Rohanda, depois que se transformou na monstruosa Shikasta, querem sair, fugir deste planeta de luto e de miséria. E nem a apressada tradução brasileira é capaz de esmagar a beleza original do poético texto em inglês:
“Um pesar indistinto, sobras de desejos ardentes, um esvaziamento de todas as emoções – e cada passo era um esforço, como se mãos invisíveis me segurassem os tornozelos, como se tivesse sobre mim o peso de seres invisíveis.” São personagens que Dante incluiria no “Inferno” da sua “Divina Comédia”:
“… suas faces alteradas pela erosão da dor”, “um batalhão de espectros… consumido pelo orgulho do passado, por falsas lembranças… suas atitudes diziam ‘poder’, os mantos pesados soletravam ‘pompa’, e seguravam quinquilharias e brinquedos de todos os tipos, coroas e tiaras, cetros, globos e espadas.”
O que aconteceu com a espécie humana? Foi atacada daquela enfermidade que Doris Lessing designa como “a doença degenerativa” – talvez um símbolo do vírus espiritual do egoísmo, da crueldade. Principalmente, ela acusa o homem branco, o arrasador de todas as culturas autóctones na África, na Ásia, na América Latina. Ele caiu em tal estado devido à sua soberba, à sua cupidez, à sua cegueira, à hybris da Grécia antiga, a arrogância que os deuses mandavam aos homens antes de derrubá-los. Este orgulho estúpido o levou a escravizar milhões de seres humanos durante todos os Impérios e guerras: mundiais, religiosas, púnicas, civis, do genocídio que vai dos campos de extermínio nazistas ao Gulag soviético. A luta de classes instigada pelo leninismo, a perversão da tecnologia para fins diabólicos, a opressão inenarrável do racismo, do machismo – são todos filhos do mito enlouquecido da “superioridade” intrínseca da da civilização branca acusa Doris Lessing. A essa “crença” psicótica correspondem a destruição ecológica da terra e dos mares, Hiroxima, Cubatão e as macabras “clínicas” psiquiátricas soviéticas em que, como relata o matemático Leonyd Plyuschch, a personalidade dos dissidentes políticos ou religiosos é reduzida a uma polpa amorfa através de injeções de drogas na carótida dos “doentes” indefesos.
Para essa ex-militante veemente do British Communist Party “no tempo em que só os comunistas vociferavam contra os tanques da Wehrmacht hitlerista”, hoje o comunismo degenerou em uma das duas grandes ditaduras: “Ambas se estabeleceram com excepcional crueldade. Ambas disseminaram ideologias baseadas na supressão e opressão de populações inteiras, seitas, opiniões, religiões e culturas locais de vários tipos. Ambas usaram a tortura em larga escala… Os que sentiam a necessidade de ‘fazer alguma coisa’ eram geralmente instrumentos de ideologias – todas iguais no desempenho, mas tão diferentes na própria definição.” As ideologias, pelo fanatismo e dogmatismo que pressupõem, eriçam a ironia sutilmente e a levam a contaminar as próprias denominações mundiais que assumem em Shikasta: “Federação Pan-Europeia das Ditaduras do Povo Democrata-Comunista para a Preservação da Paz”, por exemplo…
Lembrando trechos do 1984 de George Orwell ou do Zero e o Infinito , aquele libelo flamejante contra a bestialidade do stalinismo escrito por Arthur Koestler, continua Doris Lessing a afirmar que os governos totalitários e/ou imperialistas impõem uma linguagem mentirosa, o “double think” e a linguagem hipocritamente dúplice: “República Democrática Alemã” é o nome oficial da Alemanha do lado de lá do Muro de Berlim com suas altas torres vigiadas por soldados armados e holofotes permanentemente à caça de “inimigos do socialismo”, os que fogem rumo à Alemanha Ocidental em pleno estado de eructação de sua indigestão de marcos e excesso de “conforto burguês”. Pouco a pouco, Shikasta atinge uma exacerbação medonha: é quando o livro apresenta o Tribunal erigido pelas raças “inferiores”, “de cor”, que constituem 2/3 da humanidade hoje e dispostas a julgar a raça branca pelos seus crimes, enquanto (e é estranho porque neste trecho Doris Lessing confirma uma das predições de Nostradamus para o fim deste século) a Europa é disputada pelos árabes muçulmanos aliados aos chineses. Em páginas inesquecíveis, os índios das Américas, os negros da África, os “amarelos”, os indianos desfilam com sua litania de acusações aos povos brancos:
“Na raiz desse procedimento criminoso estava o desprezo pelos que são diferentes, uma arrogância que não lhes permitia nem mesmo procurar conhecer a natureza real dos povos espoliados e tratados como inferiores, completa falta de humildade e da curiosidade que se baseia nessa humildade. A denúncia contra vocês é de arrogância, ignorância, estupidez. E Deus os punirá. O Grande Espírito já os está castigando.”
Não nos enganemos, porém. Seria reduzir a uma genérica e banal reflexão social e política destacar apenas estes aspectos de Shikasta, um dos livros mais plurais já escritos em toda a literatura ocidental. Ao lado dos cataclismas do ódio do homem pelo próximo, em suas agressões suicidas contra a natureza e contra a sobrevivência da humanidade, Doris Lessing alude, claramente, a problemas que subjazem à ideologia dogmática: a explosão populacional descontrolada, a imitação servil, por parte dos povos recém-libertados do colonialismo, daquelas que Gandhi chamava de “fraquezas do Ocidente que não devemos importar, pois são vícios que sufocarão nossa autenticidade”. Não se trata da loucura de um Khomeini ou de um Khadaffi, mas da perda da identidade cultural dos povos dominados como a Tchecoslováquia de Milan Kundera ou o Brasil inundado de enlatados, música e vocabulário norte-americanos, o lixo subcultural que a América do Norte impinge aos brasileiros “sensíveis” à avassaladora influência dos EUA e agentes da nossa descaracterização como Nação que AINDA não é o 51º Estado regido por Washington… Imparcial, a autora inglesa não deixa de acusar, com igual veemência, o sistema de castas da Índia, que há milênios criou para os párias, os intocáveis, encarregados da coleta do lixo, da limpeza das latrinas, sem qualquer perspectiva de melhora em suas vidas numa hierarquia tão alucinante quanto cruel em sua prática diária.
Há ainda os aspectos mágicos do enfoque dessa autora que descrê fundamentalmente dos objetivos materialistas e utilitaristas da nossa civilização predatória. Os povos de Shikasta desaprenderam o amor, a solidariedade, a bondade e se arrastam, patética sucata humana, em meio aos escombros de seus artefatos de plástico, cromo e componentes eletrônicos, numa “Bíblia” ditada pelo lucro e pelo consumismo estéril. Esplendidamente se desenha como que um afresco da humanidade de hoje, como a expulsão de Adão e Eva do paraíso pintada por Masaccio:
“Portanto, esta é a condição dos shikastianos agora, poucos ainda, mas em breve mais e mais – logo multidões.
“Nada do que tocam ou veem tem substância, e assim eles repousam, em imaginação, no caos, procurando forças nas possibilidades de uma destruição criativa. Estão vazios de tudo, menos do conhecimento de que o universo é um motor ruidoso de criatividade e eles, manifestações temporárias do mesmo.
“Criaturas infinitamente danificadas, reduzidas e degeneradas, afastadas das suas origens, quase perdidas – animais que perderam o caminho determinado para eles por seus mentores, estão sendo levados para trás e para longe de tudo que tinham e agora não têm onde se firmar a não ser nos extremos mais ultrajantes da paciência. Uma paciência humilde e irônica, que aprende a olhar uma folha, perfeita por um dia, e a ver nela a explosão das galáxias e o campo de batalha das espécies. Os shikastianos, nesse fim ignóbil e horrível enquanto lutam, procuram, correm entre seus artefatos desmoronados, esquálidos, erguem as mentes para os píncaros da coragem e da… vou usar a palavra fé. Depois de pensar sobre o assunto. Com cautela. Com respeito exato e esperançoso.”
Como em livros anteriores seus, ela atribui à dimensão rotulada, segundo os estereótipos vigentes, de “loucura” o que na realidade pode ser uma percepção mais aguda, mais matizada e profunda de uma realidade que o ser humano “normal e sadio de mente” só apreende fragmentariamente. Neste livro, o diário da “enferma mental” Lynda Coldridge, confinada anos a fio em sucessivos hospícios, revela que “as pessoas são como caixas chinesas”: dentro da nossa capa externa, meramente exterior, existem outras percepções da realidade. A maioria capta apenas uma escala que, traduzida em sons, abarcaria só um reduzido número de sons. Os chamados “loucos” vão além: captam as transrealidades 2, 3, 4, 5 e ouvem o que “os cotovelos das pessoas emitem e o que as maçanetas das portas dizem”. Mas a sociedade pude todos os que apreendem mais do que os 5% da apreensão “permitida” da realidade. As crianças e os tachados de “loucos” têm essa apreensão do mundo que ultrapassa o limite tolerado. E por isso são automaticamente considerados “perigosos”, “domesticáveis” porque dissidentes da Verdade Única, instituída pela tirania da maioria medíocre que ignora o horror em que estamos mergulhados ou aceita conviver com ele sem combatê-lo. O irracional, o pretensamente absurdo são saídas para fora do racionalismo estreito, conformista e infecundo imposto como padrão “normal” pelos donos do poder vigente. Assim, tudo se colore de panteísmo: gatos, vacas, árvores, plantas, tudo vive e sente, incompreendidos pelo Homem-Padrão, o homem que Fernando Pessoa chamava de “o que dorme sono/que come comida…”. O “louco” tem sua alma, essa palavra tão obsoleta, afrontada pelo descrédito e pela coerção a que é submetido inapelavelmente.
Da mesma forma, a luta de vida e morte que os enviados do planeta Canopus travam é para salvar os habitantes de Shikasta/Terra, que moram em cidades geométricas, de forma circular, hexagonal, quadrada e hoje regrediram à era das cavernas. Não conhecem mais a roda, o fogo, a agricultura, o respeito à ecologia. Estão todos manipulados, legumes sub-humanos, inertes diante de sua própria destruição.
A imensa poesia deste relato épico se transmite ao leitor de momento a momento de cada capítulo. Doris Lessing alude a uma Assinatura, um pacto simbolizado por uma Luz cintilante, contida num estojo, que os enviados de Canopus, como último recurso, mostram aos homens e mulheres transformados em nômades desesperados e moribundos. Esse sinal luminoso lhes recorda rapidamente um Pacto com uma Força Superior (não necessariamente Deus), uma Autoridade Moral superior à da Terra exangue de bondade, de altruísmo, que fecha seus habitantes num círculo do Inferno do materialismo e da ausência de compaixão pelo seu semelhante. No final, com um hino de vigor e força espiritual, reconstrói-se uma nova Cidade em Shikasta, livre dos desígnios malignos de Shamatt, o planeta do Mal e do Crime, da Destruição e da Subjugação de mentes, corações e almas. Todos os shikastianos passam a trabalhar avidamente na reconstrução de uma cidade com a forma de uma estrela de cinco pontas, que será a recuperação inicial de Shikasta dos erros do passado, os erros da arrogância das “raças superiores”, a superação da miséria física e espiritual, das guerras, a demolição dos demônios de Shamatt.
Doris Lessing, com Shikasta (a este primeiro volume se seguem mais quatro, já lançados na Inglaterra), não faz o que usualmente se chama de “literatura”. Ela age como outros autores que tiveram a coragem e a eloquência para nos convencer da justiça devida aos pisoteados em seus direitos: Proust e Zola e os judeus, E. M. Forster e “as raças de cor”, Virginia Woolf e a mulher em A Room of One’s Own, Aimé Césaire e Ralph Ellison e os negros, etc. Doris Lessing vai mais longe ainda: ela TRANSFORMA as convicções do leitor que ler Shikasta.
Afinal, a “louca” Sra. Coldridge, descrita a vagar de uma instituição para doentes mentais a outra, manipulada pelos poderes que mantêm o status quo, a patética Sra. Coldridge se torna o símbolo dignificante, nobre e esperançoso da luta e da evolução da humanidade neste século XX apocalíptico, talvez mais do que todos os precedentes. Como termina seu relatório o médico heterodoxo e sensível que se dignou a ouvir a demente Sra. Coldridge:
“Quando descobri que possuía certas Capacidades, minha primeira reação foi a de quem descobre um inimigo dentro de casa. Pois até conhecer a Sra. Coldridge e compreender sua longa e dolorosa história, eu não tinha paciência com minhas incursões em um reino tão novo para mim, que me parecia território inimigo. Quero acentuar o seguinte: todas essas pessoas são capazes de arcar com pesos, responsabilidades, dificuldades, atrasos, a perda da esperança… Como sabemos, esse é um equipamento essencial para esses tempos difíceis… escrevo e me admiro da insuficiência das palavras! O que estamos vivendo é pior do que os nossos mais terríveis pesadelos. Contudo, estamos passando por isso e alguns de nós – a raça humana – precisamos. Devemos encarar assim. Quero lhe dizer algo que considero um testamento, um ato de fé! Se o ser humano pode suportar uma vida inteira de experiência subjetiva do tipo que foi imposto à Sra. Coldridge, se pode, paciente e obstinadamente sofrer assaltos ao centro mesmo das suas defesas, como foi o seu caso, se podemos enfrentar a vida dia a dia, naquilo que muitos chamariam de”inferno” e sair do outro lado, mais ou menos estáveis, embora avariados – como a Sra. Coldridge é a primeira a concordar que está – se nós, a raça humana, possuímos essas forças de paciência e resistência, nada há que não possamos conseguir. A Sra. Coldridge foi a inspiração da minha vida. Quando a conheci, uma ruína miserável, um esqueleto com imensos e assustadores olhos azuis vagando pelos corredores do Hospital Lomax, em um pobre subúrbio de uma das mais feias cidades, ela não passava de mais um despojo deteriorado entre os quais eu tinha passado grande parte da minha vida, e no qual nem pensaria encontrar a possibilidade de qualquer tipo de revelação ou lição, contudo, foi essa lunática – pois é exatamente o que ela era, quando a conheci – que me ensinou o quanto existe de coragem e tenacidade no ser humano, portanto, em nós todos. O que mais precisamos, a não ser coragem? E talvez esse seja também apenas um dos significados de estarmos preparados para continuar a viver.”
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Doris Lessing, a dama de ferro da literatura inglesa},
booktitle = {As três grandes damas da literatura europeia: Virginia
Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {7},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-7/03-doris-lessing/08-doris-lessing-a-dama-de-ferro-da-literatura-inglesa.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Interview, 1985 (n\textsuperscript{o}80). Aguardando
revisão.}
}