O universo mineiro de Drummond

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1969-06-18. Aguardando revisão.

O grande público só conhece os poemas-sensação de Carlos Drummond de Andrade. Espantando a classe média pelo seu tom de enigma, ou de galhofa, seu primeiro livro Alguma Poesia, publicado na Belo Horizonte de 1930, parecia uma zombaria para o público acostumado só com o soneto parnasiano que falava de “formas ebúrneas” ou como delírio verboso-carnal J. G. de Araújo Jorge. Pois podia ser poesia um poema que em certo trecho dizia:

“Mundo, mundo, vasto mundo,/ Se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução?”

Mais irritado e perplexo deixou o público o famosíssimo “No Meio do Caminho”, com seu início desconcertante para os que prezavam a elevação de pensamentos, a forma cinzelada de um Olavo Bilac ou de um Cruz e Souza:

“No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra/ no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra.”

Que dizer então do “absurdo” do poema-piada, curto e irreverente ara com as musas da divina inspiração poética?:

“Era uma vez um czar naturalista/ que caçava homens./ Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhs,/ ficou muito espantado/ e achou uma barbaridade.”

Nesse crescendo de pasmo, os bem-pensantes recusavam-se a falar dos versos que focalizam a discussão do poeta municipal com o poeta estadual, enquanto “o poeta federal tira ouro do nariz”.

De certa forma, a poesia de Drummond passou no Brasil pela mesma deformação que a de Baudelaire na França ao publicar suas admiráveis Flores do Mal. Se entre nós não houve um processo ruidoso contra o poeta, capaz de levar Drummond à prisão e ao desprezo público é porque no Brasil a poesia nunca foi suficientemente levada à sério. Depois da classe média arrebitar o nariz diante da falta de parnasianismo e da ausência de carne e luar que o poeta itabirano lhe negava, tudo voltou à calma normal de um país apático, antiartístico, onde o próprio Drummond reconhece: “é proibido sonhar”.

Fora desse breve arrepio de horror na gente “de bem” e do impacto igualmente deformante da coletânea Rosa do Povo, de 1945, considerada erroneamente commo “engajamento” social da esquerda festiva, até no seu conservadorismo artístico e de obediência ao gênero épico-grandiloquente, paira a maior ignorância nas grandes camadas sociais brasileiras sobre a grandeza do seu Poeta Maior. Por quê?

Reunião, a coletânea de quase 40 anos de sua criação poética permite ao leitor interessado pesquisar a causa.

Porque qualquer visão limitada da grande poesia universal de Carlos Drummond de Andrade prejudicará sua variedade, sua riqueza e sua maleabilidade. Drummond é um grande Poeta, um Poeta em eterna mutação, que muda pouco a pouco do ponto de vista filosófico, político, social. Não cabendo nos dois rótulos estreitos - poeta “engajado”, poeta “alienado” - não serve para a parte menos inteligente da esquerda, que reduz a vastíssima farmacopéia poética a esses dois frascos pequenos que Drummond extravasa gostosamente. Como vvai além da contradição do “sim” e do “não” afirmativos, indo contra a rinocerontização de seus poemas em dois movimentos: de conformismo-repouso ou de ataque-denúncia. Mineiro-prudente, Drummond conserva e revoluciona ao mesmo tempo, como Aleijadinho, como Guimarães Rosa.

Superado o espanto da classe média e o conservadorismo de certas alas da esquerda, ele sedimenta definitivamente as grandes conquistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Ajuda a desmoronar o edificio ôco da poesia de temas “edificantes ou comoventes” e de rimase métricas obrigatórias, tudo com uma pitadinha de sotaque lisboeta muito déplacé no Brasil que 100 anos antes celebrara sua independência política. E sobretudo, Drummond, a par do abrasileiramento da linguagem, da inovação original do vocabulário que alia um modernismo ousado a um classicismo erudito - exatamente como as composições de Béla Bartok na música e do mineiro Guimarães Rosa na prosa - Drummond sobretudo permanece sempre fiel a um princípio poético que abrange mas não se limita a nenhuma restrição política, social, religiosa, filosófica.

Os dez livros de poesia coligidos em Reunião têm como mérito maior o de proporcionar aos que têm atualmente vinte ou trinta anos o encontro qualitativo com o seu maior Poeta. Pois deslocado na época em que a poesia era rotulada, defumada e espartilhada pelos salões literários de feição caricatural, Carlos Drummond de Andrade é o mais atual, o mais moderno de todos os poetas do Brasil, um poeta que dialoga, sem paradoxo, com as gerações jovens brasileiras. Pois ele fala a elas, depois das grandes conquistas daas artes plásticas, de Chagall a Mondrian, depois da angústia de Kafka e do teatro do absurdo de Ionesco e de Beckett - inovações a que ele se antecedeu desde os primeiros volumes publicados.

Qualquer motivo constante da sua grande poesia leva a marcar inconfundível da sua sensibilidade e da sua técnica pessoais.

Assim, o início do poema “Sentimental” expressa o sentimentalismo doce e masoquista do brasileiro defraudado no amor, mas num tom de auto-ironia que o torna pungente:

“Ponho-me a escrever teu nome/ Com letras de macarrão./ No prato, a sopa esfria, cheia de escamas/ e debruçados na mesa todos contemplam/ esse romântico trabalho…”

“O Sobrevivente” antecipa há decênios a perpleidade da humanidade nossa contemporânea confusa nos labirintos da tecnologia moderna, que povoou nossa tela de televisão de voos à Lua e transformou nossas taboadas elementares em imensos cérebros eletrônicos como no trecho que é um poema de ficção científica ou de “antecipação científica”:

“Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples./ Se quer fumar um charuto, aperte um botão./ Paletós abotoam-se por eletricidade./ Amor se faz pelo sem-fio./ Não precisa estômago para difestão.”

São imagens que recordam agora o amor maquinal de Barbarella ou Eu, Robô de Asimov.

A autobiografia erde seu lirismo exterior de “auroras da minha vida, que os anos não trazem mais”, para documentar sua vocação melancólica, sua necessidade de comunicação, seu passado itabirano e fechado, como no trecho inicial de “Confidência do Itabirano”:

“Alguns anos vivi em Itabira./ Principalmente nasci em Itabira./ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro./ Noventa por cento de ferro nas calçadas./ Oitenta por cento de ferro nas almas./ E esse alheamento do que/ na vida é porosidade e comunicação…”

A autobiografia serve de diálogo entre os elementos tradicionais de uma Minas rural e remota e o cidadão contemporâneo do mundo, transladado para o caos urbano que o Rio de Janeiro atual encerra, mas que já representa uma alternativa social mais viável par o poeta que se rebela contra a injustia social perpetuada por estruturas arcaicas do interior.

“O Caso do Vestido” é um dos momentos da utilização de elementos regionais do linguajar do povo para retratar uma tragédia amorosa que é também o retrato de uma resistência estoica à adversidade e de uma solidão feminina suportada com coragem e inteligência. O ambiente é descrito com uma mistura inigualável de requinte, concisão e de fidelidade ao lingujar dialetal desde os primeiros versos:

“Nossa mãe, o que é aquele/ vestido, naquele prego?/ Minhas filhas, é o vestido/ de uma dona que passou./ Passou quando, nossa mãe?/ Era nossa conhecida?/ Minhas filhas, boca presa./ Vosso pai vem chegando…”

A surpreendente captação poética de um tema que era considerado tabu antes de Baudelaire: a imagem de um adolescente homossexual que surge não sob o ponto de vista realista de Baudelaire ao descrever os amores lébicos nos poemas das “Femmes Damnées”, mas sob a forma da lenda grega de Ganimedes, o jovem arrebatado por Júpiter que o leva, disfarçado de águia, para o céu do Olimpo. Muito antes dos debates religiosos, psicológicos e artísticos em torno do homossexualismo hoje vulgarizados pelos romances de Jean Genet, pelo cinema e pelos romances de Carson Mc Cullers (Reflexos num Olho Dourado) e por Marcel Proust, já o início de “Rapto” aborda o tema escabroso em 1951:

“Se uma águia fenda os ares e arrebata/ esse que é forma pura e que é suspiro/ de terrenas delícias combinadas…” até o final tolerante: “baixamos nossos olhos ao desígnio/ da natureza ambígua e reticente:/ ela tece, dobrando-lhe o amargor,/ outra forma de amar no acerbo amor.”

A par da inovação pioneira de temas, a enganosa e efêmera inovação da linguagem que o movimento concreto cristalizaria em nossa literatura é feito numa dosagem sábia e crescente nos volumes de poemas de Drummond: desde os neologismos como “doclastutos”, “multiamante” ou “pulvicinza”, entre muitos mais, até a verdadeira aula de contraponto poético que é o poema “Isso é Aquilo”. Iniciando-se com a modernidade de um e. e. cummings (ele exigia que seu nome fosse escrito em minúsculas) ou de um trecho de música dodecafônica - “O fácil o fóssil/ o míssil o físsil/ a arte o infarte/ - culmina no manejo colorido e preciso de palavras indígenas ou africanas de”Pranto Geral dos Índios”, homenagem ao Marechal Rondon, mosaico vocabular tecido com penachos multicores das palavras exóticas akagantar, Girirebboy e karori.

E é justamente essa sabedoria de estilo que cria um abismo de incompreensão entre Carlos Drummond de Andrade e o grande público. Sua poesia alia a uma facilidade aparente - o uso de palavras de todos os dias ou até mesmo de gíria - a um vocabulário erudito, castio, de uma precisão rigorosa: espéculo, lues, prandial, efialta.

Mais do que criação, essa verdadeira ação poética de Carlos Drummond de Andrade atinge o ponto máximo deste volume, (que não inclui seu livro mais recente, publicado no ano passado: Boitempo & a Falta que Ama) no poema intitulado “Origem” da coletânea Lição de Coisas. Como num oratório polifônico barroco, o “solo” da voz do Poeta se alterna com os corais de um canto a outro.

O primeiro Canto é uma meditação sobre si mesmo - “Aurinaciano/ o corpo na pedra/ a pedra na vida/ a vida na forma.”

O segudo evoca o passado sem eco “Agora sabes que a fazenda/ é mais vetusta que a raiz.”

O terceiro se aproxima dos grandes momentos da poesia filosófica e especulativa alemã, um Rilke ou um Hölderlin, quando o Poeta, como Orfeu diante da Música e do Inferno, interroga o Enigma da própria Palavra, o Verbo que é na Bíblia o Principio da Criação e que para o Fausto de Goethe é o princípio da Ação - “… Se a essência/ é o nome, segredo egípcio que recolho/ para gerir o mundo no meu verbo?”

O quarto é uma orquestração de sons e onomatopéias de vozes brasileiras que partem da selva e da senzala e ecoam os termos portugueses trazidos de além-mar: “Acaí de terra firme…/ sapupira pitangueira/ …biquipi biritá botão de ouro.”

E o quinto retoma, noutro tom, o Enigma indecifrável da Palavra: “Tudo é teu, que enuncias. Toda forma/ nasce uma segunda vez e torna/ infinitamente a nascer…/ o nome é bem mais do que o nome: o além-da-coisa,/ coisa livre de coisa, circulando./ E a terra, palavra espacial, tatuada de sonhos,/ cálculos” - até o final, que integra a palavra na época eletrônica: “… E apenas resta/ um sistema de sons que vai guiando/ o gosto de dizer e de sentir/ a existência verbal/ a eletrônica/ e musical figuração das coisas?”

Se para o grande filósofo existencialista francês contemporâneo, Merleau-Ponty, toda ação é simbólica, até a ação espiritual do livro e do poema, então a poesia de Carlos Drummond de Andrade - a maior e mais universal da língua portuguesa, desde Fernando Pessoa - é uma ação fecunda até fora do âmbito da língua e da expressão espiritual e cultural do Brasil.

Como a prosa de Guimarães Rosa, a arquitetura de Oscar Niemeyer ou a música de Villa-Lobos, ela é a face brasileira da Arte Maior do nosso século, Carlos Drummond de Andrade, elegíaco e altivo, poeta urbano do Rio e nostálgico de Minas, humanista defensor da massa mas atento ao sufocamento do indivíduo, riso irônico no rosto sulcado de temo e de premonição da morte, Carlos Drummond de Andrade termina seu trajeto riquíssimo e fascinante na espiral do monólogo que se volta sobre si mesmo depois de percorrer o mundo:

“Estou comprometido para sempre/ eu que moro e desmoro há tantos anos/ O Grande Hotel do mundo sem gerência/ Em que nada existindo de concreto/ - avenida, avenida - tenazmente/ de mim mesmo sou hóspede secreto.”

Drummond esquiva-se ao 75º aniversário

Jornal da Tarde 31/10/1977

Quando o menino Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas, há 75 anos, nao estava presente apenas o anjo torto que da sombra aconselhava: “Vai, Carlos! Ser gauche na vida”. Seus padrinhos Don Quixote e Sancho Pança lhe davam armas e o sagravam Cavaleiro para enfrentar o que ele mesmo viria chamar mais tarde de “o desconcerto do mundo”.

De Sancho Pança, o prosador herdou um vocabulário popular, uma perspectiva de bom senso agudo, balana em que pesa os problemas humanos que o igualam, como cidadão, à massa do povo. O Fidalgo da Triste Figura lhe legou o ideal mais nobre: o de combater com palavras a “luta mais vã”: a luta solidária pela justiça e dignidade da condição humana em sua efêmera passagem pela Terra.

Com o tempo, como na novela de Cervantes, um influenciou o outro: frequentemente o jornalista comenta o dia-a-dia da grande cidade em estilo poético ou em versos; o poeta adota um vocabuláro moderno, interpola expressões de gíria em seu profundo mosaico de meditação universal e filosófica sobre o estar no mundo. O cronista e o artista têm, porém, traços em comum: o inconformismo diante da tirania, a defesa dos indefesos, o fascínio pelas palavras compiladas como borboletas multicolores das páginas de um dicionário, o horror à vulgaridade e um mineiríssimo recato de quem não concede entrevistas, não recebe prêmios oficiais, sorri do fardão e do espadachim da Academia de Letras. Tudo é comunicado em semi-tons, com reticências e uma fina ironia alusiva, um controle emocional imperturbável diante das ameaças constantes do mundo assolado por Esquadrões da Morte, terrorismo, a fome e a desvalorização crescente da ação humana na Bolsa dos Imponderáveis.

Com exceção de Proust, talvez nenhum grande escritor contemporâneo tenha, como Carlos Drummond de Andrade, uma noção tão lúcida e tão lúcida e tão matizada da passagem do Tempo: “Onde estarão esses olhos fora de uso, que sumiram, como somem os nossos óculos e some a nossa vida?”. A devastação erosiva do Tempo evoca constantemente o espírito plácido de Minas, com sua quietude ordeira, suplicando-lhe que baixe sobre o Caos psicótico da humanidade de hoje ou como remota lembrança de um passado nostálgico lembrado com pudor: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas./ Hoje sou funcionário público”. A melancolia não se degrada em morbidez nem no sentimentalismo impuro de uma autoridade rasteajante. Às transformações inexoráveis do presente para o passado ele responde com o humour, essa forma risonha de estoicismo e realismo. É a recusa sutil e cômica dos versos polidos: “Dentaduras duplas! Inda não sou bem velho para merecer-vos”. Há como que um altivo nimbo de dignidade ferida no coletivo humano. A resposta para a usurpação de poderes, par o embotamento da sensibilidade dos frenéticos tempos modernos é o desalento, mas a crença na identidade do indivíduo com os seus semelhantes, mesmo diante da morte sem céu nem esperança de bem-aventurança além-túmulo: “Ah, podeis rir também,/ de outros virem depois, de todos sermos irmãos,/ no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime/ cotidiano, mas tudo é nosso irmão”.

A coerência da sua esplêndida traejtória poética que o ressalta como o maior poeta vivo do Ocidente - dá continuidade também à sua vocação de democrata, de liberal, que confraterniza voluntariamente com as alegrias do povo, com o tricampeonato de futebol do Brasil no México, como com as agruras de um José cuja festa acabou, um perplexo personagem de brasileiro das camadas populares à espera de um Godot mítico e inexistente. Essa fusão consciente com o comum dos mortais, sem barreiras artificiais de classe, de cultura, de raça, se espelha patentemente em sua prosa. Nas crônicas, ele aborda de preferência os temas do momento, que angustiam e enchem de desconcerto os cidadãos médios, que ele enfeixou na figura de João Brandão. Em seu último livro Os Dias Lindos (Editora José Olympio) ele usa termos usuais para dialogar com o leitor, embora de cada crônica se possa extrair sempre uma originalidade ou uma graça capazes de contagiar quem lê suas frases de uma comicidade baseada na acumulação de absurdos como numa peça de Ionesco. Diante da crescente burocratização da vida moderna, ele prevê a transformação de cada indivíduo, desprovido de seu nome de batismo, num mero número: o do seu cartão único, algarismos que englobam o número da sua conta bancária, seu título de eleitor, sua carteira de identidade e escancaram à indiscrição do Estado Todopoderoso suas ações desde o nascimento até sua morte. E Carlos Drummond de Andrade conclui: “É possível que o Poder já não esteja em mãos dos homens: eles supõem controlar a maquinaria sofisticada, mas são as engenhocas eletrônicas que programam e descaracterizam nosso destino”. A poluição lhe sugere a ideia de instituir o “direito de poluir”, garantido às fábricas mediante apresentaão da “guia de recolhimento da taxa devidamente quitada”. O aumento progressivo dos impostos pressupõe a futura cobrança de utilização da praia por hora, com cada mergulho e sua duração precisa controlados por um aparelho emitidor de tickets de banho. Até o direito de ficar parado sem fazer nada, contemplando a paisagem, será taxado: se há estacionamento pago para automóveis, por que não há de haver para pedestres a sacar do bolso cruzeiros para financiar cada minuto de seu dolce far niente?

Sombra autobiográfica da fisionomia interior do poeta, seus trabalhos em prosa espelham a sua descrença em sistemas mecanicistas aplicados ao espírito lúdico, inventivo, comunicativo, do brasileiro. Com a mesma limpidez, retratam a sua retidão de caráter, seu horror a que devassem sua vida íntima através de entrevistas ou de receber prêmios de uqm não tem autoridade moral para outorgá-los. É eloquente a referência à sua própria mão: “Recusa-se a apertar outra mão, que não lhe parece suficientemente limpa, a bater palmas à glória ou ao poder suspeitos”, eco da integridade mineira de um Milton Campos. São linhas de homenagem também ao mister humilde das mãos que escrevem: “essa mão gasta de tanto escrever, mão que se savrificou pelo sustento do corpo e nunca mereceu cuidados especiais”.

A audácia é um traço compartilhado elo prosador e pelo poeta: se um inova com recursos gráficos do concretismo e um vocabulário múltiplo, tirado de ciências exatas ou de línguas indígenas ou africanas, o outro ousa renovar a crônica de forma surpreendente. Aproveitando um Dia de Finados, em vez de optar por um comentário de lamúrias. Carlos Drummond de Andrade dedica um texto elegíaco, de grave e solene beleza, aos cadáveres anônimos que botam no rio Guandu, antes de serem devorados pelos urubus: os restos macabros de suicidas, de indigentes ou de vítimas do Esquadrão da Morte, “garrafinhas chamam-se eles, os trucidados com chumbo aos pés… mortos sem sepultura e sem lembrança. Trágicos e apagados, deslizantes na correnteza. Passageiros do Guandu, apenas e afinal.”

Os ofícios do jornalista e do escrtitor, muitas vezes confluem: “Em suma, o jornalismo é uma escola de clareza de linguagem, que exige antes a clareza do pensamento… Não admite a preguiça, que é o mal do literato entregue a si mesmo. Há páginas de jornal que são dos mais belos textos literários. E nenhum escritor os faria se não tivesse obrigação jornalística”. Há dessemelhanças nítidas, porém, entre a lenta elaboração lírica e a pontualidade mecânica imposta pela imprensa diária. Ainda que de forma oblíqua, arisca, é nos poemas que ele se confessa mais fundamente: o calendário de Mariana que punha em fila ordeira e inteligível os dias dos santos, as colheitas e até a hora da morte, o hotel avenida em demolição são o passado fisicamente desfeito, mas na lembrança significam o regresso, a perenidade da memória: o poeta permanecerá sempre o hóspede secreto de si mesmo. Prosa e poesia se encontram, no entanto, na fidelidade de Carlos Drummond de Andrade a si mesmo em seus 75 anos de idade. O seu percurso intelectual abrangeu város matizes de expressão mas a sua perspectiva ética e filosófica permaneceu intacta, impoluta diante do brilhareco da vanitas mundana, lantejoulas de uma gloríola que se desfaz. Ambos, poeta e cronista, pedem humildemente desculpas por sobreviver, compartilham com o leitor de um tempo e um espaço efêmeros, à espera da morte. Essa antevéspera do Nada deve ser aceita com uma alegria e com uma soledariedade que são os únicos elementos capazes de dar um sentido ao nonsense da vida. A vida em si é o ritual, a esperana, o altar, o motivo de celebração exultante: “Já é de seu conhecimento, há muitas centenas de meses, que lhe cabe assistir a um espetáculo de que você, ao mesmo tempo, é comparsa mínimo. Espectador dos outros e de si mesmo: curiosa situação, né? a de tanta gente. Nem exceção você é. Não se envaideça. Não se melancolize… Experimente (sempre) viver”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1969) 2022. “O universo mineiro de Drummond .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.