O teatro no século XX
O teatro tem ainda uma função a preencher neste final do século XX? Ou seria uma expressão cultural feita para séculos mais calmos, quando os gregos podiam assistir durante horas a tragédias de Sófocles, sem a perturbação do cinema, da televisão, da imprensa, dos festivais dos Beatles e de Woodstock?
Além da sua dificuldade em concorrer com meio de comunicação eletrônica, o teatro definhava financeiramente, a ponto de ser mantido na Itália, na França, da Alemanha, pelo Estado e ser necessária a fundação, sem precedentes, de um National Theatre na Inglaterra, com verbas do governo, para montagem dos textos clássicos de Shakespeare.
De fato, o teatro e a dramaturgia passam por uma transformação inédita nestas sete décadas, que alteraram profundamente o espírito e o impacto dramáticos, pois é a partir de fins do século passado que se modifica a própria maneira de representar. Konstantin Stanislawsky, na Rússia, em 1897. Fundou o Teatro de Arte de Moscou que influenciará decisivamente a forma de representar até dos atores norte-americanos da Escola de Lee Strasberg, Nova York, como Marlon Brando e Paul Newman, entre outros. O “método Stanislawsky” exigia que o autor extraísse de sua vida e experiências pessoais vivências e sensações comparáveis às do seu personagem: para exprimir medo, uma atriz devia vislumbrar um rato, por exemplo, uma cena de angústia devia evocar sua real despedida de um pai morto etc.
Na Alemanha, Piscator preparava o terreno para o teatro político de Bertolt Brecht (1898-1956), criando peças para meios operários, com utilização de letreiros, cartazes e filmes para maior choque visual. Na Inglaterra do após-guerra, a diretora Joan Littlewood retomava a lição alemã criando com notícias de jornais, fotos e colagens uma comédia negra, com números musicais e dança, baseada na Primeira Guerra Mundial: Oh, What a Lovely War! (Oh, que delícia de guerra!). Seu Theatre Workshop (Teatro Oficina) e o Royal Court Theatre de George Devine seriam o laboratório para peças de cunho social como as de Arnold Wesker, John Arden e John Osborne.
A característica fundamental do teatro do século XX é melhor analisada, porém, sob uma perspectiva geográfica, já que cronologicamente os dramas e comédias produzidas pelos mais diversos países se influenciam mutuamente, numa era de difusão cultural crescentemente rápida. E essa característica básica é a destruição do teatro convencional:
Na França: as primeiras décadas pertencem ainda ao vaudeville, a comédia de costumes picante, geralmente centralizada no adultério galante das peças de Georges Feydeau (La Dame de Chez Maxim; Occupe-toi d’Amélie). Já em 1912, porém, o teatro de Claudel, fortemente influenciado pelo belga Maeterlinck, funde uma visão ortodoxamente católica com uma visão mágica e lírica da vida nos dramas L’Annonce faite à Marie e Le Soulier de Satin. Três autores renovam o drama francês sob pontos de vista diferentes: Giradoux propõe A Louca de Chaillot como personagem romântica, quixotesca, disposta a endireitar um mundo injusto e cruel; Jean Cocteau envereda pelo fascínio da arte expresso por situações dramáticas e por uma orquestração poética das palavras em La Machine Infernale; mas é Jean Arnoul que com suas comédias e seus dramas vem propor um teatro de ideias: o mito da heroína santificada, Joana D’Arc, em A Cotovia, representada no Brasil por Maria Della Costa como O Canto da Cotovia, o choque de uma consciência religiosa inflexível contra um rei devasso e tirano em Becket. Com o filósofo e crítico Jean-Paul Sartre, o teatro de ideias adquire um significado nitidamente de esquerda. La Putain Respectueuse analisa a sociedade racista do Sul dos Estados Unidos disposta a atirar a primeira pedra numa prostituta, que é a única “pessoa decente” de sua cidade provinciana; Os Sequestrados de Altona analisa a culpa dos grandes industriais alemães na manutenção dos nazistas no poder e a impunidade em que vivem na Alemanha do pós-guerra, em choque moral com as gerações mais jovens; é na sua peça melhor, Huis-Clos que Sartre esmiúça sua análise social do preconceito, revolucionando o tradicional triângulo amoroso pela introdução de uma lésbica que disputa com um homem a mesma mulher: “o inferno – declara um de seus personagens – são os outros” pela sua intolerância e desamor humano.
Com o fim da guerra, a sociedade extremamente cosmopolita que foi Paris absorve dois dramaturgos de incomparável importância com o romeno Eugène Ionesco e o irlandês Samuel Beckett. Ambos estabelecerão o “teatro do absurdo”, em que o “humor negro” das falas e das situações sublinha o horror da condição humana. Em En Attendant Godot (Esperando por Godot) dois mendigos falam de ninharias, brigam e voltam a esperar, diariamente, por um misterioso Godot que promete vir e nunca vem: será um símbolo de Deus (God em inglês)? Será a morte? Será a revolução? Será o nada? Não se sabe. A partir do “teatro do absurdo” o enredo como tal desaparece: as falas são gratuitas, não há “mensagem” para os espectadores – mas o fascínio de vidas ainda que insignificantes permanece quando manejadas por um extraordinário estilista como Beckett. Ionesco parte da constatação da mediocridade burguesa: afirma que começou a escrever peças quando estudou inglês numa gramática que só proclamava inanidades: como está o tempo? A sra. vai bem? Dessa verificação é possível “falar sem dizer nada”, Ionesco criou A Cantora Careca, As Cadeiras, A Lição. Nesta, um professor assassino e lúbrico mata uma por uma todas as almas particulares que vêm tomar lições em sua casa e depois que se revelam incapazes de fazer imediatamente multiplicações astronômicas ou decorar livros inteiros. Em As Cadeiras um casal de anciães vai colocando no palco dezenas de cadeiras para convidados imaginários até que não têm mais saída física e recebem o emissário que vem trazer um recado: é um mudo de nascença que só emite grunhidos e faz gestos desesperados no vácuo. Noutro drama, Il Faut S’en Débarasser (Como se livrar da coisa) um casal de amantes adúltero e assassino vê o cadáver do morto crescer dia a dia até tocar todo o espaço da casa que ocupam. Os Rinocerontes constituem talvez a experiência política de Ionesco, que criticando o Nazismo – que transforma os indivíduos em animais passivos e mais tarde agressivos – foi proibido em países socialistas, pois o público aplaudia os simbolismos da peça, interpretando-a como uma sátira aos dirigentes comunistas da Europa Oriental.
Em suas peças subsequentes, Knapp’s Last Tape e Fin de Partie, Beckett leva às conclusões extremas suas premissas pessimistas e amargas de seus romances. Knapp’s Last Tape reduz-se a fragmentos de monólogo recitados por um ator ou que ele mesmo ouve numa fita, gravados, evocando sua vida passada. Fin de Partie coloca a atriz num monte de areia que vai aumentando à medida que ela relata sua vida e vai submergindo até impedi-la de falar. O mundo apavorante de Beckett pode ser decifrado como a busca de uma crença religiosa: confuso, pedido, paralisado, o homem erra sobre a terra sem encontrar amor nem esperança – sem um Absoluto o relativo humano é irremediavelmente um absurdo e efêmero deslisar entre dois túneis inescrutáveis: a escuridão do ventre materno e da tumba sepulcral.
A esse teatro cruel, desumano, deprimente, o romancista, ladrão e homossexual condenado a vários anos de prisão em vários países da Europa, Jean Genet, justapõe um teatro igualmente cruel, mas já sádico e impregnado de um lirismo verbal demoníaco. Aparentado ao espanhol Arrabal (Pique-Nique no Front e as peças reunidas no Brasil sob o título genérico de Cemitério de Automóveis), Genet não adere a seu anarquismo político. Seus dramas são mais intensamente radicados numa visão pessoal, sadomasoquista, que parte do crime e do sexo como verdades fundamentais. Em Haute Surveillance é a violação carnal na prisão que Genet evoca, em As Criadas subverte-se a credibilidade do público: duas criadas vestem-se com as roupas da patroa enquanto esta está fora e planejam sua morte para quando ela voltar, disputam entre si, ostentam suas roupas, seu sotaque aristocrático e no final despem-se revelando ser dois homens travestidos durante toda a representação. Mais amplo e mais inquietante ainda é O Balcão (montado no Brasil pelo diretor argentino Victor García). Num bordel de luxo, as prostitutas satisfazem não só os desejos carnais dos “clientes” como também às suas taras específicas: um deles veste-se com os paramentos de um Bispo para ministrar-lhe a confissão e açoitá-la com um chicote; outro aparece togado como um Juiz que absolve ou condena sua “vítima” conforme ela declarar bem ou mal sua parte decorada de antemão. Enquanto isto, uma revolução violenta eclode no país: com a chegada das forças rebeldes, os “clientes” paranoicos são chamados a assumirem na realidade os papéis que desempenhavam no bordel.
Na Inglaterra: Igualmente vinculada pela presença irlandesa, como a de Beckett na França, a dramaturgia inglesa tem, no final do século, a presença marcante de Oscar Wilde, com suas comédias de fino humour (A Importância de ser Franco ou The Importance of Being Earnest), e, estendendo-se até os nossos dias, a de George Bernard Shaw, também irlandês. Shaw, socialista moderado e democrático como membro da Fabian Society que reivindicava mudanças sociais sem violência, cria dramas religiosos como Santa Joana, baseado na vida de Joanna d’Arc, que militou como os irlandeses contra seu arqui-inimigo, a Inglaterra, ou ilustra suas teses de que a educação preenche as lacunas criadas pelas barreiras de classes sociais em Pygmalion. Pygmalion retoma em termos modernos o mito grego de um escultor, Pigmaleão, que criou uma estátua feminina, Galatéia, tão bela que os deuses, a seu pedido, a dotaram de vida. Um professor de fonética excêntrico, educa uma moça analfabeta que vende flores no mercado de Londres, Eliza, e vence a aposta que fizera com um amigo de que ao terminar seu aprendizado ela passaria por uma princesa de sangue azul nos salões aristocráticos dos bairros elegantes londrinos. Transformado numa comédia musical na Broadway por Allan Jay Lerner, com o título de My Fair Lady, Pigmaleão transformou-se num dos grandes sucessos do teatro e do cinema da década de 60.
O teatro espirituoso e social de Shaw influencia em parte o advento dos autores irlandeses do chamado Irish Revival, o movimento do renascimento do teatro autóctone irlandês que atinge seu clímax com John Millinton Synge. Idealizado inicialmente pelo insigne Yeats, com suas peças simbólicas, baseadas nos mitos e no folclore irlandeses, esse teatro nacional conta com um autor vigoroso: Sean O’Casey, que ambienta suas pelas nos cortiços de Dublin ou nos ambientes rurais dos paupérrimos counties da Irlanda que vê seus filhos emigrarem, principalmente para os Estados Unidos, enquanto luta pela independência política da que será a futura República do Eire: Juno and the Peacock, The Plough and the Stars. Synge, porém, é quem consegue infundir à temática regional dos campos verdejantes da Irlanda o wit e a fantasia verbal características de sua raça com The Playboy of the Western World, que no Brasil recebeu o título de O Prodígio do Mundo Ocidental.
Na Inglaterra, toda a riquíssima tradição teatral, que culmina nas representações shakespeareanas consagradas há quatro séculos em Stratford-on-Avon onde nasceu o grande gênio inglês ou em Londres, duas correntes se afirmam como as mais importantes, depois da Segunda Guerra Mundial. Há o grupo liderado pela diretora teatral Joan Littlewood e o que se reúne em torno do diretor George Devine. Littlewood cria o Theatre Workshop em 1945, com o propósito declarado de atender a um público proletário até então marginalizado da temática e das plateias teatrais. Ela estimula a criação coletiva de peças, ouvindo sugestões dos autores, convida a plateia a participar das peças e debatê-las e lança a par de comédias sardônicas como Oh, que delícia de guerra (em 1963) uma autora sensível e poética, Sheila Delaghney, ex-indicadora de lugares de um centro provincial inglês, com A Taste of Honey. Ironicamente, os objetivos de Joan Littlewood, são alcançados por um grupo divorciado do seu: o criado no Royal Court Theatre, efemeramente, por George Devine no início da década de 60. Encorajando o teatro experimental, Devine verá surgirem os autores do “teatro dos angry young men” (dos jovens coléricos): John Osborne, Jon Arden, Arnold Wesker. Todos concentram-se em temas proletários, como na peça de Osborne Look Back in Anger ou em Roots de Arnold Wesker ou A Cozinha, levada no Brasil, e que focaliza a vida de um grande restaurante sob a perspectiva dos dramas pessoais dos cozinheiros, das garçonetes, do maître, elementos marginalizados pela estrutura social vigente. Pouca duração, porém, tem essa tentativa de colocar no palco uma classe social específica: logo os dramas de sucesso de Terence Rattigan e Noel Coward (Blithe Spirit) voltarão a dominar as produções britânicas até a incursão renovadora, revigorante, de Joe Orton. Joe Orton, prematuramente desaparecido, assassinado por seu companheiro de 15 anos de vida em comum, insufla sangue novo na corrente do teatro do absurdo ou teatro da crueldade como ele é chamado na Inglaterra. Em O Versátil Mr. Sloane um jovem bem apessoado e sem escrúpulos é o gigolô disputado ao mesmo tempo por dois irmãos: uma relapsa dona de casa quarentona e um próspero homem de negócios da City londrina. Em Quanto mais louco melhor e O Olho Azul da Falecida Orton desencadeia sua verve macabra e iconoclasta contra a administração britânica, a Coroa, a classe médica, as agências funerárias numa girândola alucinante de gags hilariantes e irreverentes, sem propor nenhuma solução: sua visão é vulcânica, anárquica, destruidora e selvagem como a do mais meteórico e dotado talento teatral surgido na Inglaterra nos últimos 70 anos.
Os esforços do poeta T. S. Eliot de reviver o drama em versos com Assassinato da Catedral não têm seguidores nem sucesso prolongado. O único formulador de um drama patético, angustiante e individual será Harold Pinter. Descendente de um alfaiate judeu português, de sobrenome Pinto anglicizado para Pinter, suas peças não partem de uma premissa ideológica, mas retratam, ao contrário, a solidão do ser humano e sua frustração em estabelecer contatos com o próximo. Em The Caretaker, mal traduzido no Brasil como O Inoportuno, um mendigo é recolhido por um débil mental que tenta dessa forma romper sua vida solitária, mas é impedido pelo irmão, presumivelmente frequentador do bas fond londrino, brutal e egoísta, que escorraça o mendigo grandiloquente e reinstaura em todos os participantes a solidão como forma de incomunicabilidade. Em outras peças, A Volta ao Lar, Pinter focalizará os mesmos problemas: há sempre uma ameaça a um equilíbrio precário com a vinda de um intruso, como no mundo de Kafka é sempre de fora que vem a catástrofe ou a punição por crimes que o réu ignora ter cometido. Em A Volta ao Lar é um jovem inglês que traz da América para visitar sua família sua esposa americana. Logo o pai e os irmãos a disputam como se ela fosse uma presa fácil, projetando nela sua libido mais desenfreada. No final não há uma conclusão, como ocorre tipicamente no teatro de Pinter: no dia seguinte recomeça esse soturno e cinzento inferno diário.
Nos Estados Unidos: Eugene O’Neill (1888-1953) é a figura que sobressai entre todos os dramaturgos do início deste século nos Estados Unidos. Suas incursões obedecem desígnios diferentes: em Emperor Jones estuda o negro liberto da escravidão e que cria um Império tão tirânico para seus irmãos de raça quanto o dos brancos antes da abolição da servidão; em Mourning Becomes Electra é o tema grego de Electra, que quer vingar a morte de seu pai por meio do irmão Orestes, mas colocado no plano de conflito entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos após a guerra de Secessão em meados de 1800. É sem dúvida com sua tragédia mais pessoal, A Longa Jornada Noite Adentro que O’Neill cria a sua suprema obra-prima: é o longo diálogo, entrecortado de extensos monólogos, de personagens condenados desde a mãe alcoólatra e o pai louco até a filha ninfomaníaca e o filho de tendência suicida. É um dos dramas mais pungentes de toda a dramaturgia moderna, com seu tom melancólico, baço em que fantasmas pronunciam frases de uma extrema contenção emotiva, mas de extraordinário efeito poético e dramático. Sucessor de Eugene O’Neill no relativo à tristeza poética que emana de seus dramas, o sulista Tennessee Williams é o grande escritor de teatro das décadas de 40 e 50. Um Bonde Chamado Desejo encarna seu personagem obsessivo: uma mulher requintada, ardente, deslocada, pela ruína e pela decadência, em um meio inferior ao seu. Blanche Dubois, internada num manicômio pelo cunhado brutal e pela irmã penalizada, mas conivente, é o protótipo das frágeis heroínas de A Noite de Iguana ou À Margem da Vida. Seus protagonistas são sempre aleijados físicos como Laura de À Margem da Vida ou aleijados morais que se aproximam da beleza e do sexo como mariposas consumidas pelo fogo, desde De Repente, no Verão Passado até Gata em Teto de Zinco Quente.
Arthur Miller, casado durante breve período de tempo com a estrela Marilyn Monroe, dá diretrizes mais claramente sociais a seus dramas: Depois da Queda, uma impiedosa análise de seu fracasso com Marilyn Monroe, Morte do Caixeiro-Viajante que esmiúça o fracasso de um pai americano, ofuscado pelos mitos americanos do dinheiro, do sucesso e do lucro, diante de seus filhos alienados do seu afeto e da sua escala de valores; The Crucible, no Brasil, intitulado, As Feiticeiras de Salem é uma crítica simbólica aos processos do Senador Mc Carthy de perseguição sistemática a qualquer simpatizante da Esquerda nos meios artísticos dos Estados Unidos sob o disfarce da fanática caça às feiticeiras da puritana Nova Inglaterra do século XVII.
Edward Albee que também começara com a sátira dos valores americanos em O Sonho Americano terá em Quem tem medo de Virgínia Woolf? sua obra mais importante: é o desmantelamento de um casal que durante uma noite se estraçalha e se destrói mutuamente com palavras e com infidelidade, chegando à madrugada despojados até dos simulacros de amor e de convívio tolerável de que dispunham. Contribuição genuinamente americana, o “musical” ou comédia musical montada com imensos recursos cênicos na Broadway ficará anos em cartaz, desde Annie Get Your Gun e Oklahoma até West Side Story e Violinista no Telhado ou Minha Querida Lady, com resultados quantitativos frequentemente divergentes: excelente em raros casos, medíocre na maioria.
Ibsen e Pirandello – Ibsen (1828-1906) cronologicamente não pertence, a rigor, ao século XX, mas sua influência é de tal modo duradoura que talvez nenhum autor moderno tenha sido montado com tanta frequência neste século, com exceção de Shakespeare. Ibsen é de máxima relevância para um século em que, mais e mais, o artista se vê confrontado com a responsabilidade ética para com a comunidade em que vive. Em Brand foi exatamente desta constatação moral que o grande autor norueguês partiu: desenvolvido em O Inimigo do Povo esse tema causou polêmicas violentas onde foi apresentado: numa estação balneária um médico constata que a água do local está contaminada. Deve revelar esse perigo, fiel à sua consciência, ou poupar a população local, mantendo seus empregos, calando sobre sua descoberta que pode ser mortal para milhares de pessoas? Em A Casa de Bonecas é o papel da mulher que se quer emancipar da “casa de bonecas” em que é forçada a viver pela dominação social do homem o tema dominante. Em Peer Gynt, por meio de mitos mágicos e de simbolismos, Ibsen adapta à Noruega o tema de Fausto sob vestes contemporâneas: o homem que enriqueceu à custa de seus ideais e que não tem padrões éticos é um inútil condenado ao Inferno e só salvo na última hora pela intervenção sobrenatural da sua amada que o impede de ser entregue ao caldeirão do Diabo onde se misturam os seres falidos para novas criações.
Pirandello (1867-1936) abandona o conto e o romance para dedicar-se ao teatro, depois que sua mulher enlouquece e é internada num manicômio. O que é real? O que é irracional? O ser humano pode conhecer a verdade? Ou a verdade de cada um é incomunicável aos outros? Assim é se assim lhe parece, Enrico IV, Seis Personagens em Busca de Autor, Esta Noite se Improvisa giram em torno da possibilidade de diálogo entre os seres humanos, optando por uma conclusão pessimista que relega cada ser humano a uma solitária ilha cercada de incompreensão por todos os lados.
Fora o aparecimento esporádico de autores interessantes em outros países, a dramaturgia moderna só excepcionalmente surge na Espanha com as obras de García Lorca (Yerma, La Casa de Bernarda Alba, Rosita, la Soltera), uma tentativa de dar valor universal aos temas andaluzes da repressão da mulher numa sociedade de “machos” tiranos, de sua “carreira” única: o casamento, da destruição fanática de sua libido por princípios puritanos e austeros; ou na Suécia, com Strindberg e sua sátira à mulher odiada como elemento pernicioso e destruidor do homem em Mlle. Julia.
Muito mais viva é a criação teatral nos países de língua alemã.
A princípio na Suíça, dois autores alcançaram logo sucesso mundial, sendo encenados também no Brasil. Max Frisch faz no drama Andorra um estudo introspectivo da culpa que coube à Suíça, neutra durante a Segunda Guerra Mundial, no poder destruidor do Nazismo liderado por Hitler: um inocente – simbolicamente os judeus – é acusado, condenado e sentenciado – de que adiantem as autorrecriminações e o remorso dos que não agiram em sua defesa quando era tempo e preferiram ficar em suas posições de privilégio confortável e arrogante? Friedrich Dürrenmatt equipara os cientistas aos loucos por não impedirem a disseminação da bomba atômica utilizada para fins militares na guerra dos Estados unidos contra o Japão na peça Os Físicos. Em sua produção mais célebre, A Visita da Velha Senhora, uma mulher riquíssima volta à sua aldeia natal e propõe doar uma soma fabulosa à prefeitura local se seu sedutor da juventude for enforcado: surpreendentemente, todos os cidadãos concordam na eliminação de seu antigo amante, que, atônito, apelas para princípios humanísticos em vão, sacrificado pela sordidez da perspectiva de um enriquecimento fácil dos aldeões.
Na Alemanha, Rolf Hochhut com Der Stellvertreter ou O Vigário condena o Papa Pio XII pelo que considera sua “omissão no caso do massacre dos judeus levado a cabo por Hitler”, Peter Weiss, dramaturgo de Esquerda, obtém, com a montagem delirante de Peter Brooks, em Londres, renome mundial com sua peça Marat/Sade em que o Marquês de Sade simboliza o anarquismo estetizante da Direita e o fanático revolucionário do Terreur da Revolução Francesa de 1789 o tirano comunista obediente e cedo às diretrizes mais desumanas do “sagrado” Partido Comunista.
Essa dramaturgia de contestação deriva, porém, de um dramaturgo incomparavelmente mais dotado: Bertold Brecht (1898-1956). Brecht, que teve grande ressonância nos meios teatrais brasileiros, é o Moisés de um tácito Decálogo da Esquerda que inclui em seus Mandamentos denegrir a burguesia, denunciar as injustiças da sociedade capitalista, o atraso da Igreja que se opõe às grandes invenções como ao materialismo. Na sua peça sardônica A Ópera dos Três Vinténs ou nas suas “peças didáticas” como A Alma Boa de Se-Tsuan ou na sua obra-prima Galileu, esse Evangelista do Novo Credo, o Marxismo, na maioria das vezes utiliza-se de temas alheios que desenvolve com extraordinários recursos cênicos e sobretudo verbais. O romancista alemão Günter Grass denunciou “a alienação real de Brecht” com referência à repressão stalinista e pós-stalinista nos países da Cortina de Ferro em seu drama Os Plebeus Ensaiam a Revolta em que analisa a passividade de Brecht com relação à revolta dos operários de Berlin contra os tanques russos em 1953: “ficou ensaiando o Coriolanus de Shakespeare em vez de denunciar a opressão do proletariado”, declara Grass, ele próprio de Esquerda e fugitivo do regime da Alemanha Comunista de Ulbricht.
No Brasil: Numa visão forçosamente sucinta da produção teatral de vários países, o Brasil vem passando paulatinamente de país importador de talentos a país exportador de valores teatrais nos últimos anos. Até a década de 30, o Brasil tinha como produção dramatúrgica própria as comédias de Oduvaldo Viana (Amor) montadas pela dupla Dulcina-Odilon ou o drama de Joracy Camargo Deus lhe Pague encarnando o papel principal o ator Procópio Ferreira. Eram produções modestas do chamado “teatro digestivo”, que não abordava temas difíceis nem capazes de perturbar uma digestão calma, feita no teatro. Só com a montagem, pelo diretor polonês Ziembimsky, emigrado para o Brasil, da peça Vestido de Noiva do teatrólogo carioca Nélson Rodrigues, é que se inicia uma dramaturgia brasileira. (As peças de Oswald de Andrade só serão redescobertas mais tarde. Nélson Rodrigues passa a ser cronologicamente o primeiro grande dramaturgo brasileiro. Suas peças melhores – as da primeira fase – Boca de Ouro, A Falecida e Beijo no Asfalto ambientam-se obsessivamente no subúrbio carioca, com seus sonhos de ascender à riqueza das grã-finas da Zona Sul de Copacabana ou à dignidade confortável da classe média. A Falecida prostitui-se em sucessivos adultérios para ter um enterro de luxo. Boca de Ouro, um bicheiro temido da Zona Norte, é o rei de um submundo ilegal do bicho até colocar em vez de seus próprios dentes duas dentaduras de ouro maciço. Beijo no Asfalto estuda o preconceito (contra o homossexual neste caso) que a classe média usa para disfarçar suas próprias taras, num drama de extraordinário impacto cuja carreira pelo grupo de Fernanda Montenegro, Gianni Ratto, Fernando Torres, Ítalo Rossi e Sérgio Brito só foi interrompida pela renúncia do Presidente Jânio Quadros. Depois de Nélson Rodrigues, é sumamente importante a aparição, no início da década de 60, do Teatro de Arena. Principalmente com Eles não usam Black-Tie de Gianfrancesco Guarnieri, esse grupo teatral revigora os temas da dramaturgia brasileira, aparentando-a aos esforços de Joan Littlewood com seu teatro dirigido aos proletários e falando de seus problemas, dentro de um contexto consciente e inteligentemente nacional. Mais tarde, o Teatro de Arena enveredaria pelas montagens de dramas musicados (Arena conta Zumbi, Arena conta Tiradentes), fórmula que o Teatro Universitário da Universidade Católica de São Paulo tornaria célebre com sua esplêndida montagem de Vida e Morte Severina. Nesta adaptação para o teatro dos versos do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, com músicas de Chico Buarque de Holanda, o TUCA levantaria o cobiçado troféu de Nancy, na França, como melhor grupo teatral internacional no Festival de 1960.
Se Nélson Rodrigues dominou parte da década de 50, a década sucessiva pertence nitidamente a Jorge de Andrade. O dramaturgo paulista (nascido em Barretos, na zona agropecuária do Estado) também obteve sucesso mundial notadamente com sua peça Vereda da Salvação, em cartaz em vários meses em Varsóvia, Buenos Aires e em meios universitários africanos. Essa tragédia comovente de um bando de lavradores paupérrimos do interior de Minas, convertidos a seitas religiosas fanáticas, atingiu na encenação de Antunes Filho, com Cleyde Yaconis e Raul Cortez nos papéis principais um dos pontos mais altos do teatro nacional. Mas são igualmente importantes suas peças que focalizam a decadência da aristocracia rural do café em Moratória ou que analisam o esfacelamento da classe média proletarizada em A Escada, sem esquecer sua comédia arguta sobre a aristocracia autóctone que se liga a imigrantes italianos endinheirados, Os Ossos do Barão.
Apelando também para assuntos regionais, o paraibano radicado em Recife, Ariano Suassuna sagrou-se o maior sucesso popular do teatro brasileiro dos últimos tempos com seu hilariante Auto da Compadecida. Radicado no Nordeste dos cangaceiros, dos sertanejos ardilosos, da fé pura na intervenção miraculosa de Nossa Senhora nos momentos de extrema necessidade, esse auto de inspiração ibérica, nos autos portugueses e espanhóis do fim da era medieval e início do Renascimento quinhentista, percorreu vários países também, da França à Polônia, do México à Itália. Recentemente, uma companhia teatral montou, a pedido expresso do público, outra comédia do autor nordestino, A Santa a Porca. Também do Norte do país vem o maranhense Francisco de Andrade, com O Chapéu do Sebo e O Cristo Crucificado, com uma sensibilidade excepcional para os problemas rurais do fanatismo religioso em torno do Padre Cícero, para o fenômeno do banditismo sertanejo e para a imobilidade social do interior nordestino, sempre com uma aura de força e poesia extraordinárias dentro da dramaturgia brasileira.
Nos últimos anos, graças ao diretor paulista José Celso Martinez, do Teatro Oficina, procedeu-se a uma redescoberta de Oswald de Andrade, o enfant terrible do Movimento Modernista de 1922, como dramaturgo. O Rei da Vela, embora seja um texto desigual, coloca em cena toda a verve tropicalista e antropofágica do autor de Pau Brasil e sua importância como fermento agitador da pasmaceira teatral que sufocava o Brasil em sua época, bem como de sua militância política contra o golpe fascista do “Estado Novo” de Getúlio Vargas desfechado em 1937.
Na última década, a dramaturgia brasileira vem se caracterizando pelo surgimento de jovens autores sumamente interessantes: o mineiro José Vicente com O Assalto – um contínuo e um bancário dialogam sobe a justiça da propriedade, do roubo com um paroxismo final violento -, o paulista Antônio Bivar com Alzira Power – uma solteirona e sem amante reduzidos à ruína da satisfação sexual paga com um artigo comercial que se adquire – a paulista Leilah Assumpção com Fala Baixo senão eu Grito – uma solteirona vê seu mundo “quadrado e direitinho” desmoronar ante a invasão de seu modesto quarto de pensão por um assaltante noturno. Destacando-se desse grupo o santista Plínio Marcos irrompe com Dois Perdidos Numa Noite Suja, baseado num conto de Alberto Moravia, um relato fascinante sobre dois marginais que lutam até à morte pela preservação de sua dignidade e pela posse de um par de sapatos. Plínio Marcos cria outra obra marcante com Navalha na Carne: um triângulo sórdido formado por uma prostituta, seu cafetão e um homossexual ladrão com suas vidas presas a um vazio não-ser, peças movidas num xadrez social que as torna passivas e dependentes. Em sua última fase, Plínio Marcos deixou o enfoque social do desemprego de Quando Param as Máquinas para localizar num terreiro de candomblé baiano uma história de amor contrastado e que não se realiza, vitimado por conflitos e preconceitos de um meio estreito. Com exceção de Plínio Marcos, a dramaturgia mais jovem do Brasil parece trilhar o caminho exemplificado pelo Zoo Story de Edward Albee: o confronto direto, cara a cara, entre uma concepção burguesa da vida e um conceito hippie, anárquico, violento e poético, mas intrinsicamente caótico e perigoso na sua ausência de regras ou objetivos.
Com O Assalto com estreia marcada em Paris proximamente, com as montagens do Teatro de Arena sendo saudadas com elogios entusiastas pelos jornais underground de Nova York, o teatro brasileira integrou-se na corrente mundial do seu tempo e tornou-se adulto, não mais recebendo apenas, mas já contribuindo qualitativamente para o diálogo internacional entre as produções teatrais da “Aldeia tribal mundial” que as comunicações eletrônicas devolveram à família humana espalhada por todos os continentes e todos os estágios da evolução social, cultural e político-econômica do mundo contemporâneo.
Reuso
Citação
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