A silenciosa revolução de Clarice

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1987-12-12. Aguardando revisão.

A criação literária de Clarice Lispector soava como alguém que insistisse em tocar um Impromptu de Schubert em meio a um comício: o plano abafado pelas palavras de ordem dos partidos políticos a se esgoelarem na praça. A princípio, alguns que se julgavam sábios meneavam a cabeça, céticos: “É uma impostora”. Outros duvidavam de forma menos hostil, quase como uma desculpa: “Deve ser uma mulher fútil, que escreve pois não tem o que fazer”. E por último, em coro, o arrazoado final: “É uma estrangeira linda, por onde passa os homens se inclinam diante dessa femme fatale exótica, russa, clara, de cabelos ruivos, olhos de gata no cio, distante, requintada, tropeçando nos”r” como uma gringa recém-chegada”.

De fato, não poderia haver maior contraste entre os livros que se sucediam daquela pernambucana casada com um diplomata e o clima do Brasil em meados da década de 40, quando começou a publicar, causando surpresa e maledicência, estupor e maravilha, Perto do Coração Selvagem. O Brasil ainda era uma vasta província, a IIa Guerra Mundial se aproximava do fim e a ditadura fascista de Vargas também estava em sua undécima hora. A indústria editorial engatinhava, mal; a influência francesa em nossa paroquial intelectualidade era decisiva. A Semana de Arte Moderna? Um coaxar de sapos irreverentes no Teatro Municipal de São Paulo, aparentemente sem sequelas e importadora tardia de cubismos e dadaísmos já arcaicos na Velha Europa.

Vigorosa, realista até ao extremo do naturalismo, sem se deter nos pormenores mais repugnantes da física condição humana, a literatura social do Nordeste dominava, soberana, espraiando-se como influência marcante no movimento do romance neo-realista de Portugal, de oposição marxista e nati-morta ao jugo pétreo de Salazar.

O que fazia aquela moça de nome arrevesado, de voz nordestina elegante, sem nada da morenice tradicional no Brasil, com seus temas intimistas - crianças, bichos, velhos, empregadas? Graciliano Ramos descrevia com objetividade feroz, sem emocionalismos, o horror até hoje imutável da estrutura feudal nordestina: os retirantes maltrapilhos, famélicos, os usineiros insensíveis à injustiça que tangia para o Sul próspero do País “os fortes do Norte que vêm” em levas crescentes. José Lins do Rego evocava, com um misto de sabor acre e lirismo, os meninos do engenho, suas iniciações sexuais cruas com negrinhas no eito; José Américo simbolizava em A Bagaceira o massacre dos miseráveis, tornados bagaço inútil pela máquina de moer indiferentemente cana ou gente. Rachel de Queiroz em seu libelo flamejante, precoce, O Quinze, reveleva toda a caratonha medonha da fome de velhos, crianças de colo, adultos na retirada dos flagelados, desorientados, sem assistência de qualquer governo, comendo lagartos, raízes, em meio ao gado morto, os esqueletos pululando de vermes e moscas sob um sol inclemente.

Esquece-se muitas vezes, é verdade, que um dos romances de Graciliano Ramos, Angústia, se ambientava no Rio de Janeiro e tratava de neuroses que o Partidão (o Parido Comunista do Brasil) considerava “chiliques de burgueses entediados”. Mas Clarice Lispector apresentava um mundo miniaturesco, doido de angústia, de marginalidade. Era um acordo inteiramente novo na literatura brasileira. Ana, gostosamente acomodada numa felicidade doméstica de marido, filhos e compras, de repente depara com um cego masclando chicletes no ponto do bonde. E de sopetão seu mundo arrumadinho, protegido, desmorona. Ela se aliara aos “fortes”, issto é: a aqueles que viravam o rosto quando viam o cego e seu desamparo. “Não tenho nada com isto” e prosseguiam, impávidos, suas vidas egoístas. Mas a felicidade dela ruíra para sempre: instalara-se nela a noção de que nada, jamais, fizera por amor ao próximo. Vivera dentro de uma estufa colorida, perfumada, irreal. Ironicamente, o conto se chama “Amor”.

Como se este acinte aos bem-pensantes não bastasse, na história curta intitulada “Feliz Aniversário” o sagrado altar da Família com F maiúsculo é revelado em sua hipocrisia e sua mentira. Em torno à velha que comemora “aquela data querida” em meio a balões murchos, bolos que atraem as moscas importunas, eclode a guerra surda dos parentes do subúrbio e os do bairro chic, Ipanema, no Rio de Janeiro: frases contundentes, silêncios, mostras de ostentação de dinheiro, rivalidades, ódios, uma farsa armada em torno do traste que uma vez por ano reunia em torno a si aquela manada de feras amansadas só para aquela ocasião de falsa confraternização. A alegria era então um circo provisório, armado com máscaras para a ocasião: as noras “boazinhas”, os netos “bem comportados”, todos unidos por uma afeição de 24 horas de fingimento: quem sabe é nosso último sacrifício, no ano que vem o trambolho irascível, a velha aniversariante, já morreu e cumpriu sua única função: deixar-lhes a herança e em paz?

E que dizer de um livro tão estapafúrdio quanto A Legião Estrangeira, de 1964? Já não bastava, em 1956, um tal de Guimarães Rosa ter deixado o Brasil inteiramente sem bússola com seu inclassificável Sagarana? Em A Legião Estrangeira, Clarice Lispector, para muitos, merecia o diagnóstico de “farsante” ou “louca”. Escreve um conto chamado “O OVo e a Galinha” e não é que ousa discorrer sobre o ovo, um banal ovo de cozinha, páginas a fio? Triunfantes, os mesmos que investiram sobre os versos de “havia uma pedra no meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, alinhavam as frases sobre o ovo e indagavam: “Não é coisa de louca varrida”?

“Ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe”.

“Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos”.

“Ao ovo dedico a nação chinesa”.

“A Lua é habitada por ovos”.

“O ovo nunca lutou. Ele é um dom”.

“De ovo a ovo chega-se a Deus”

“O ovo finge ser foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. Ovo por enquanto será sempre revolucionário”.

“O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado fruto da mais penosa espontaneidade”.

Até o parágrafo final:

“… Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de viver apenas a minha vida e de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então - livre, delicado, sem mensagem alguma para mim - talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até à cozinha. Ilumminando-a de minha palidez”.

Clarice Lispector era uma cena de Tchekov em meio a uma peça de Gorki sobre os miseráveis. Havia os que irreverentes, cacarejavam quando se dizia seu nome: “A escritora da galinha e do ovo? Cocoricó!” E abanavam asas ficitícias em meio a gargalhadas. Mas nem todos eram leitores patuscos, como diria Machado de Assis. Havia os que captavam plenamente os exercícios labirínticos de misticismo, de metafísica e de um estilo perfeito, musical, solene sem pedantismo, daquela extrema novidade. O ovo como arquétipo indecifrável da vida. O ovo como origem da vida e irrevelada doação e “alma” da galinha. O ovo como a célula mater à imagem do qual Deus fez o homem, o ovário da mulher, o ovo como verdade primeira depois de fecundado, a conter em si mistérios, religiosos talvez, talvez a metafísica que a filosofia do Ser aqui e agora que o filósofo Heidegger propunha em seus abissais, enigmáticos pensamentos. O conto era uma construção de interrogações sem resposta como o Castelo de Kafka.

Clarice Lispector, indiferente à “glória” do panteão literário pátrio, ousava mais e mais perante uma plateia, hostil ou extasiada, mas sempre aturdida. Muitos comeaçaram a imitar seu estilo com resultados previsivelmente desastrosos. Como repetir os ingredientes de uma primeira frase tão original e inédita como:

“Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.”

Ou o início que prende o leitor inexoravelmente e que os ingleses chamam de arresting beginning:

“Era uma velha sequinha, que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação:

As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:

A não ser os naturalistas franceses, ninguém falara, por exemplo, de baratas em literatura, a não ser para deplorar o lixo e a esqualidez da miséria aviltante. Clarice Lispector começa um conto quatro, cinco vezes, diante do leitor surpreso, contando sobre o remédio que uma conhecida lhe ensinou, infalível contra as baratas. As versões da mesma matança das baratas se chamam “As Estátuas”, ou “O Assassinato” ou “Como Matar Baratas”. Numa delas ela mistura o relato oral com os típicos meandros da sua interrogação a respeito de uma realidade transcendental, como que se pondo no lugar da barata e apiedando-se de sua morte em meio a estertores cruéis:

“A terceira história que ora se inicia é a das”Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que diatancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras, dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de uma um pouco de comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, seu da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intendificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras - subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! - essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te… Elas, que, usando o nome do amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá advinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça do gratuita do em vão: “é que eu olhei demais para dentro de mim! É que olhei demais para dentro de…”- de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo”.

A esquerda stalinista ou maoísta no Brasil sempre cobrou de Clarice Lispector uma posição política, como só recentemente perdoou a Pelé ter dito que “o povo brasileiro não sabe votar”. Em inúmeras crônicas a escritora pernambucana já deixara claríssima sua posição de inconformismo com a miséria, a injustiça social gritante, o o sofrimento de milhões e milhões de brasileiros acossados pela fome, pela doença, pelo pauperismo, pela exploração pura e simples. Como que à força, seu último romance - A Hora da Estrela - trata, a meu ver artificialmente, da vida baça de uma nordestina perdida no Rio de Janeiro e foi rapidamente transformada em filme de cinema, com que resultados não pude aferir ainda. Trata-se de uma estupidez arrematada. Como exigir de um escritor a carteirinha de “A Favor dos Favelados e Injustiçados do Brasil”, com carimbo do Lula, do Brizola, de Jair Meneguelli, do Joaquinzão e outros que tais?!

Clarice Lispector tratou também, obsessivamente, da fome espiritual, da angústia existencial, fome que devora a alma como a subnutrição mina o estômago. Uma precoce feminista, uma precursora sutilíssima da discriminação imposta aos velhos, trambolhos asquerosos, uma autora voltada para a opacidade da vida das empregadas, para a minoridade que, como canga, se ata ao pescoço das crianças, consciente da “outra dimensão” em que vivem, validamente, os bichos. Nada disso tem importância para os rinocerontes que querem ver tais problemas tratados como “secundários em relação à Causa (com maiúscula) da Revolução Armada”. Paredón para a sensibilidade, campo de concentração para quem não escrever loas ao Povo, à Democracia que coloca grilhões totalitários no mesmo Povo “liberado” da Coréia do Norte a Cuba abarrotada de prisioneiros políticos diariamente, minuciosamente torturados, enquanto a perestroika é uma mera palavra, tão fascinante quanto uma Raíssa Gorbatchóv a faiscar com toilettes chiquíssimas de Paris e Nova York.

E - pecado imperdoável! - Clarice Lispector fala sempre de amor, e - horror dos horrores - de Deus. A autêntica Revolução, também com maiúscula, que ela trouxe sozinha para a literatura brasileira, como uma lúcida Rosa de Luxemburgo oposta ao terrorismo de Lênin, ela no conto ou na crônica para jornal é uma artista universal, palpitante de dúvidas, de busca, de sofrimento e solidão. Quanto mais se conhece a sua criação tão frequentemente perfeita mais a sua perenidade se afirma, independentemente dos anos ou séculos que a ela se sucedam.

Obviamente Clarice Lispector teve insuspeitos aliados na instauração de uma literatura contemporânea no Brasil: Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Dalton Trevisan e hoje em dia João Antônio e Hilda Hilst, cada um à sua maneira. Bastaria porém ao leitor não massificado por slogans ideológicos ler ou reler o que ela chama de “Estado de Graça - Trecho” para aquilatar a sua grandeza infensa ao passar do Tempo:

“… No estado de graça vê-se a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe - pessoa ou coisa - respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. A verdade do mundo é impalpável.”

Não é de longe o que mal imagino deve ser o estado de graça dos santos. Este estado jamais conheci e nem sequer consigo advinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que se torna totalmente real porque é comum e humana e reconhecível…

Também é bom que o estado de graça demore um pouco. Se durasse muito, bem sei, eu que conheço minhas ambições quase infantis, eu terminaria tentando entrar no mistérios da Natureza. No que eu tentasse, aliás, tenho a certeza de que a graça é apenas uma pequena abertura para uma terra que é uma espécie de calmo paraíso, mas não é a entrada nele, nem dá o direito de se comer dos frutos de seus pomares.

Sai-se do estado de graça com o rosto liso, os olhos abertos e pensativos, e, embora não e tenha morrido, e como se o corpo todo viesse de um sorriso suave. E sai-se melhor criatura do que se entrou. Experimentou-se alguma coisa que parece redimir a condição humana, embora ao mesmo tempo fiquem acentuados os estreitos limites dessa condição. E exatamente porque depois da graça a condição humana se revela na sua pobreza implorante, aprende-se a amar mais, a perdoar mais, a esperar mais. Passa-se a ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes intoleráveis.

Há dias que são tão áridos e desérticos que eu daria anos de minha vida em troca de uns minutos de graça”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1987) 2022. “A silenciosa revolução de Clarice .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.