Conheça este novo escritor do século passado

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1969/10/13. Aguardando revisão.

Enquanto se iniciava a guerra do Paraguai, um gaúcho de uma cidadezinha quase anônima, Vila de Triunfo, às margens do rio Jacuí, era mandado à Capital do Império, o Rio de Janeiro, naquele Anno de Nosso Senhor Jesus Christo de 1864. Seus vizinhos e conhecidos em Porto Alegre e até sua família sofriam com seus ataques constantes de tresleucada insanidade mental.

José Joaquim de Campos Leão, de fato, inaugurara os 40 anos de idade com manias estranhas: que os homens estavam transgredindo as normas de Deus, impedindo as relações naturais que a liberdade sexual pedia; que ele, como espírito profundamente religioso, passaria a se assinar Corpo Santo. Ou melhor: Qorpo Santo, porque inventara uma Reforma Ortográfica radical: eliminação do U mudo, precedido de Q como em Quem, eliminação do C, que seria S quando suave e Q quando forte, daí assinar-se Qorpo Santo.

Mais esquisitices fazia ainda: conseguira, sabe Deus como, fazer-se nomear Delegado de Polícia, dedicara-se ao magistério, até proprietário de um Colégio se tornara! Rebelde contra os jornais da Província de São Pedro do Sul, que recusavam, com gargalhadas ou temor, seus artigos, comprara uma tipografia e nela passou a imprimir tudo o que escrevia quando a cabeça começava a ferver-lhe: dramas principalmente.

Os médicos da Corte divergiram na sua opinião: para uns o gaúcho sofria de monomania, para outros faltavam-lhe distrações e amigos, mas o laudo final o declarava incapaz de gerir sua própria vida e seus bens.

Mas mesmo nos quartos em que o confinavam nos hospícios cariocas, aquele professor de cabelos castanhos, olhos azuis, barbudo e de estatura regular não parava de escrever, preparando até uma Enciclopédia que resu misse o comportamento humano: Enciclopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade.

Só um século depois, unr professor universitário mineiro, Guilhermino César, transferido para Porto Alegre, resolveu investigar cuidadosamente a lenda Qorpo Santo de que ouvira falar com risos e interjeições de espanto. Com muita dificuldade, encontrou um exemplar carcomido da Enciclopédia e passou a estudá-lo sob o ponto de vista literário. O que resultou passou logo a interessar os jovens atores e diretores de teatro de Porto Alegre e também a Faculdade de Filosofia, que se prontificou a financiar a primeira edição das obras estranhas daquele personagem singular.

Como nos monólogos de Don Quixote diante de um Sancho Pança boquiaberto, misturam-se trechos de locura com trechos de profunda apreensão do comportamento humano: em meio aos disparates surge um reformador social delirante, que se aproxima do anarquismo hippie atual.

A base de todas as reformas é a libertação da opressão moral que pesa sobre o sexo, sua obsessão quase exclusiva. Qorpo Santo prega as relações naturais, isto é: no plano erótico é válido tudo que for aceito pelos participantes. Nem os padres escapam às relações naturais, por isso seu celibato é condenado: os próprios sacerdotes só se realizarão integralmente no desempenho de sua missão se seguirem sadiamente o casamento e as leis das relações naturais.

Qorpo Santo mistura sempre observações filosóficas próprias. Assim, justificando sua forma de Ortografia Nacional, ele reflete: “A civilização moderna ensinou-nos que ela é mais devida à derrubada de erros antigos que a descoberta de verdades novas”. Mistura sua cruzada ortográfica com o combate aos inimigos do Império e coloca nas falas de seus personagens a defesa de sua reforma, como o protagonista Ruibardo, na sua comédia O Parto:

Ruibardo – “Eu me explico: Quando escrevo, penso, e precuro conhecer o que é necessário, e o que não é; e assim como, quando me é necessário gastar cinco, per exemplo, não gasto seis, nem duas vezes cinco, assim também quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império da Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um por cima do outro! Que homem, duas calças?! Quem põe dois chapéus para cobrir uma só cabeça?! Quem usará ou que militar trará à cinta duas espadas! Eis porque também muitas vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a razão é - assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que tais palavras se derivam, mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais fácil e cômodo a todos?! Finalmente, fixemos a nossa língua e não nos importemos com as suas origens!”

Até a imprensa mereceu seu interesse. Como um Moisés da palvra impresa, Qorpo Santo escreveu um Decálogo do Jornalista, comparando a missão do redator com uma “das mais sublimes que se pode exercer sobre a Terra”, semelhante à do ministro que tenta pegar “as ovelhas desgarradas do aprisco” ou ao general que “prepara seus soldados, enche-os de um santo amor pela causa que defendem, estende suas linhas de bataina, e de espada em punho avança por entre as ostes inimigas, e lança por terra tudo quanto se the opõe!”.

Esse monarquista convicto, esse conservador progressista que sabia administrar tão bem seus bens que deixou vultosa fortuna à viuva e aos filhos, e na realidade fundou - um século antes de Ionesco na França de hoje - o teatro do absurdo, antecedendo-se até a Alfred Jarry, autor de Ubu Rei. Suas comédias - que muitas vezes deixa sem terminar não têm nexo lógico, redundam em piadas ou em tragédias. Têm uma liberdade absoluta de temas, predominando, porém, a fantasia e sua fixação pelas coisas do sexo. Tudo envolto num anseio místico, uma saudade de Deus que lembra os textos mais delirantes de Jean Genet, aliando a violência, o assassinato e o êxtase religioso, ou filmes de Buñuel fundindo mendigos, sujeira, sexo e liturgias católicas, símbolos do Cristianismo celebrando uma missa pagã da luxúria.

A família e o bordel, a devassidão e a santidade, o homossexualismo e o culto do machismo - tudo desfila neste retrato aloucado, mas em certos momentos inquietantemente lúcido e certeiro da sociedade brasileira de meados de 1800.

Quem lê com atenção estas comédias alternadamente terríveis, absurdas, chocantes e moderníssimas descobre que Qorpo Santo revoluciona todo o nosso teatro mais ainda: força a uma revisão do próprio teatro do absurdo francês de nossos dias, que em certos pontos empalidece diante da audácia desse gaúcho desconhecido um genial e manso louco do Guaíba dos tempos do Brasil pacato do Império.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Conheça este novo escritor do século passado .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.