Conheça este novo escritor do século passado
Enquanto se iniciava a guerra do Paraguai, um gaúcho de uma cidadezinha quase anônima, Vila de Triunfo, às margens do rio Jacuí, era mandado à Capital do Império, o Rio de Janeiro, naquele Anno de Nosso Senhor Jesus Christo de 1864. Seus vizinhos e conhecidos em Porto Alegre e até sua família sofriam com seus ataques constantes de tresleucada insanidade mental.
José Joaquim de Campos Leão, de fato, inaugurara os 40 anos de idade com manias estranhas: que os homens estavam transgredindo as normas de Deus, impedindo as relações naturais que a liberdade sexual pedia; que ele, como espírito profundamente religioso, passaria a se assinar Corpo Santo. Ou melhor: Qorpo Santo, porque inventara uma Reforma Ortográfica radical: eliminação do U mudo, precedido de Q como em Quem, eliminação do C, que seria S quando suave e Q quando forte, daí assinar-se Qorpo Santo.
Mais esquisitices fazia ainda: conseguira, sabe Deus como, fazer-se nomear Delegado de Polícia, dedicara-se ao magistério, até proprietário de um Colégio se tornara! Rebelde contra os jornais da Província de São Pedro do Sul, que recusavam, com gargalhadas ou temor, seus artigos, comprara uma tipografia e nela passou a imprimir tudo o que escrevia quando a cabeça começava a ferver-lhe: dramas principalmente.
Os médicos da Corte divergiram na sua opinião: para uns o gaúcho sofria de monomania, para outros faltavam-lhe distrações e amigos, mas o laudo final o declarava incapaz de gerir sua própria vida e seus bens.
Mas mesmo nos quartos em que o confinavam nos hospícios cariocas, aquele professor de cabelos castanhos, olhos azuis, barbudo e de estatura regular não parava de escrever, preparando até uma Enciclopédia que resu misse o comportamento humano: Enciclopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade.
Só um século depois, unr professor universitário mineiro, Guilhermino César, transferido para Porto Alegre, resolveu investigar cuidadosamente a lenda Qorpo Santo de que ouvira falar com risos e interjeições de espanto. Com muita dificuldade, encontrou um exemplar carcomido da Enciclopédia e passou a estudá-lo sob o ponto de vista literário. O que resultou passou logo a interessar os jovens atores e diretores de teatro de Porto Alegre e também a Faculdade de Filosofia, que se prontificou a financiar a primeira edição das obras estranhas daquele personagem singular.
Como nos monólogos de Don Quixote diante de um Sancho Pança boquiaberto, misturam-se trechos de locura com trechos de profunda apreensão do comportamento humano: em meio aos disparates surge um reformador social delirante, que se aproxima do anarquismo hippie atual.
A base de todas as reformas é a libertação da opressão moral que pesa sobre o sexo, sua obsessão quase exclusiva. Qorpo Santo prega as relações naturais, isto é: no plano erótico é válido tudo que for aceito pelos participantes. Nem os padres escapam às relações naturais, por isso seu celibato é condenado: os próprios sacerdotes só se realizarão integralmente no desempenho de sua missão se seguirem sadiamente o casamento e as leis das relações naturais.
Qorpo Santo mistura sempre observações filosóficas próprias. Assim, justificando sua forma de Ortografia Nacional, ele reflete: “A civilização moderna ensinou-nos que ela é mais devida à derrubada de erros antigos que a descoberta de verdades novas”. Mistura sua cruzada ortográfica com o combate aos inimigos do Império e coloca nas falas de seus personagens a defesa de sua reforma, como o protagonista Ruibardo, na sua comédia O Parto:
Ruibardo – “Eu me explico: Quando escrevo, penso, e precuro conhecer o que é necessário, e o que não é; e assim como, quando me é necessário gastar cinco, per exemplo, não gasto seis, nem duas vezes cinco, assim também quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império da Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um por cima do outro! Que homem, duas calças?! Quem põe dois chapéus para cobrir uma só cabeça?! Quem usará ou que militar trará à cinta duas espadas! Eis porque também muitas vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a razão é - assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que tais palavras se derivam, mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais fácil e cômodo a todos?! Finalmente, fixemos a nossa língua e não nos importemos com as suas origens!”
Até a imprensa mereceu seu interesse. Como um Moisés da palvra impresa, Qorpo Santo escreveu um Decálogo do Jornalista, comparando a missão do redator com uma “das mais sublimes que se pode exercer sobre a Terra”, semelhante à do ministro que tenta pegar “as ovelhas desgarradas do aprisco” ou ao general que “prepara seus soldados, enche-os de um santo amor pela causa que defendem, estende suas linhas de bataina, e de espada em punho avança por entre as ostes inimigas, e lança por terra tudo quanto se the opõe!”.
Esse monarquista convicto, esse conservador progressista que sabia administrar tão bem seus bens que deixou vultosa fortuna à viuva e aos filhos, e na realidade fundou - um século antes de Ionesco na França de hoje - o teatro do absurdo, antecedendo-se até a Alfred Jarry, autor de Ubu Rei. Suas comédias - que muitas vezes deixa sem terminar não têm nexo lógico, redundam em piadas ou em tragédias. Têm uma liberdade absoluta de temas, predominando, porém, a fantasia e sua fixação pelas coisas do sexo. Tudo envolto num anseio místico, uma saudade de Deus que lembra os textos mais delirantes de Jean Genet, aliando a violência, o assassinato e o êxtase religioso, ou filmes de Buñuel fundindo mendigos, sujeira, sexo e liturgias católicas, símbolos do Cristianismo celebrando uma missa pagã da luxúria.
A família e o bordel, a devassidão e a santidade, o homossexualismo e o culto do machismo - tudo desfila neste retrato aloucado, mas em certos momentos inquietantemente lúcido e certeiro da sociedade brasileira de meados de 1800.
Quem lê com atenção estas comédias alternadamente terríveis, absurdas, chocantes e moderníssimas descobre que Qorpo Santo revoluciona todo o nosso teatro mais ainda: força a uma revisão do próprio teatro do absurdo francês de nossos dias, que em certos pontos empalidece diante da audácia desse gaúcho desconhecido um genial e manso louco do Guaíba dos tempos do Brasil pacato do Império.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Conheça este novo escritor do século passado},
booktitle = {Aspectos do Teatro Contemporâneo},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {11},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-11/05-a-realidade-brasileira-nelson-rodrigues-e-dois-outros/00-conheca-este-novo-escritor-do-seculo-passado.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1969/10/13. Aguardando revisão.}
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