Guimarães Rosa 25 anos de veredas
Nunca, no Brasil, ninguém ousara tanto. Pois não é que naquele calmo ano de 1946, apeado o ditador Getúlio Vargas de seu trono absolutista e vencidos os nazi-fascistas na Europa e no Pacífico, um desconhecido ousava começar um livro de título já complicado, Sagarana, com a descrição minuciosa de uma carga de bois no interior de Minas Gerais sendo embarcados nos trens rumo aos matadouros?
“Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastreação de chifres. E comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças plebeias dos campos-gerais, do Urucúia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios, vermelhos, rosilhos, barrosos, alaranjados; castanhos tiantirando a rubros; pitangas, com longes pretós; betados, listrados, versicolores; turinos, marchetados com polinésias bizarras; tartarugas variegadas; araçás estranhos com estrias concêntricas no pelame – curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavradas ou faces talhadas em granito impuro.”
A revolta foi imediata. Alguns escritores e poetas medíocres sentiam-se ultrajados: aquelas parolices não significavam nada, estava o autor querendo os inteligentes passarem por idiotas! A revista Leitura, publicada no Rio de Janeiro, decidiu aclarar a questão doze anos mais tarde, quando já se tinham publicado um segundo e um terceiro livro do autor tão insólito, um médico, transformado em diplomata, de Minas, de nome João Guimarães Rosa. A Leitura dedicou várias páginas à questão: “Escritores que não conseguem ler Guimarães Rosa”, que já publicara além do ilegível Sagarana, dois absurdos em 1956: Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. O romancista baiano super-acadêmico, Adonias Filho, afeito a romances tradicionais e “regionais” no pior sentido do termo, sentenciou dramático: “A obra de Guimarães Rosa é um equívoco literário que precisa ser desfeito”, aliando-se aos escritores que não aguentavam ler o contista e romancista mineiro: o poeta Ferreira Gullar, o repórter Joel Silveira, além de nomes que não resistiram nem a uma década de prestígio literário e hoje são meros acúmulos de sons para quem os lê: Marcos Carneiro de Mendonça, J. Guimarães Menegale, Ascendino Leite, Barbosa Lima Sobrinho, Aderson Magalhães…
Para os espíritos argutos, porém, desde cedo se soube que a obra de Guimarães Rosa vinha colocar a literatura brasileira no mesmo nível qualitativo de arrojo na conquista de novas formas de dizer que na Europa tinham obtido, na Itália Carlo Emilio Gadda, que inaugurara uma literatura fascinante, baseada no dialeto de Roma no seu livro Quer Pasticciaccio brutto de via Merulana; James Joyce com Ulisses, incorporando técnicas novas como a associação livre de palavras em monólogos interiores e em Finnegan’s Wake com a criação de neologismos quase indecifráveis; Proust e a sua recuperação do Tempo e sua durabilidade através da recordação e da arte; Virgínia Woolf e sua forma, influenciada pela pintura impressionista francesa, de captar os personagens mutáveis conforme os acontecimentos que incidem sobre eles, à semelhança dos montes de palha transformados pela luz cambiante pintados por Manet.
O Brasil era ainda demasiado inculto e despreparado para aquele terremoto de palavras que se instaurara no meio de tertúlias literárias amenas, associações de admiração mútua e academias de letras aprazíveis, inúteis e sonolentas. Mesmo assim, a inteligência e a sensibilidade artística de Sérgio Milliet, de Tristão de Ataíde, de Afonso Arinos e do crítico português Adolfo Casais Monteiro viram naquele livro “A revolução mais importante na literatura brasileira depois de Mário de Andrade”.
Guimarães Rosa era complexo demais para quem estava acostumado à rotina literária romântica ou naturalista, tudo claramente pré-digerido. Estavam na moda, nos almoços da confeitaria Colombo, os romances hoje grotescos de Coelho Neto que falavam de um sertão tão remoto e visto tão de binóculos, da praia do Flamengo, que eram uma soma de adjetivos empolados, catados nos dicionários e que empanavam a visão do leitor. A literatura se confundia com a retórica e o leitor estava acostumado a exclamar: “Bonito!” depois de cada frase oca de sentido, mas que ostentava um palavrório pseudoculto e altissonante.
Pois se nem os dois Apóstolos da revolução estética de 1922, aquela tomada da Bastilha paulistana do bem-pensar e do esteticismo caduco da Semana de 1922 empreendida pelos dois Andrades: o irreverente Oswald e o erudito Mário, tinham sido apreciados pelos que cultuavam os versos que rimavam “dor” com “amor” e a “alegria” com a “fidalguia”!
Hoje, passados 25 anos da publicação ruidosa de Grande Sertão: Veredas, os ânimos serenaram-se. Não se passou um ano destas duas décadas e meia sem que se publicasse, no Brasil e no estrangeiro, um trabalho profundo, pormenorizado, sobre este ou aquele aspecto da obra rosiana, em toda a sua múltipla complexidade. A voz da minoria lúcida que anteviu na sua incursão a criação de uma fronteira nova para o dizer no Brasil e no mundo da língua portuguesa somou-se a admiração serena e imponente do maior escritor mexicano do século: Juan Rulfo, que reconhece no autor mineiro “o gênio literário mais perfeito das três Américas”. Na Alemanha sucedem-se as tiragens de Grande Sertão feitas por Curt Meyer-Clason. Nos Estados Unidos cogita-se seriamente de uma nova tradução, reconhecendo-se que a anterior de Harriet de Onis, faz parte dos crimes literários mais atrozes de todos os tempos.
Foi, porém, na Itália que Guimarães Rosa teve o seu tradutor mais perfeito: O admirável Edoardo Bizzarri, adido cultural italiano em São Paulo durante longo tempo. Na semana que vem, o Instituto Cultural Italiano paulistano relança, em segunda edição, a curiosíssima correspondência entre Guimarães Rosa e seu magnífico tradutor romano. São dezenas ou centenas de cartas, bilhetes, mensagens rápidas, que contêm esclarecimentos pormenorizados do autor a seu tradutor: explicações sobre flores do sertão, com a indicação da sua designação latina, são desenhos explicando graficamente como são os chifres de determinadas raças de bois encontradiças nos sertões de Minas, da Bahia e Goiás. Além de sugestões pessoais com relação aos neologismos criados, muitos vezes por onomatopéia, querendo reproduzir por meio de vogais e consoantes o voo de uma ave, um estado de espírito, um gesto.
Hoje, 25 anos depois de publicado, Grande Sertão: Veredas não causa mais celeuma: seria impossível negar a sua grandeza atemporal e múltipla: a criação de todo um mundo mítico e místico, a coexistência de vários planos simultâneos da linguagem: como mensagem ocultista cifrada, esotérica, aó acessível aos iniciados e incompreendida pelo leigo; como formulação de uma área sonora inédita, segundo as tendências personalíssimas do autor: como recuperação de arcaísmos do século XVIII, que pululavam nas páginas dos clássicos quinhentistas de Portugal e sobreviveram, no linguajar popular, enquistadas em algumas cidadezinhas mineiras, ilhadas secularmente do mundo pela falta de comunicações e de estradas. Finalmente, Guimarães Rosa exigia do leitor o dom que menos distingue o leitor comum: imaginação, colaboração na criação de uma obra “aberta”, que deixa a quem lê a possibilidade de completá-la e sobretudo a necessidade de recorrer ao dicionário para elucidar termos da língua que um vocabulário diário de 300 a 500 palavras não comporta.
Vistas retrospectivamente, essas quase 600 páginas de Grande Sertão: Veredas comtinuam assombrando pela singularidade desse esforço único de orquestrar sem dissonância uma nova, mítica, concepção do nome e da nomeação, a par de uma utilização romântica de imagens, uma vigorosa contemplação da natureza, uma narrativa dinâmica de ações relatadas e uma exegese da vida humana como travessia mística rumo a Deus.
O cosmos de Guimarães Rosa é duplamente o do conceito e o da linguagem. O nome contém, para ele, a missão sacral, inalienável, de tornar reconhecível e inconfundível uma planta, um animal, uma pessoa, uma ação. Mas a estrutura sônica, o ritmo e a melodia também se associam como epifania ou maniefestação profana do Nome. Daí a importância da leitura oral de Guimarães Rosa: lendo-se em voz alta Grande Sertão: Veredas, como, aliás, qualquer livro seu, é que ficam claras as aliterações propositais, a métrica interior das frases, o ritmo e a musicalidade que nos permitem descobrir versos perfeitos, rimas interiores, palavras científicas, termos arcaicos ou regionais, palavras inventadas – tudo formando o mosaico esplêndido desse painel que é ao mesmo tempo uma epopeia, uma história de amor, um único monólogo e uma reflexão mística sobre Deus, o Fatalismo, o Diabo, o Mal, a transformação de todas as coisas em espiritualidade ascendente rumo à unio mystica com um Deus que não podemos compreender racionalmente, mas apenas pela Fé.
É inegável que em cada linha de Grande Sertão: Veredas (ou de Corpo de Baile), topamos com palavras à primeira vista indecifráveis. Mesmo o pesquisador Ney Leandro de Castro que tentou fazer um glossário vasto das palvras desconhecidas para o leitor e usadas por Guimarães Rosa, se engana: ele define o termo “estadonho” como “quem tem estado, domínio, admiração”. Guimarães Rosa corrigiu, em sua volumosa correspondência com seu inigualável tradutor italiano: “Estadonho quer dizer sem jeito, constrangido, não à vontade, mas por isso mesmo afetando áreas de autoridade ou imoprtância”. Da mesma forma, o termo “abocabaque” significaria, segundo o compilador, “à boca abaque, de boca caída, significando tolamente, à toa”. O autor precisou: trata-se da expressão latina ad hoc et ab hac, falar disto e aquilo. Muitas vezes, reconhece-se hoje, a escolha dos neologismos não obedece ao estrito bom gosto, mas roça num kitsch embaraçoso, quando por exemplo o autor inventa um personagem de nome estranho: Moimechego e que não passa da justaposição de sílabas que em línguas diferentes siginificam eu: moi em francês, me pronome oblíquo em italiano, espanhol e português, ich em alemão e ego em latim.
As dificuldades acrescem quando as palavras são tiradas do tupi-guarani, uma das 19 línguas (incuindo o sânscrito, o russo, o hebraico, o grego antigo, o latim, o inglês, o francês, o húngaro, o alemão, o italiano e outras) que Guimarães Rosa conseguia ler, com auxílio de dicionários. Na correspondência com Edoardo Bizzarri, por exemplo, anotam-se palavras insuperavelmente difíceis e que, com a distância que os 25 anos nos dão como perspectiva, muitas vezes empanam a clareza do texto, inutilmante:
Camocim – Grande pote de barro cozido, onde se guarda água de beber ou para os trabalhos de cozinha (termo tupi)
Ou através de designações específicas demais, circunscritas a um universo vocabular demasiado exíguo e remoto:
Muçuca – o mesmo que mucica: puxão com que os vaqueiros, vindo a galope, a cavalo, perseguindo uma rês, no emparelhar-se com ela seguram-na pela cauda (pela “vassoura”) e conseguem derrubá-la.
Ou ainda recuperando expressões latinas mantidas quase intactas nos quistos linguísticos imutáveis séculos a fio, dos vilarejos mineiros:
Bufúrdio – cavalhada, galopada, tropel e confusão. Mas, com conotação de luta. (Curioso: a palavra é usadíssima, no sertão: mas é palavra latina, encontrada bufurdius ou bufurdium, não me lembro bem nos dicionários latinos, com o sentido de: combate singular entre chefes).
Outras vezes, a palavra é tirada de línguas estrangeiras: “estarvoso” do inglês starvation, morrendo de inanição, ou grimo do inglês grim: carrancudo, severo, feio, horrendo, sombrio, em alemão: grimm: furioso, sanhoso, em dinamarquês grimme: feio. Eu quis captar o quid universal desse radical.
O Zambesão – inventei. Porque podia ser “um monstro africano” (de Zambeze, o rio, de nome sugestivo)
Delirantemente apaixonado por palavras, Guimarães Rosa percorria o interior do Brasil com um caderninho de notas preso por um arame ao pescoço e nele anotava sofregamente, as palavras que os vaqueiros usavam entre si ou quando contavam um caso, um sucedido. No México, conta Juan Rulfo, o autor brasileiro se divertia, anotando, do ônibus, os nomes das localidades indígenas: Guadalajara, Guanalato, Jalisco. Na Itália, obtinha catálogos telefônicos da Sicília e do Sul do país em geral para anotar os sobrenomes esquisitos: Antonio Sparafucile, Maria Passalacqua, Giuseppe Freddoinmano etc.
O que constitui outro obstáculo para uma compreensão imediata de Guimarães Rosa é o sentido oculto, esotérico que ele dá frequentemente às suas narrações. Assim, no conto “O Recado do Morro”, o percurso de um personagem, através de uma série de aparentemente inocentes fazendas mineiras, nada mais é do que uma alusão velada a uma viagem “de aspecto planetário ou de correspondências astrológicas que – Guimarães Rosa confessa a Edoardo Bizzarri – valeria a pena ser acentuadamente preservado, talvez. Ocorre nos nomes próprios, assinalamento onomástico-toponômico”, daí se derivando a esdrúxula e difícil alusão simbólica:
As fazendas visitadas na excursão:
Jove (Júpiter)
Dona Vininha (Vênus)
Nhô Hermes (Mercúrio)
Nhá Selena (Lua)
Marciano (Marte)
Apolinário (Sol)
Os companheiros de Pedro Orosio:
O Jovelino
O Veneriano
Zé Azougue
João Lualino
Martinho
Hélio Dias (nemes)
As alusões cultas ao filósofo neoplatonista Plotino, ao místico Ruysbroek a trechos do Inferno de Dante Alighieri, da Bíblia, de cerimônias de iniciação nas lojas maçônicas – tudo isso, é verdade, dificulta, às vezes desnecessariamente, o texto de Guimarães Rosa. Mas não há como escapar do reconhecimento de que Guimarães Rosa representa o Chaucer da nossa literatura. Ele foi aquele que instaurou um linguajar novo, inédito, que depois, com transformações, será o linguajar brasileiro divorciado completamente dos modelos lusitanos e já próximo daquela autenticidade e espontaneidade da fala brasileira que os modernistas de ’22 e Lima Barreto queriam para a literatura brasileira.
Sem dúvida, mesmo inconscientemente, Guimarães Rosa apoiou a saga de seu Riobaldo - jagunço mineiro que medita e monologa com um suposto visitante em sua fazenda, rememorando as batalhas e seu pacto com o Diabo nas semiconquistas de Mário de Andrade e seu também parcialmente ilegível Macunaína. Baseou-se também nas lendas medievais de gesta em que os cavaleiros da Távola Redonda saem à guerra para instaurar a justiça, combater os maus e usurpadores, os traidores e demoníacos. Indiretamente, há até semelhanças tanto com o D. Quixote, que sai a campo para endireitar os males e proteger desamparados e injustiçados, dedicando todos os seus feitos à pura Dulcinéia como com o Faust de Goethe, a assinar um contrato estrito com Mefistófeles para readquirir o vigor físico e a sabedoria que não alcançara através dos estudos. São igualmente determinantes, porém, as diferenças. Como assinalou acertadamente o crítico gaúcho Donaldo Schüler, Grande Sertão: Veredas não é apenas um decalque das lendas medievais: no Brasil temos, do Nordeste até o Rio Grande do Sul, o nosso equvalente a uma Idade Média: a Cavalhada ou o Reizado, que são combates entre cristãos e mouros, com rei, rainha e pares-de-frança, tradições que herdamos, através de Portugal, da longa tradição ibérica de combate ao árabe invasor da Península. O recurso, usado até depois de finda a era medieval, na Europa, por Shakespeare, em suas comédias do período elizabetano, de apresentar uma moça disfarçada de rapaz – neste caso Diadorim, por quem o jagunço Riobaldo se apaixona e que só no final vem a revelar sua verdadeira identidade como mulher que combate disfarçada de guerreiro no sertão bravio ao lado dos homens – até esse recurso é encontradiço na literatura de cordel mais antiga do Nordeste, em que uma filha quer provar seu brio a irmãos ou pais que não a compreendem e empreende uma longa jornada dissimulada de “sexo forte”.
Finalmente, o que singulariza Grande Sertão: Veredas até hoje, incoercivelmente, impondo-se à admiração do leitor, é a intenção subjacente de mostrar ao ser humano que a vida é indecifrável pelos cânones de Descartes, da lógica, do materialismo, do raciocínio. A vida, como a visita de Dante ao Inferno na Divina Comédia, é uma travessia, palavra com a qual se encerra essa longa viagem de uma alma aflita “per una selva oscura”. Guimarães Rosa fala por Riobaldo, o jagunço já encanecido, em sua fazenda a monologar com um visitante não especificado, sobre Deus e o Diabo, sobre o sentido da vida, sobre a predominância do fatalismo e do destino imutável, já escrito para cada ser humano apenas executá-lo, ou na existência de um livre arbítrio que nos permite efetiva e coerentemente escolher entre o Bem e o Mal, escolher esta ou aquela estrada, proceder conscientemente, sabendo que consequências mortais e espirituais, indeléveis, nossos atos trarão. Imbuído de noções filosóficas em que o ser humano é uma entidade espiritual, uma alma que, através de encarnações, redime o mal que causou em vidas anteriores, quando ignorava o Bem, o deslumbrante autor mineiro vê a condição humana como um estado de obscuridade, de cegueira, todos nós nos metamorfoseando em algo melhor, conforme os ensinamentos do Hinduísmo e do Janinismo indianos:
“O senhor… Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.”
Nessa mutação, Riobaldo, o jagunço, que parte como chefe Medeiros-Vaz para vingar-se do maldoso Hermógenes e seu bando de fascínoras, ascende a Tatarana, o grande chefe, e depois a Urutu-Branco, implacável. Igualmente se transforma Diadorim, que representava a tentação do Diabo, inaceitável, de um cangaceiro amar outro cangaceiro: depois de morta ela revela ter sido sempre mulher.
Vinte e cinco anos depois da sua publicação, Grande Sertão: Veredas ultrapassou o terreno minado das celeumas literárias: é talvez o mais alto, complexo, rico e atemporal empreendimento dinâmico da linguagem da fantasia, da reflexão filosófica da literatura brasileira. A força soberba da travessia do deserto pelos combatentes exaustos iguala trechos da descrição dos combates de O Sertão de Euclides da Cunha. O esplendor da Natureza tropical, com sua fauna e flora riquíssimas, afirma-se com uma pujança autônoma, como co-participante das lides humanas, refletindo ora o remanso de um buritizal ora o calor diurno ou o gelo noturno das chapadas inclementes como os mares e os cíclopes da Odisséia de Homero corporificados em deuses e entidades sobrenaturais com as quais os herois têm que se defrontar. Obra profunda, que só a releitura paciente, constante, pode fazer ir aflorando em suas camadas de interpretação e assombro mais recônditos, Grande Sertão: Veredas, teve a fortuna irrepetível de encontrar em Edoardo Bizzarri um tradutor de gênio, que transmitiu sabiamente para o italiano os elementos do real fantástico que Gimarães Rosa pioneiramente já introduzira no Brasil, pari passu com os supremos expoentes da literatura realista e imaginativa da América Hispânica: Alejo Carpentier, Juan Rulfo, Jorge Luís Borges, Cortázar, Vargas Llosa, Garcia Márquez, Juan José Arreola.
Fora os raríssimos momentos em que o bom gosto cede ao mal gosto, na feitura de algumas palavras, Guimarães Rosa continua sendo o Grande Bruxo da literatura brasileira, não o mero artesão de novas palavras, mas um Mestre insuspeitado de uma cabalística que se espraia concomitantemente nos terrenos da interpretação filológica, linguística, simbólica, estética, filosófica, metafísica, poética, ocultista. Barroca como um trecho virgem da floresta amazônica, culta em seu domínio de várias culturas estrangeiras e autóctones, um repto difícil, mas compensador, esta orquestração deslumbrante de palavras, termos, encantamentos, permanece como a mais ousada e também a mais vitoriosa incursão da língua portuguesa, transplantada para o Brasil e enriquecida de noções africanas e indígenas, ao traçar um retrato verídico do próprio Brasil e seus contrastes étnicos, sócio-econômmicos, políticos e culturais.
Grande Sertão: Veredas é um caleidoscópio que muda de geração para geração quanto à sua interpretação do Brasil: mas, sempre prismática, é uma obra-prima que desafia o leitor e o enriquece, aprofundando sua concepção do Brasil, da vida, da morte, do sofrimento, a cada leitura. Nas suas guerras, calmarias, horrores, abismos, está cifrada toda uma rapsódia do Brasil: múltiplo em suas faces, transcendente em sua representação microscósmica de um infinito maior que palpita em cada uma de suas páginas mágicas.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Guimarães Rosa 25 anos de veredas},
booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e Hilda Hilst},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {2},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-2/1-guimaraes-rosa/08-guimaraes-rosa-25-anos-de-veredas.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1981-6-13. Aguardando revisão.}
}