Manuel Ferreira: a bondade e a opressão

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 25-08-1983. Aguardando revisão.

O seu olhar no rosto sardento, encimado por cabelos brancos e revoltos, impressiona pela bondade. Não há nenhuma ruptura entre o incisivo escritor português estabelecido no arquipélago de Cabo Verde, a 500 km da costa atlântica da África, Manuel Ferreira, e seus livros humaníssimos, sucintos, que falam da fome, da dor, da emigrção forçada, da pobreza das ilhas onde se falam o português e um dialeto antigo do português, o crioulo. Morna, A Casa das Motas, Hora de Bai (possivelmente o seu melhor roance, lançado no Brasil pela Editora Ática) e Voz de Prisão documentam, dolorosamente, mas sem pieguismo, o exílio constrangido pela fome, a opressão fascista colonial, a ausência de qualquer direito humano à mínima dignidade.

Manuel Ferreira foi embora ontem para Lisboa, onde leciona. Foi embora depois de passar quase 15 dias no Brasil, onde participou de uma série de programas em Porto Alegre, Rio e São Paulo (que incluiu encontros na USP, na Faculdade Ibero Americana, na FMU e na Fundação Santo André). Nesta entrevista ao Jornal da Tarde, ele falou, entre outras coisas, sobre a influência brasileira, na década de 30, nas suas ilhas: Manuel Bandeira, Gilberto Freire como sociólogo, os primeiros romances de Jorge Amado, antes de ele adentrar-se pelas Gabrielas xaroposas e de sucesso como a Coca-Cola, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, que serviu de inspiração ao cabo-verdiano Baltazar Lopes. Vincadamente, ficaram como quase que modelos os romancistas sociais nordestinos: Manuel Ferreira se refere com grande ternura à obra de José Lins do Rego, que não desejaria reler para, como sói acontecer tantas vezes ao rever arrebatos passados, não ter decepções. A poesia de João Cabral de Melo Neto e a de Carlos Drumond de Andrade são ainda recentes como revelação no arquipélago.

Essa influência brasileira das décadas de 30 a 40 a que o sr. se refere ocorreram pari passu com os modelos do romance neorealista vindos de Portugal?

“Sim, pari passu. Depois, como se sabe, o início do romance neorealista, se assim se pode dizer, em 1939, com o Álves Redol, teria um significado diferente sem o exemplo dos escritores brasileiros: há até teses universitárias sobre as semelhanças entre Graciliano Ramos e Carlos de Oliveira.”

Uma pergunta que só aparentemente é agressiva…

(rindo) “Se for, veremos como nos esquivar dela…”

… mas na realidade não é: recentemente o professor Virgílio Ferreira teve a delicadeza de constatar comigo, numa entrevista que me concedeu, que todo o surto do romance neorealista português, se não constitui um fracasso, pelo menos foi um erro, em termos artísticos, com excesso de panfletarismo e sem abertura para outras possibilidades. O sr. concordaria com esse juízo?

“Não estou de acordo, acho excessivo esse julgamento. É bem verdade que num primeiro momento o próprio Virgílio Ferreira enveredou pelo neorealismo, depois seguiu por outros caminhos, de fato, sua arte tomou outros caminhos, digamos, o Virgílio Ferreira isolou-se. Ele sente-se bem com seus livros e acha que é um desperdício um escritor com qualidades reais preocupar-se com política, escrever artigos nos jornais, como é o caso de Eduardo Lourenço, que é outra grande figura de intelectual português, mas que é um homem de intervenções…”

Como o José Cardoso Pires?

“O Eduardo Lourenço ainda mais, porque aparece ainda com mais frequência!”

E como é que o sr., como ficcionista, se situa? Sua literatura é, sutilmente, ideológica, mas sem nada do panfletarismo de um realismo socialista… Relacionando-me à sua pergunta anterior: para mim, o neorealismo foi, quem sabe, mal compreendido por alguns no princípio, mas o neorealismo não enjeita as contribuições modernas de natureza artística, estética.

“Tudo se resume a ter ou não ter talento: um neorealista menor será sempre menor. Veja: em meu livro Voz de Prisão (1971), eu assimilo técnicas que absorvi de Nathalie Sarraute, de Michel Butor, do nouveau roaman…”

O sr. se mostrou mais permeável então?

“Eu sou permeável e não sei se isso não será uma maneira de encarar a própria vida. Eu penso que, independentemente do que os outros prefiram, sempre há um ponto de apoio e compreensão, de convívio humano que permita o diálogo e a coexistência harmônica, não é?”

Só para encerrarmos essa questão do neorealismo português: não lhe parece válido que, pelo menos em alguns pontos, mesmo levando em conta a oposição ao regime fascista salazarista, o neorealismo tenha por vezes chegado ao extremo de assumir uma feição rigidamente marxista?

“É possível, principalmente quando o neorealismo surge, em oposição a tudo praticamente: em oposição aos presencistas (nota da Redação: os poetas do movimento da Presença portuguesa, liderados por Fernando Pessoa), oposição política à política vigente etc., e aí devem ter surgido obras excessivas, que não foram suficientemente amadurecidas. Nunca ninguém me fez esa pergunta nesses termos mas é possível, sim sr.”

O sr. tem um pouco a tarefa de nos ensinar, a nós brasileiros, o bê-a-bá da literatura do Arquipélago. No Brasil, com raras exceções, a literatura africana, mesmo de expressão portuguesa, é completamente desconhecida, a não ser pela figura de um Luandino Vieira que se choca com um ridículo e imbecil Peptela, a meu ver. Que outros autores importantes devemos conhecer para sanar essa falta de comunicação com o outro lado africano do Atlântico?

“Sou um português que há 26 anos mora em Cabo Verde e de tal modo me afeiçoei à terra, me identifiquei a ela que não posso dissociar-me dela.

A literatura do Arquipélago não tem propriamente vertentes mas tem, sim, em comum, vários fatores que o tornam quase que uma grande família que viveu os mesmos acontecimentos simultaneamente: é uma literatura que desde a descoberta na realidade se constrói com os homens que alimentavam, todos juntos, a ideia da libertação do colonialismo português que subjugava sua pátria nos anos 30, sem implicar a ideia da expulsão mas muito mais a da independência do jugo colonial. Desse sentimento autônomo de pertencerem a uma pátria em comum, etnicamente homogênea (Cabo Verde não é nem multirracial como o Quênia, é talvez a única sociedade de uma única raça, mestiça em diferentes matizes, no mundo) nasce a vida intelectual com suas caracerísticas nativas específicas, inconfundíveis. Aí quer um Baltazar Lopes, quer um Manoel Lopes ou outro pioneiro como Barbosa ou outros que vieram depois não configuram, veja bem, uma literatura política mas sim de um sentimento pátrio, de uma autenticidade e uma autonomia culturais. É, pois, predominantemente, uma poesia social, nativista, que chora as dores e celebra as alegrias cabo-verdianas. Mas nem num poeta típico, o papa da poesia cabo-verdiana, Jorge Barbosa, amigo de Manuel Bandeira, há ênfase a não ser no apego à terra natal. Sempre, porém, a cultura cabo-verdiana esteve de olhos abertos para tudo que corria à sua volta. Eu não constituo uma exceção: sou daquele grupo que tentou, do nada, construir uma cultura, uma nacionalidade, através de retenções do falar cabo-verdiano e de tentativas de renovação linguística. Porque partimos de fatos históricos: as ilhas eram desertas, com a vinda dos portugueses e dos negros há uma miscigenação que, no meu entender, cria um homem novo, que não é o Brasil, nem Angola, nem a négritude, nem Portugal, a nossa literatura exprime a nossa própria cabo-verdianidade. Não é uma literatura engagée mas de registro e que termina por ser uma literatura de denúncia, até a década de 50, quando surgem Ovídio Martins, Onéssimo Silveira, já com outra consciência, outros temas, não é? Sem esquecer um Aguinaldo da Fonseca, anterior. Há, no entanto, duas figuras importantes: Cursino Fortes, que foi embaixador em Portugal, e Teófilo Timóteo, sem deixar de mencionar um mais recente que é Hermênio Vieira, pois a poesia passa, digamos assim, ao largo dos slogans da Revolução e se nega a fazer coro com ela, passando até mesmo por experiências surrealistas.”

E como a literatura sobrevive na era eletrônica de Marshal McLuhan, a seu ver?

“Acho que é preciso reconhecer primeiro que a literatura sempre foi um fenômeno, se pudermos usar a expressão,”elitista”, nunca foi um fenômeno de massas, pelo menos no que concerne à grande literatura. Mas, como eu dizia no meu colóquio ontem, numa faculdade em Santo André: vocês já pensaram no que seria o Brasil de repente funcionando tudo às mil maravilhas mas sem literatura? O que seria o Brasil com todos os seus livros queimados? Sem a sua identidade nacional pois a literatura é que é a alma de um povo, a sua continuidade histórica e humana.”

É preciso então democratizar considervelmente os meio de acesso à literatura?

“Sem dúvida, o artista, o literato para mim ou o escriba, se quisermos, na era eletrônica de hoje a que o sr. alude, mais do que o produto de uma sociedade em que vive, devolve a ela o que lhe deu transmudado, preservando a personalidade de um povo…”

Mas o escritor capta alguma coisa antes que os outros?

“Não resta dúvida de que sim, o romancista talvez menos que os poetas mas um grande romancista joga uma luz projetada para o futuro.”

A literatura foi decisiva para a Revolução Francesa e, como vimos, para a libertação de povos do colonialismo?

“Sim, como disse, a literatura é uma préciência, o sr. falou da magia da literatura hispano-americana e creio que também na África o eurocentrismo dará lugar a novas sensibilidades abafadas, sem que com isso se relegue a Europa a um asilo de esclerosados. Costa Andrade, Agostinho Neto, Antônio Jacinto, Antônio Cardoso tinham um dom profético, uma crença muito viva de que seu país seria libertado, não como panfleto, mas antes de tudo como literatura. A literatura sempre foi combate, foi antecipação.”

A literatura poderia influir na reivindicação das minorias, das mulheres, nos negros, por exemplo?

“Esses grandes mártires do único critério que lhes foi imposto, a esses a poesia volta a libertação, pois a literatura conscientiza, cria novas e mais justas realidades.”

Cabo Verde e toda a África Negra por extensão representariam uma esperança de inovação para a literatura já carcomida?

“Tudo é imprevisível, mas dentro de algum tempo, sim, eu creio. A substituição que os europeus tentaram impor às culturas autóctones da África e de outros continentes cederá a um encontro de sabedorias ancestrais com a ponte, a máquina, a bicicleta, a fábrica. Com o desenvolvimento da escolaridade e a simbiose do mundo mítico, encantado da experiência africana, surgirão formas novas, atrevo mesmo a dizer homens novos. Não será de hoje para amanhã que o antropofagismo do colonialismo será apagado, essa plurimodificação brotará de forma que nem podemos sonhar. A própria Europa está em momento de crise mas não esgotou tudo o que tem a dizer, tem muito ainda a contribuir. Mas a literatura sempre foi sinônimo de um amanhã sonhado pelos poetas e sempre tardiamente reconhecido pelos demais, não acha?”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (25AD–8AD) 2022. “Manuel Ferreira: a bondade e a opressão .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.