Entrevista com Antônio José Saraiva

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 29-10-1977. Aguardando revisão.

Exilado do seu país, Portugal, pelo regime salazarista que combateu sisemática e lucidamente, o professor Antônio José Saraiva, autor de vários livros sobre a literatura e a cultura portuguesas, continua ativo aos 60 anos de idade, voltando a lecionar agora, depois de longos anos no estrangeiro, na Universidade de Nova Lisboa e tendo se afastado voluntariamente do Partido Comunista, pois suas posições independentes não lhe permitem enquadrar-se em nenhum dos esquemas políticos existentes.

Convidado a pronunciar palestras em universidades brasileiras, ele comparava risonhamente a vitória do Coríntians e suas ruidosas manifestações de rua “a um maio de 1968 em Paris”. Sem tender para uma visão esquemática do terrorismo e seu recrudescimento na Alemanha Ocidental, distinguia nas origens do grupo Baader-Meinhoh, por exemplo, vários fatores. Por um lado, a falência de um sistema desumanizante, o da economia de mercado, que transformou cada ser humano em um anônimo parafuso de uma gigantesca engrenagem destinada a aniquilar a natureza e as características humanas que deveriam prevalecer no convívio humano. De outro, vislumbrava em atos de terrorismo sintomas de desajustes sociais tão graves que levavam à confusão de um ideal elevado com a prática de crimes inqualificáveis. Sua riqueza de visões iconoclastas provocou a ira de setores diversos das universidades, dos partidos, da imprensa, como sua teoria de que o neorealismo é no fundo tão conservador quanto o regime de Salazar ou o “realismo socialista” róseo, imposto aos artistas nos países ditos socialistas. Para ele, se a arte não for renovação, não for contestação ao status quo é mero adorno, ou anuência, no quadro dos regimes vigentes. O autor de um Dicionário Crítico em que além de definir expressões surradas como Esquerda, Direita, Democracia e Progresso (ele insta o leitor a assumir uma “atitude ativa e responsável”), manteve um breve diálogo com o Jornal da Tarde durante sua estada em São Paulo. Nela, teve ocasião de observar no Brasil uma resistência quase que automática do brasileiro à técnica, em contraste com a preocupação com o tempo e um culto de atividades frenéticas, se compararmos São Paulo com Paris. O brasileiro teria um sentido lúdico da vida, exemplificado pela vitória de um time de futebol popular, que se contrapõe saudavelmente a uma visão mecanicista e desumana da convivência social em outros países.

Haveria uma tônica da cultura portuguesa, focalizada pelo Sr. ao longo de vários volumes dedicados à literatura de Portugal, a Gil Vicente, à Camões, à Inquisição?

“Dependendo muito do sentido que se dá à palavra cultura, poderíamos dizer, do ponto de vista antropológico, a contribuição portuguesa é uma contribuição de contacto informal entre povos diferentes, quer dizer: o português não estabelece fronteiras muito nítidas com relação às civilizações com que se encontra. É capaz de bastante adaptação e de uma mistura que se torna evidente quando se compara a civilização portuguesa com a inglesa ou mesmo com a espanhola. Aqui no Brasil se deu uma miscigenação que é absolutamente patente, ao lado de uma adaptação ao ambiente geográfico: as cidades dos países hispano-americanos eram previamente planejadas na Espanha, o que não aconteceu no Brasil, onde há um grande sentido seja de improvisação, seja de adaptação ao meio. É um traço que me impressiona bastante. Mas ao mesmo tempo a cultura portuguesa é muito integradora sobretudo no nível inconsciente, se assim posso dizer. No Brasil, por exemplo, questiona-se muito que transformação sofreria a cultura portuguesa em contacto com índios, com negros, com a imigração japonesa, alemã etc. O que eu realmente observo é que todos na realidade foram integrados numa estrutura, bastante evidentemente próxima da própria estrutura da cultura portuguesa. É muito clara a formação do homem brasileiro: ele não é só a soma das diversas partes que colaboraram na sua feitura, isto é, o português, o japonês, o alemão, o italiano etc.: é uma síntese e através desta síntese é que sinto muito a proximidade dos dois países, Brasil e Portugal. Essa integração inconsciente, não planificada de antemão, corre ao lado de uma indeterminação de fronteiras entre os elementos propriamente portugueses e os que não o são.”

Depois de exilar-se de Portugal, perseguido por sua oposição ao regime salazarista, depois de 25 de abril como o Sr. vê as perspectivas sociais, políticas e culturais para Portugal hoje?

“Bem, no campo social há uma democratização muito evidente as relações humanas entre as camadas sociais diferentes são hoje muito menos rígidas, mais fluidas e isso se nota na atitude de qualquer pessoa do povo e até numa certa aceitação por certos grupos que pertenciam de qualquer forma à classe superior a se adaptarem a esta nova situação, como as pessoas acostumadas a um tipo de vida elevado procurarem hoje empregos às vezes modestos e manuais, há portanto uma mudança muito grande sob esse aspecto social.”

E quanto ao aspecto político?

“Parece-me que aí ainda se anda à procura de uma fórmula: se por um lado existe a velha mentalidade do Estado autoritário, que permanece e que está dentro da cabeça das pessoas, por outro lado existe a tentativa de implantação de um sistema liberal. Não sei se o sistema liberal à inglesa ou mesmo à francesa vai vingar, mas creio que se deva procurar uma fórmula que repila a tentação totalitária que está sempre latente, é um abismo sempre presente. Uma fórmula que fique entre a tentação totalitária e a democratização formal que está vingando hoje em Portugal, ainda que em zigue-zague. Espero que a prática venha institucionalizar alguma coisa menos frágil.”

Não haveria o perigo da rejeição do transplante de regime como o social-democrático alemão ou escandinavo para Portugal? Afinal, esses regimes são o resultado de décadas de guerras, de dificuldades. Poderiam eles ser transplantados prontos para um país que emerge de uma ditadura fascista tão longa?

“Não há dúvida alguma de que é problemática a adaptaçção de esquemas criados para e por outras culturas. Aliás é um problema que se coloca para Portugal há mais de um século. Desde a introdução do sistema liberal, depois da Revolução de 1832/34, que o país está tentando soluções liberais que são repelidas pelo regresso a uma tradição absolutista, despótica. Resultado: até hoje o sistema liberal não conseguiu adaptar-se ao país. É uma ideia que existe para as elites mais instruídas, mas que não entrou para os hábitos do povo.”

A dificuldade de assimilação automática pelo povo de regimes democráticos importantes de outros países europeus suporia também uma dificuldade para o ingresso de Portugal no Mercado Comum Europeu? Ou o Sr. continua advogando uma associação estreita entre Portugal e o mercado latino-americano, como já propôs anteriormente?

“Continuo a pensar que não é exato pensar que Portugal é um país europeu e só europeu. Portugal está na periferia da Europa. Quem faz uma viagem à Europa Central, passando depois por Espanha e Portugal, começa de fato a penetrar na América Latina, numa como que preparação para este mundo. Culturalmente também Portugal foi sempre uma zona de fronteiras entre o mundo cristão e o mundo árabe, entre a Europa e a América, a Europa e a África. Não vejo como uma fatalidade inevitável a entrada de Portugal no Mercado Comum Europeu, admissão muito problemática porque não é só uma questão geográfica, mas de complexas estruturas sócio-econômicas. Do ponto de vista estratégico, desde os tempos da Restauração, Portugal sempre esteve mais voltado para as potências atlânticas, praticamente foi uma testa de ponte inglesa para a Europa e funcionou como tal até contra o Império Napoleônico. Ora, esse papel britânico pode ser desempenhado pelos Estados Unidos, que têm hoje o poderio que tinha a Inglaterra no século XIX, de modo que não tenho certeza se se deva incluir Portugal na zona de influência européia ou americana. Portugal é uma zona limítrofe, por assim dizer.”

O Sr. se refere constantemente à falência da sociedade burguesa e em Portugal o Sr. afastou-se do Partido Comunista Português, fundando uma revista denominada Raízes e Utopia, depois da revelação dos campos de extermínio de Stálin feita por Kruchev em 1956. Que alternativas haveria depois do ocaso da burguesia, a seu ver?

“De fato, parece-me que a sociedade burguesa está a chegar a seu fim, mas é difícil entrever o que vai suceder. Não foi elaborado ainda um sistema de sua substituição. Parece-me que será ao nível da vida cotidiana concreta e que se irá esboçando uma vida social que resultará essa prática diária. Hoje há uma oposição entre uma sociedade de mercado, que é uma sociedade desumanizante, que tende ao abstrato, que não reconhece aquilo que é característico do ser humano e, por outro lado, a necessidade de se viver uma vida que seja uma realização pessoal e poética. Há uma oposição entre a realidade concreta das pessoas e o sistema abstrato, que é o sistema de mercado, alienante por si mesmo, no qual as pessoas são forçadas a se integrar.”

Nas estruturas do totalitarismo de Esquerda, como a União Soviética, os movimentos dos dissidentes como o físico Sakharov, o general Grigorenko, o escritor Soljinitsin e outros, desempenham o papel de uma opção nova de uma recusa do terror centralizado no Estado policial?

“Como já disse reiteradas vezes, os dissidentes encerram em si a esperança da humanidade e essa expressão não me parece exagerada. Esses dissidentes lutam contra um Sistema de tal modo implacável, de tal modo desumanizado, que a sus própria atitude revela uma espantosa coragem. São homens que arriscam serem expulsos de seu país natal, a Rússia, uma pátria extremamente absorvente, quando não arrostam a aniquilação física. Há poucos exemplos de tal coragem. E são eles que infundem confiança às pessoas: quando os homens são capazes de sobreviver a um Sistema desses, que controla as vidas individuais do nascimento até a morte, e são capazes de jogar o seu destino contra esta máquina, é porque de fato a natureza humana é forte e difícil de destruir.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (29AD–10AD) 2022. “Entrevista com Antônio José Saraiva .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.