A modernidade de Shakespeare
No início de sua carreira nos palcos da Londres elizabelana e cosmopolita para a qual emigrara de sua Stratford-upon-Avon natal, Shakespeare atinha-se a formas dramáticas consagradas, durante o processo de adestramentos de seu talento. Ele a princípio adapta peças, como A Comédia dos Erros, baseada em Plauto, ou se inspira nos personagens cruéis de Marlowe para traçar e retrato pujante do monstruoso Ricardo III ou tenta aproveitar-se da maré de popularidade das peças históricas, sobretudo depois da retumbante vitória da Inglaterra nos mares que vencera a “Invencível Armada” espanhola e inaugurara assim o seu poderio naval e seu Império “no qual o sol nunca se punha”. No intuito de satisfazer dramaturgos e críticos invejosos que o menosprezavam por não escrever peças cultas e não ter frequentado Cambridge ou Oxford e só ter cultura primária. Ele escreve a comédia requintada denominada Loves Labour Lost (Penas de Amor Perdidas), fortemente influenciada pelo preciosismo do movimento literário do euphuism então em voga. Mas se, como assinala o crítico Derek Traversi, Ricardo III e Shylock já significam um grande avanço no que ele apropriadamente chama de “humanização de um vício”, concretização de uma qualidade abstrata por meio de um personagem, esse período de aprendizado, que durou cerca de 15 anos, foi também o período de preparação para a série de grandes tragédias que eclodirão a partir de 1601, em sucessão inigualada: Rei Lear, Otelo, Hamlet, Macbeth, Júlio César e Antônio e Cleópatra.
Evidentemente, não há quase nenhum detalhe da obra shakespeareana que não tenha sido dissecado pela critica especializada através de decênios, não surpreende por tanto verificar a existência de inúmeros estudos críticos dedicados à conexão entre os grandes dramas da maturidade do bardo e os sonetos dedicados, em sua primeira parte, a um jovem e os demais a uma misteriosa dark lady. Sem dúvida, apesar de sua desigualdade qualitativa e estilística, os sonetos têm uma grande importância no “amestramento” de seu talento, pois trazem os dramas uma coesão e uma concisão impostas pela disciplina férrea dessa forma poética importada da Itália e que freará muito da natural exuberância de Shakespeare, que ele próprio tem às vezes dificuldade em conter. Cabe, porém, uma distinção fundamental: se há uma ligação estilística entre os sonetos e as tragédias, sob o ponto de vista da temática a única semelhança que denotam é o crescente pessimismo que se apodera do espírito do poeta e do dramaturgo no período que vai de 1601 a 1608, pouco antes do seu retiro para a pacatez de sua terra natal, onde os espetáculos teatrais eram proibidos pelas autoridades puritanas. Ao passo que os sonetes denotam uma preocupação constante com a passagem inexorável do tempo, com a inevitabilidade aterradora da morte e com o caráter efêmero de tudo - temas basilares do movimento barroco que sucederá ao Renascimento - as tragédias espelham a investigação da desordem psíquica, da ruína e da morte que o Mal semeia nos espíritos humanos, encarnado nas figuras exponencias de um Iago, de uma Lady Macbeth ou de um rei Claudius.
Atendo-nos à classificação célebre de Nietzsche dos dois elementos fundamentais da criação grega, poderíamos atribuir ao critério com o qual foram escritas as grandes tragédias de Shakespeare um critério “dionisíaco”, oposto à serenidade apolínea do Classicismo ático. Como Sófocles, Eurípedes e Ésquilo, ele perscruta o âmago da maldição que pesa sobre o Fado dos personagens grandiosos na queda como no crime: Electra e Hamlet, Édipo e Otelo. Mais ainda: modernamente, Shakespeare poderia ser considerado como um legítimo autor “demoníaco” da linhagem de Kafka, Thomas Mann ou Dostoiévski, que não se detém diante das mais hediondas facetas da besta humana, misto de miséria e transcendência. Na sua análise do elemento destrutivo da alma do homem. Shakespeare, para chegar a conclusões absolutas e a um conhecimento absoluto, usa de meios e situações extremas. O Rei Lear, por exemplo da sua longa galeria que nos parece o personagem-chave chega ao extremo da penúria, da humilhação e do desespero humanos ao sofrer desabrigado a fúria dos elementos, durante a tempestade, e a ingratidão hostil das filhas ferozes, compartilhando o refúgio improvisado e abjecto de uma caverna com um idiota, o “poor Tom” e um mendigo, Glaucester cegado e indigente que vagueia, errante, pelas estradas ermas do Reino. Nessa peça que é uma das mais profundas alegorias da literatura mundial, Shakespeare utiliza elementos simbólicos de grande significado como sejam o ímpeto do monarca enlouquecido pelo sofrimento e pela decepção a desnudar-se, a desfazer-se da pompa e dos adornos exteriores da majestade, na situação extrema em que se encontra, no seu desamparo frente à fúria dos raios e à sanha selvagem das filhas. A maravilhosa simbologia da cena da tempestade constitui um prelúdio que antecede de quatro séculos o despejamento atual do teatro de vanguarda francês principalmente (embora Pinter, na Inglaterra, utilize elementos semelhantes em seus esplêndidos dramas), precedendo os mendigos de Beckett que emergem de latas de lixo ou se encontram à espera de Godot num cenário despojado, que é todos os lugares da terra e lugar algum.
Em sua queda, as grandes figuras shakespereanas compartilham a precariedade cósmica dos personagens de Kafka, pois será fácil verificar que o rei Lear, Otelo, Hamlet e outros personagens de seus dramas defrontam sua solidão, com a mesma situação de precariedade de Joseph K., acossado por uma angústia indizível, condenado por um tribunal invisível e a frustração de K., ao qual é vedado o acesso ao Castelo da autorrealização.
Para algtima eriticos, o Rei Lear, nessa cena crucial atinge um grau socrático de conhecimento de si mesmo e da realidade que o circunda, libertando-se de suas ilusões e vindo a conhecer sua soberba, sua injustiça, sua vaidade e a arbitrariedade do seu absurdo teste de afeição com que se inicia a tragédia. Em última análise, esse conhecimento de si mesmo constitui, poderíamos acrescentar, a culminação do tema da vulnerabilidade dos reis às fraquezas comuns a todo o gênero humano e a sua identidade com os seus semelhantes que as peças históricas tinham demonstrado de sobejo. Mas até mesmo esta interpretação comporta e conferia a modernidade de Shakespeare, sua “atualidade” intrínseca, tão amplo e universal é o mundo de seus dramas que podemos girá-lo como um caleidoscópio infinito, que nos dá formas e composições novas com cada alteração da perspectiva sob a qual queiramos analisá-lo. De fato, no teatro contemporâneo de Tennessee Williams, embora, naturalmente, em diapasão consideravelmente menor, surgem personagens afins, incapazes de reconhecer a realidade que as circunda e tipificadas pela patética Blanche Dubois de Um Bonde Chamado Desejo. Paradigma de todas as heroínas do amargo autor americano, ela sucumbe vítima de sua incapacidade de reconhecer ou aceitar a realidade, irmanada espiritualmente com o Cavalheiro da Triste Figura em suas andanças pelas estradas ermas da Mancha, em busca dos fantasmas que sua própria imaginação fabricava. Cada época da humanidade encontrará, assim, uma afinidade exponencial com a obra de Shakespeare, porque nela ele refletiu «como um espelho erguido perante a vida”, toda a vida, como queria Henry James, com seus aspectos trágicos grotescos, sublimes e sórdidos, pois desse humus e desse caos emerge a vitalidade de seus dramas que não envelhecem porque captam a quintessência da humanidade em todos os seus aspectos. A eterna “modernidade” de Shakespeare vem, por conseguinte, confirmar as palavras proféticas de seu contemporâneo e admirador Ben Jonson que vislumbrou sua genialidade “de todas as épocas”, reconhecendo desde então que sua glória cresceria com os tempos e abarcaria todas as latitudes em que vive a humanidade.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {A modernidade de Shakespeare},
booktitle = {Aspectos do Teatro Contemporâneo},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {11},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-11/06-shakespeare/01-a-modernidade-de-shakespeare.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Diário de Notícias, 1964/06/14. Aguardando revisão.}
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