Resenha ao livro Arara Bêbada

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Caros Amigos nº 88, sem data. Aguardando revisão.

Creio que o último livro publicado pelo contista paranaense Dalton Trevisan, Arara Bêbada, Editora Record, com a capa tirada dos desenhos do pintor alemão Georg Grosz, atingiu o difícil intento já declarado pelo autor anteriormente: escrever contos cada vez mais curtos, telegráficos.

É quase uma antologia dos temas anteriores de Dalton Trevisan com paixão, objetos e exclamações de um catolicismo comum. Agora, a luxúria, ao mesmo tempo hilariante, e as tragédias de ópera bufa de casais que se desentendem na velhice. Ela leva uma vida imaculada e o considera velho sem-vergonha, correndo atrás das meninas ginasianas. Ele, mais comumente ávido de carne jovem fresca, das meninas sestrosas, venais no fundo. As que já desde tenra idade acedem em posições e gestos que a burguesia julga vil e cai das nuvens ao ver meninas de 12, 13 anos, fingindo que não se deleitam no seu início de vida de prostituta ou cortesã, já desde cedo prontas para perder e inocência em troca de bens materiais.

Histórias que, como se dizia antigamente, fariam um frade de pedra corar. Hoje, na era dos gogo boys vendendo-se à beira da piscina do chique Copacabana Palace, dos filmes pornôs, das ainda jovens mulheres casadas que frequentam “boates” e extorquem muito dinheiro de velhos designados pela juventude “a ala do INSS”. Tudo isso pode causar horror como um assassinato macabro. Da mesma forma, muitos contos policiais são a transferência de ódios sufocados. Até Dostoievski, para muitos da crítica atual, sua existência foi pendular entre o assassinato e a condenação espiritual.

Sem hipócrita pudicícia, que se arrepiaria mais do que um instante ao ler, por exemplo:

“O Plano

Mais uma vez. Pela última vez:

Ela, a ingrata:

Ah, não era dele? De ninguém mais seria. E seguia à risca o seu plano de vingança:

atacá-la após o beijo de despedida,

estuprá-la e sodomizá-la,

enforcá-la,

cortar sua garganta,

vazar-lhe o sangue na banheira,

decepar e queimar os dedos da mão,

esquartejá-la,

(a cabeça… olho azul meio aberto…

o cabelo metade loiro, metade vermelho coagulado).

Embrulhar os catorze pedaços do corpo

em sacos plásticos negros,

espalhando um por dia nos latões de lixo,

em bairros distantes de Curitiba.”

Que enorme diferença de época em que a mulher adúltera, amante do chofer de ônibus, forçava o envergonhado marido, mansamente, a mudar de um bairro pobre a outro, enquanto, em cada bairro, ele mandava beijinhos ao chofer, e o pobre marido operário humilde reconhecia a sua sina e tentava salvas os filhos pequenos daquele escândalo já conhecido de quase a cidade inteira. Que diferença da esposa que se ajoelhava e persignava diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida, jurava ao marido sua pureza jamais maculada nem mesmo por vizinhos mexeriqueiros e falsos.

Dalton Trevisan tem a ousadia de Bataille nos detalhes voluptuosos que cita em poucas linhas:

“Oferenda

Tua nalguinha empinada

Em dupla oferenda

Praia mansa dos teus olhos

Ondas revoltas do meu desejo

Lua bochechuda dos meus ais

Ó cadeira de embalo dos meus sonhos

Quando Carlos Drummond de Andrade perde a austeridade e tece elogios poéticos e hilariantes à bunda, na época isso deve ter causado o fechamento de muitos livros por mães iradas (“isso é poesia?!”), já o curitibano deixava claramente entrever as delícias da carne fresca das jovens adolescentes e insistia, no asilo dos velhos, à incontinência em espiar pelo buraco da fechadura o corpo das faxineiras ao trocar de roupa.

[…]

Dalton Trevisan ultrapassou de muito Oswald de Andrade e Mário de Andrade por não se ater a parnasos imaginários e importados da Academia dos Imortais de Paris. Numa terra fecunda em contistas excelentes, ele e um franco-atirador que dinamitou a fortaleza da gramática e dos rebuscados de um pseudolirismo brasileiro para escrever como se fosse um brilhante jornalista da folha policial de um jornal manchado de sangue. Tao naturalista quanto Émile Zola ao retratar a vida sórdida das prostitutas parisienses da sua época, seus contos falam o linguajar brasileiro com suas deturpações e os cenários de uma cidade falsamente pudica de beatas, bêbados, miseráveis, asilados sem família, maridos ávidos por roliças coxas de adolescentes ou velhinhos em bruscas e eternas brigas. “Eu ainda mato essa velha com vidro partido misturado no prato dela”. Claro que, de forma valente como a Semana de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo, ele chocou a burguesia envolta em mofo, em hipocrisia e na multidão artística.

Foi só depois do surgimento do infame e sórdido Nelsinho que aos poucos o autor “descobriu” os homossexuais, mas sempre em tom de galhofa e desdém. Agora ele ousa chocar os bem-pensantes como no miniconto.

“O Chamado

Ele passa depressa e sorrindo aos convites aliciantes:

  • Psiu… Uma rapidinha, vamos!
  • Oi, amor…
  • Psiu, benzinho, vem cá.
  • Psiu, querido…

De repente, uma voz grave:

  • Você aí, Jesus te chama!
  • ?
  • É você mesmo, bonitão.”

As antologias, sucintamente, enquadram o mestre curitibano na faixa de autores rudes, chocantes, sua obsessão é a libido, o sexo, o amor. Trevisan pertence, na realidade, ao movimento da decadência da Espanha – o barroco e quem o for seguindo nos seus vinte e tantos livros constatará a morte do fictício amor confundido com o sexo, com a beleza juvenil. A ereção passa a ser patética em velhos carcomidos pelo tempo, mas que mesmo assim sonham com suas “glórias” passadas de janotinhas da província.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2023. “Resenha ao livro Arara Bêbada.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.