O livro que deu um soco em nosso crítico
Um soco.
De repente, as palavras como que formam uma linha contínua, de coerência inesperada e disparam a surpresa de um Punch aplicado bem no olho. O leitor tonteia, sua vista embaçada fervilha de água que não para de escorrer – uma mistura brusca de rancor, de espanto, de maravilha não o larga mais até a última página, metralhada frase a frase.
Leão de Chácara (Editora Civilização Brasileira, 104 páginas) é assim: deixa o leitor fascinado pelo submundo das boates da beira do cais do porto, os inferninhos e “biroscas” da Praça Mauá do Rio de Janeiro. E além de embasbacado, atônito: João Antônio é tudo que José Mauro de Vasconcellos queria, mas não pode ser. Escreve com uma vivência sem enfeites sobre a vida marginal, é chefe desse almoxarifado cruel e fétido de lixo humano jogado nas sarjetas, agarrado às roletas, à “ginga”, à blenorragia, ao crime, a uma forma primária de anarquia em que a liberdade é total.
Não há categorias ou tabus. Desvio sexual é fonte de renda, não objeto de psicanálise nem polícia. Vício é mera nomenclatura: qualquer um pode ser o que quiser, contanto que dai saia o tutu: do tutu é que sai o tutano, do dinheiro se produz tudo: falcatruas, roubos, encenações. Mas, caso único, essa anarquia tem regras de jogo, como a apatia, a solidariedade para fins egoístas, até um paradoxal “código de honra” entre cavalheiros.
O primeiro mandamento é o da hipocrisia miúda. Ninguém aspira, como leão de chácara de boates de péssima categoria, a obter cargos de confiança de um Ministro nem uma Secretaria polpuda do Governo. Não: a hipocrisia é nanica: basta a cumplicidade de um sorriso, de uma mesura mais ampla para dar ao otário que traz a amante à casa noturna a segurança de que conhece “o Doutor”: isso traz dividendos nem sempre mirrados – além da gorjeta extrai-se a continuação do emprego.
E continuar no emprego é vencer mais um dia de arena, despedaçando leões, cortando a carne de gladiadores jovens, de boa pinta e ávidos de tomar o lugar do leão de chácara já coroa e que vence pela astúcia o que perdeu em sex appeal e não hesita em jogar com o muque ou a navalha quando os dentes caíram e recursos mais brandos falham.
É um universo único talvez na literatura brasileira, o desse paulista de meia-idade, que extrai do seu próprio habitat uma experiência literária que, pela sua densidade, pela sua virilidade e pela sua permanência só tem comparações – embora exageradas se se quiser equiparar valores – às de Céline e às de Genet.
É verdade que Marcos Rey e Antônio Alcântara Machado, Lima Barreto, Aloísio Azevedo e poucos mais deram retratos perenes da degradação moral da miséria a que uma sociedade de castas pode levar uma comunidade que pulula, como nos romances de Zola, em bares e fábricas, trottoirs e meios de condução coletiva com sua carga de defraudados dos mais elementares direitos de dignidade humana.
Mas todos ou quase denunciam de fora uma guerra que João Antônio capta ineludivelmente de dentro, como um Dickens que não terminou o Mobral e que manda telex urgentes de uma Agência de Notícias dos miseráveis que Brecht e Victor Hugo utilizaram como munição, mas com um frasco de colônia embebendo-lhes o lenço apertado contra o nariz.
Se o Diário semianalfabeto de Carolina de Jesus, na favela do Canindé, em São Paulo, dá uma sensação tão aniquiladora de luta de fera, de encarniçada disputa com os abutres pelo monte de detritos que a poluição acumulou como sobras para os que são, eles próprios, sobras, escórias, de uma humanidade empedernida.
João Antônio já tinha dado seus primeiros eletrochoques no leitor bem comportado que por distração comprara seu livro Malagueta, Perus e Bacanaço como se fosse uma espécie de Gabriela televisionaria e cheia de couleur locale bem à la tropical.
Agora, se possível, João Antônio consegue superar o passe de rasteira que passou nos que procuram na literatura um “entretenimento” ou um substituto igualmente consumível de um filme de bang bang mornamente absorvido em casa e expelido da memória depois como mero passatempo.
João Antônio é dos primeiros frutos – tardios mas sugosos, alimentícios – da Semana de Arte Moderna tão apedrejada pela Paulicéia desavisada, há 53 anos atrás. Sem “ismos” nem mesmo maneirismos ele tem de Plínio Marcos o linguajar chulo, mas com uma profundidade maior: não lhe basta a mera denúncia social nem a subversão do idioma lisboetamente copiado e certinho.
Sua história, em forma de monólogo, que dá o título ao livro parte de raízes autênticas, tem como epígrafes compositores populares, o Noel Rosa tuberculoso da Lapa boêmia e dos amores infelizes, mas lúcidos e o Caetano Veloso da malícia malandra e de ironia sutil, mas devastadora na sua eficiência. Se Madame Satã tivesse talento literário, seria um adversário, um rival à altura de João Antônio. Mas isto não significa que o escritor paulista seja importante porque o Brasil anda completamente amordaçado em seu pleno gérmen criador de literatura. Ele não é significativo apenas porque é dono de um olho em terra de cego.
Seu talento é autônomo, não precisa de perspectivas desoladoras nem lamurientas para se afirmar, soberano, forte, vital.
O monólogo interior do porteiro de boate de categoria ínfima, que vive dos expedientes, numa espécie de mutirão de atitudes finórias capazes de erguer sua frágil habitação diária, se não tem a densidade de uma Molly Bloom de Joyce, tem, no entanto, uma profundeza filosófica autêntica e singular, válida em qualquer latitude da situação humana.
Em nenhum momento ele usa a gíria e mesmo o argot dos ladrões, prostitutas, farristas, cáftens e gigolôs como chamariz barato para a parte não iluminada da cidade grande – a que se abriga sob as luzes coloridas do néon, com nome estrangeirado, uísque misturado com iodo, tudo de acordo com uma realidade em si deformada. É um estilo involuntário que brota dessa espontaneidade de linguajar como se o envelhecido leão, agora numa chácara de prazeres fictícios, sórdidos e caros, tivesse perdido os dentes, mas não o corte dilacerante das garras, ele próprio transformado agora em amansador de valentões sem dinheiro, dispostos a “pendurar” contas ou de “vendedoras do amor” que não cumprem o horário e querem “faturar” por fora com os homens de quem extorquem pequenas fortunas enquanto sorvem mate gelado nas noites em que o sexo tenta aliviar a solidão que fragmenta os escorraçados pela cidade grande.
Além de ser uma série de graffiti da miséria traçados nos muros dos becos, estas histórias lancinantes têm seu fio condutor subterrâneo, de uma ternura nunca piegas pelas fachadas das gafieiras de luminosos antigamente gloriosas e hoje apagadas: a Elite, a Estudantina, o Dragão. É a transformação dos hábitos de uma cidade vista pela perspectiva sensível, nunca sentimental, nunca cínica com os valores afetivos verdadeiramente integrantes do passado de um homem e de uma geração que transcorre por estas páginas só aparentemente céticas e com malabarismos de uma capoeira verbal.
Os vocábulos tipificam essa hierarquia e por isso são novos para o ouvido não iniciado: “Quiquiricavam e mandavam de galos nos cabarés e leonavam, mal-encarados, também pelos dancings e cafieiras.” Essa expressividade que adquire a ginga de um malandro e de um meneio ou pernada adquire tons de delicadeza, pesa seus valores em outros momentos: “Um balaio delicado de se guardar, necessário saber direitinho com quem se estava lidando… Que o freguês misturado àquela variedade de gente bem podia ser uma majorengo enrustido, um manda-tudo lá do seu ramo. Se até políticos, apareciam no Bola, cuidar do caroço não era fácil”.
Se o leitor se enternece e se pasma com o ritmo dinâmico, como o de flashes que se sucedessem como golpes fulminantes, no conto seguinte “Três Cunhadas – Natal 1960” a admiração se mistura a uma empatia que se comunica, quase que fisicamente, de cada frase ao olhar entorpecido pelo “e eu com isso? Danem-se, ora!”
Dalton Trevisan já fixou mulheres carnosas, comedoras compulsivas de bombons que as tornam mais elefantoídes, a sonhar com delírios carnais em um de suas histórias da Curitiba vitoriana e secretamente inibida. Mas João Antônio transmite ao leitor uma sensação diferente daquela que o mundo de Dalton Trevisan filma em seu Museu de Cera surrealista, misto de Mme. Tusseaud e Fellini na sua monstruosidade fascinante. Ele compartilha com quem o lê a perplexidade de estar vivo, a dor de viver ser limitada por uma visão tão quadrilátera, tão sem saída nem sentido de aventura de existir: é um profundo niilismo que ele encaixa tomando como inspiração a comemoração sardônica do Natal comercializado e abastardado pelas super vendas e pelas marchinhas filosófico-conformistas de Papais Noel ridiculamente ataviados nos trópicos.
“Eu pensei que todo mundo/ fosse filho de Papai Noel/ Papai Noel/ Vê se tem a felicidade/ Pra você me dar” para chegar à conclusão final: “Com certeza já morreu/ Ou então felicidade/ É um brinquedo que não tem/ Já faz tempo que eu pedi/ Papai Noel”.
O presente para as três cunhadas “coroas” que moram no Catete, uma delas funcionária pública que mal ganha para si e no entanto sustenta um parasita, outra lavadeira amásia de um preto cozinheiro do Morro da Catacumba, a terceira querendo achar no televisor imagens de uma vida presumivelmente menos sórdida em Niterói – que presente dar para aquelas três irmãs proletarizadas que são uma forma menos fina, mas igualmente melancólica das três irmãs de Tchekov, que reaparecem, não em plena Rússia tzarista do século XIX, mas perdidas entre as palmeiras do Largo do Machado? E não é assombroso conseguir com recursos mínimos – o mero aceno à mãe velha e abandonada no interior – extrair uma elegia urbana tão sem remédio, sem apertar os condutos lacrimais do leitor?
Mesmo a terceira história, do Malandro de Perna Torta e sua queda, incorpora um palavreado quase de dança ou ginástica, de luta corporal e de ardil mental para ludibriar a polícia, os políticos, os poderosos do momento – “o tenderepá explodia, balanguei o corpo, capengando, capiongo, para fintar a polícia, os milicos ligados aos guanacos trabalharam na crocodilagem de emboscar, encachorrados e campanando na espreita, fisgaram e apagaram o malandro Sarracura”.
Só em algumas peças de dramaturgia brasileiras as encenadas e as proibidas de Plínio Marcos, de Nélson Rodrigues e da primeira fase do Teatro Arena em 1959 – explodiam com essa vivacidade verbal que exprime um mundo novo, sem paletó nem gravata, um mundo de fome e imediatez, que não tem tempo para essas mumunhas, não.
É um tipo de literatura visceral. Nela o instinto, principalmente autobiográfico, conduz ao estômago, ao sexo, ao coração.
Não se espere dela um tratado de elocubrações sociológicas ou intelectuais nem um desfiar de arranjos estéticos maravilhosamente ajustados e harmoniosos no seu teorema artístico-intelectual. Não: João Antônio tem a honestidade quase que corporal, de tão ética, de compor, com este admirável Leão de Chácara, a parábola do povo que, como indica o desdém usado pelos que expulsam de lugares privilegiados a raia miúda, “não está com nada”.
É animador pelo menos que a gestação penosa de 1975 tenha atravessado o betume espesso da estupidez dotada de carimbos e “imprima-se” para desmentir o conluio deslavado da TV mediocrizada pelo sorriso robô de Sílvio Santos, pelo conformismo lacaio dos filmes-propaganda de Jean Manzon e Primo Carbonari que incutem em um povo dócil um conformismo acaciano e cloroformizado. João Antônio, em cada parágrafo, parece estar bradando:
- Estou vivo! Sem dentes, cheio de muxibas, mas sentindo e agindo reto como posso, com o coração atônito, mas que pulsa com sangue, sem sofisticações, aqui como numa letra saída do samba de morro, sem pactuar com a demagogia colorida de um samba-enredo bajulante e de lantejoulas telegênicas.
Ele prova que a literatura se faz também, mas não somente com os requintes intelectuais, a grandeza e os labirintos deslumbrantes de novelistas complexos como Tolstoi, Svevo, Musil, Proust, Virginia Woolf, Joyce. A literatura popular no sentido menos conspurcado do termo não é para gourmets de paladar cosmopolita. É de veio grosso mesmo, de bitola estreita, diamante bruto garimpado com as próprias unhas, cheia de cortes, ferimentos de garra, facão e teimosia de durar.
Mas em um país atualmente raquítico de qualquer cultura como o Brasil, este anagógico Leão de Chácara é quase uma aleluia, pois é realmente o latejar do vulgar que se eleva ao sobrenatural.
É um milagre que dignifica o volumétrico “milagre econômico”. É uma oposição à rudeza mecânica do Produto Bruto Nacional em crescimento que a cada porcentagem de aumento material acrescenta páginas que crescem entre as torres das comunicações, das eclusas das hidrelétricas e se espalham por entre o arame farpado das cercas da censura prévia, esse anticoncepcional da inteligência e esse Diu colocado à força na faculdade de pensar da cavidade craniana brasileira.
Ao PNB ele traz um vivificante PSA, um Produto da Sensibilidade e da Autenticidade tangido das nossas editoras por uma geada de comodismo e de irresponsabilidade. São taxas de crescimento do PSA nacional difíceis de aquilatar as que este livro bárbaro e garnizé nos traz. Pela sua hombridade, pela sua força, pelo seu talento é uma tomada buñeliana quase, em prol dos olvidados, os esquecidos formigueiros da gente miúda. Ele já tem seu lugar seguro na nossa gratidão e no processo social constitui um corpo de delito e uma peça incriminatória cuja exemplaridade não pode deixar de falar – eloquentemente – por todos os que temporariamente não podem ou não sabem falar.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {O livro que deu um soco em nosso crítico},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/01-joao-antonio/01-o-livro-que-deu-um-soco-em-nosso-critico.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1975-8-23. Aguardando revisão.}
}