Sobre Carrillo, o espectro de Stalin

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1978/08/12. Aguardando revisão.

A Greve Nacional Pacífica: três iniciais maiúsculas e carismáticas: GNP! Ela sempre fora uma obsessão do secretário-geral do Partido Comunista espanhol no exílio, em Paris: Santiago Carrillo.

A Greve seria a explosão que destruiria o franquismo em 1959, a pura virtude mágica dessa palavra daria a todos acesso ao sonho, a uma realidade nova, a uma ação quimérica, mitológica, adiada mês após mês, ano após ano, mas sempre iminente, sempre prestes a eclodir.

Assim como a Santa Mãe Igreja precisava de um punhado de sábios para explicar aos fieis militantes as sutis passagens dialética da inicial Greve Nacional Pacífica e em seguida à Ação Democrática Nacional – todas ordens do dia do Partido Comunista Espanhol – para explicar sua constante maturação objetiva, mas para sempre incapaz de se objetivar a não ser por um processo de subjetivação na consciência esquizofrênica e dicotomizada dos militantes do Partido.

Assim, a Greve, com o passar dos anos, corroída internamente pelo câncer da ilusão ideológica, em vez de ser o objetivo estratégico de uma praxis de massa realista, capaz por si própria de modificar pelo menos parcialmente a realidade social, transformou-se no travesti de uma justificação quase religiosa de uma política pragmática, oscilando constantemente entre o ultra triunfalismo oco e o oportunismo mais inconstante. Quem sabe uma nova ironia da razão histórica metamorfoseada em GNP na derradeira encarnação do Espírito Absoluto hegeliano, o motu próprio da Consciência do Partido – ou mais exatamente de Carrillo que era a sua personificação demiúrgica – do Em-si rumo ao Per se criador de sua própria objetividade ideal, no mundo ilusório da representação? Como se bastasse modificar esse universo de representação, de avançar ou reter essa ou aquela palavra de ordem e com isso modificar de chofre o universo opaco e resistente da realidade. In hoc signo vinces: mas eram palavras escritas com fumaça na nuvem dos sonhos enganadores e o subjetivismo traidor da realidade continua a ser uma doença específica do comunismo espanhol: com esse signo os comunistas perderam.

Nuestra bandera, a revista mensal de orientação política, cultural, econômica editada pelo Partido Comunista Espanhol no exílio francês, decorava inutilmente de um friso os perfis marmóreos dos Quatro Grandes – sim, quatro como os mosqueteiros ou os evangelistas – Marx, Engels, Lênin e Stalin: nela constavam os versos da fase stalinista de Frederico Sánchez, pseudônimo político do escritor espanhol Jorge Semprun, versos de endeusamento da Pasionária, mas nenhuma contribuição de... Santiago Carrillo. Nem a terminologia fortemente impregnada de misticismo fanático cristão de Dolores Ibárruri, la Pasionária, serviram para reconhecer as condições objetivas da realidade. Ao contrário, opunham-se com seu subjetivismo álacre-trágico-triunfalista à obtenção da meta de transformar o mundo real:

“É preciso ter-se uma Fé apaixonada na Causa que se defende. É preciso querer triunfar às avessas e contra o Céu e o Inferno se o Céu e o Inferno se atravessarem diante de nosso caminho.”

Já desde 1947, portanto, germinava o enxame de erros que levaria o comunismo espanhol cada vez mais para longe do real. O real que os comunistas se recusavam a ver é que o turismo, o desenvolvimento econômico, o emprego de milhões de espanhóis no estrangeiro, da Venezuela e à Alemanha, enriqueciam, o país, apesar de Franco. O regime franquista não estava à beira da ruína, das sublevações populares. Nenhum dos elementos enumerados pelo Partido fora real a não ser parcialmente: o sentimento autônomo das regiões bascas da Catalunha, da Galícia, o repúdio das nações capitalistas que já duvidavam da eficácia do regime franquista, a virada da Igreja, que por milenar instinto de conservação começara a pressentir que devia abandonar o barco franquista que soçobrava e começava a opor-se publicamente ao regime do Generalíssimo, a estrutura militar que se bipartia.

E quem desfiara, como um rosário, tais “dados” numa reunião plenária do PCE? Santiago Carrillo, dia 21 de março, em Montreal.

Jorge Semprun não hesita nem mede palavras: Santiago Carrillo mente, falsifica, exagera, engana os militares com suas advertências pueris e aberrantes de que a Greve sacrossanta põe ao alcance das mãos das massas trabalhadoras a arma que, junto com os demais fatores já mencionados, porá fim ao regime franquista. A Greve seria a arma que os operários espanhóis souberam, com galhardia, brandir em 1917, 1930, 1934 e 1936. É um espectro, esse da Greve, que Carrillo nunca deixou de agitar, até 1975, durante a segunda conferência nacional do PCE reunida poucas semanas antes da agonia final e biológica de Franco. Nem a mudança de siglas, de Greve Geral Pacífica (GGP) para Greve Nacional Política (GNP) ou até para uma ampla Ação Democrática Nacional (ADN) altera a realidade, quando sucumbe a efêmera Junta Democrática (JD) que em seu leque abarcava desde o aristocrático José Luís e Villalonga e uma princesa de Borbon-Parma até militantes descrentes de juntas, ações, greves e siglas que negavam simplesmente a realidade política, econômica, cultural da Espanha nos espasmos finais do franquismo, mas com um rendimento per capita incomparável ao per capita pré-franquista.

A realidade demonstrou que a Espanha, após a morte do Generalíssimo, passou sem derramamento de sangue (o que a revista alemã de centro-esquerda, Der Spiegel intitulou, em extenso artigo da capa, “O Milagre Espanhol”) a uma democracia, com eleições abertas a 121 partidos, com regime monárquico, prestes a entrar no Mercado Comum Europeu, sem que as greves nem as siglas tivessem causado o menor estremecimento no regime moribundo nem atingido o regime nascente e de transição ainda. Jorge Semprun emprega palavras duríssimas para denunciar a atitude teimosa de Santiago Carrillo de enfiar a cabeça na ilusão, tapando os olhos com areia, como a avestruz diante do perigo: Santiago Carrillo abriga em seu cérebro o gérmen de uma ideologia baseada no fantástico, ou seja, do fantasmático, no sentido psicanalítico do termo. Quem sabe Santiago Carrillo não é uma grande vocação de astrólogo? Ou de escritor de obras de ficção científica? Ou poderia escrever folhetins como os do tipo das telenovelas?

Para o ex-militante comunista expulso do PCE em 1965, durante uma reunião kafkiana em um castelo de Praga, para Jorge Semprun, o marxismo é como o cristianismo para os cristãos antes da institucionalização da Igreja: uma doutrina pura, uma análise objetiva dos fatos reais, assim como o cristianismo é uma doutrina de fatos reais, mas com raízes que transcendem e antecedem o real.

Autor dos roteiros de Z, A Confissão, La Guerre est fini (este último sob a direção de Alain Resnais), escritor, em francês de uma obra-prima literária de meditação política como A Segunda Morte de Ramón Mercader, premiado em Paris com o Fomentador, o Fémina, Jorge Semprun na magnífica Autobiographie de Federico Sanchez (Editions Seuil, Paris) publicada há pouco ataca o que considera a hipocrisia e a mentira de Santiago Carrillo e seu aparentemente democrático eurocomunismo. Vai mais longe: nega que Carrillo possa ser marxista, pois o marxismo parte da premissa de analisar concretamente uma situação real, concreta. Ele ataca o dirigente do PCE em todos os flancos: no plano linguístico inclusive. Não só o exílio longo na França introduziu no vocabulário do PCE galicismos em excesso como permitiu a desagregação da linguagem quando levada ao paroxismo de um otimismo sem base. De fato, porque as greves operárias seriam combatidas “com galhardia”, que “galhardia” há no sangue, na bala, na morte? Ataca-o no seu flanco autista, do doente mental que só vê o próprio umbigo e para o qual não existe a realidade circundante: Carrillo é uma espécie de Conselheiro Acácio que diz grãos de verdade enrolados em mentiras genéricas, em erros de apreensão e interpretação, portanto, é um descobridor de meias verdades e um proclamador de leviandades que envolvem risco de vida ou morte para o real progresso das massas exploradoras. No flanco cultural também, o PCE continua a esconder sob um pseudo-eurocomunismo, a perversão do “comunismo com rosto humano” de Dubcek deposto pelos tanques russos, a mesma intransigência stalinista quanto à submissão ao Partido, Altar Supremo, Papa do Deus Marx e da Santíssima Trindade Engels-Lênin-Stalin, na terra.

Pior ainda: Santiado Carrillo mente deliberadamente. Mente ao afirmar que o OCE libertou-se antes de todos os outros partidos ocidentais da influência sufocante do rolo compressor do comunismo russo, centralizado nas mãos do homem cujo nome em russo quer dizer de aço: Stalin. Carrillo declara em seu livro Eurocomunismo e Estado que a partir de 1943, no ano portanto em que Stalin dissolveu a Internacional Comunista, “Não me lembro – escreve Carrillo – de nenhuma modificação, de nenhuma decisão política importante sobre a qual, depois da dissolução (da Internacional Comunista por Stalin) nosso Partido, o PCE, tenha consultado previamente o Partido Comunista da URSS. No máximo, em determinadas ocasiões e de forma fortuita, porque coincidiam com as viagens que fazíamos à URSS por outros motivos – havia, naquele tempo, uma forte emigração espanhola – nós informamos o PCUS do que estávamos fazendo a posteriori”.

No capítulo 5 de seu último livro, As Raízes Históricas do Eurocomunismo, Carrillo insiste na plena autonomia do PCE, partindo do pressuposto de que a omissão cínica e proposital e a mentira possam substituir as provas em contrário.

As provas em contrário, Jorge Semprun as possui abundantemente. Impiedosamente lança todos os fartos capazes de “refrescar a memória” daquele que chama ironicamente de Grande Timoneiro acometido de amnésia: A verdade é que em 1948 – ou seja: cinco anos depois de dissolvida a Internacional Comunista -, exausta de tanto bater com a cabeça contra a parede, de dar murro em ponta de faca, a direção do PCE foi à presença augusta de Stalin em Moscou para ouvir aquele Oráculo onisciente: a delegação se compunha de Santiago Carrillo, Dolores Ibárruri, la Pasionária, e Francisco Antón. E foram as diretrizes decisivas de Stalin, Deus da Teoria e do Gulag, que motivaram a mudança de estratégia do PCE. “Se é isso que Santiago Carrillo batiza de autonomia, só nos resta virar monges, todos nós!”

O primeiro dirigente comunista espanhol a fazer alusão ao papel-chave desempenhado por Stalin, Deus-Pai no Kremlin como na Terra, foi Enrique Líster, no capítulo 3 de sua obra Chega! (Ça suffit!) Líster define claramente a estratégia delineada draconianamente por Stalin diante dos delegados espanhóis boquiabertos: dissolver os sindicatos clandestinos, aderir ao sindicatos fascistas oficiais, aos quais por lei todos os operários espanhóis tinham que aderir, e extinguir os focos guerrilheiros.

Líster, em si, não tem mérito maior. Ele é como o cachorro de marca de discos e vitrolas RCA Victor: ouve e repete, ladrando, a voz do dono. E quem é o dono ou melhor quem são os donos? Brezhnev, Suslov e Ponomarev, que usaram a vaidade de Líster, velho general derrotado, que se prestou a desmascarar Santiago Carrillo quando este condenou a “doutrina Brezhnev”, que “permite” aos tanques e aviões soviéticos “ir e socorro” de qualquer “república autodenominada socialista” capaz de cair em mais de contrarrevolucionários, como em Budapest em 1955 Kruschev já esboçara a doutrina do glorioso Presidente Total da União Soviética vergando sob o peso das medalhas, automóveis estrangeiros da sua coleção particular, e de “genialidade” na manutenção do neocolonialismo russo. Carrillo condenara a invasão da Tchecoslováquia em 1956? É preciso atá-lo “em seu flanco esquerdo”, segundo os ditames sagrados do leninismo, já que a única salvação, como na Igreja, está no Comunismo Soviético, , sem heresias de dissidentes internos ou externos. Semprun nega a Carrillo até mesmo o epíteto de verdadeiro democrata: Carrillo usa mil máscaras, adota mil estratégias para corrigir os erros passados, fruto da falta de análise da realidade, substituída pelo wishful thinking ou seja a cegueira de colocar em vez do que existe autenticamente e de forma verificável os nossos desejos grandiloquentes, mas inconsistentes. Carrillo usa a Realpolitik como mera manobra pragmática, sem imaginação, sem estratégia lógica, sem consultar os militantes comunistas, adaptando-se como puder à realidade, mas para dobrar-se diante dela e não para transformá-la. Mesmo assim, não se pode deixar de reconhecer, honestamente, que comparado com o neoimperialismo de Brezhnev que utiliza Fidel Castro como o tubarão que fará os outros povos assumirem a posição das águas em que nadará o comunismo à vontade (segundo a fórmula herética, mas prática de Mao Tsé-Tung), o proposto pluripartidarismo de Carrillo, talvez puramente verbal, quem pode prever o futuro? (Castro não enfeixou todos os poderes só depois que chegou ao poder?) é, sem dúvida, uma política de esquerda, acredita Semprun.

Mas há provas mais graves e palpáveis contra Carrillo.

Líster em seu panfleto Chega! denunciara uma prática tipicamente stalinista de Carrillo. Sem mencionar os processos stalinistas citados pela mulher do poeta russo Ossip Mandelstam em seu livro O Século dos Lobos (Der Jahrhundert der Wölfe, Fischer, Alemanha Ocidental), Semprun chega às mesmas conclusões. Enquanto o Paizinho de Todas as Rússias, Stalin, mandava prender na Sibéria todos os soldados e os prisioneiros libertados de campos de concentração nazistas, Carrillo fazia o mesmo: “Eu acuso Carrillo de ter constituído um Tribunal encarregado de instruir os casos jurídicos e de levar ao interrogatório todos os companheiros que voltaram dos campos de concentração nazistas na Alemanha. O mero fato de não estar morto transformava cada um deles em suspeito e culpado de traição. Carrillo sustentava que se alguém escapara com vida é porque se tornara Kapo, carrasco e delator de seus próprios camaradas”.

Foi exatamente o que aconteceu. Jorge Semprun esteve preso no campo de concentração hitlerista de Buchenwald, mas trabalhava lá no Departamento de Estatística, ao lado de Frank, um companheiro comunista tcheco. Resta o fato inegável que Carrillo submeteu os companheiros mais importantes que voltavam do cativeiro a interrogatórios policiescos e os afastou de qualquer responsabilidade política de monta, sofrendo sanções. Carrillo justifica-se no número de Nuestra Bandera, publicado em junho de 1945 em Toulousse: “É preciso combater o Partido Operário de Unificação Marxista (POUM)! É preciso barrar o caminho a todos os trotskistas, é preciso combatê-los e atacá-los onde eles se encontrarem, não porque sejam inimigos dos comunistas, mas porque são uma oficina, um laboratório do fascismo e sua missão é a de semear a divisão e a confusão no campo antifascista”. Semprun demonstra cabalmente o absurdo e a monstruosidade dessa segunda punição. Como a Gestapo, depois da derrota da Alemanha esfacelada em 1945, poderia ainda recrutar agentes para voltar atrás, fazer a ressureição do cadáver de Hitler no Bunker e mudar a História retroativamente, transformando a vitória dos Aliados na ameaça fantasmagórica de uma Gestapo que já estava totalmente desfeita?!

Carrillo encarna, para Semprun, o conceito metafísico-policiesco da História, que é um dos elementos básicos da ideologia stalinista. Seus sintomas evidentes são, sob o pretexto da vigilância revolucionária, a suspeição sistemática, o espírito de delação e de submissão, num clima de autêntica “caça às bruxas” levada a cabo pela vasta e elefantina burocracia do Partido e sua Política do Terror. Há um sincronismo arrepiante entre a deportação dos prisioneiros russos dos campos de concentração nazistas e o apavorante Gulag que dura até nossos dias na Rússia dita socialista: a única diferença é que Carrillo não está no poder, ou com outras palavras: é a existência de uma democracia burguesa que salva a vida e salvaguarda a liberdade dos proscritos.

Carrillo mente ou tem crises alarmantes de amnésia grave, prossegue, impávido, Semprun. Desmentindo a “autonomia” do PCE à qual ele alude levianamente em Eurocomunismo e Estado, Carrillo “se esqueceu” de uma longa entrevista gravada que concedera, dois ou três anos antes da publicação desse livro a Régis Débray e a Max Gallo, no livro intitulado Demain l’Espagne (Amanhã a Espanha).

“Em 1948 – declarou Carrillo – Stalin convidou uma delegação de nosso partido, composta por Dolores Ibárruri, Francisco Antón e por mim. Um encontro com Stalin... Eu o entrevira de longe uma vez, em 1940, mas tinha sido o único encontro que eu tivera com ele. Pra um comunista daquela época, ir discutir com Stalin era um evento. Dolores já tinha falado com ele uma vez – eu, nunca. Estávamos muito emocionados...” As citações verbatim seguem-se para desembocar em novo crime de Carrillo, cão fiel seguidor de seu dono Stalin: como Stalin e o Kominform tinham desencadeado sua ofensiva maciça contra o “herético” Tito e o grupo de dirigentes “dissidentes” iugoslavos, rebeldes à centralização sacrossanta do Kremlin. Carrillo não só tem uma memória tipicamente comunista, isto é: seletiva, só se lembra do que quer, como pior ainda ele omite que a “autonomia” do PCE se resumiu em 1948 a juntar suas artilharias contra Tito e os heréticos da Iugoslávia. Mesmo quando Stalin já tinha morrido, em 1953, a campanha prosseguiu, quando Stalin “já tinha sido jogado na lata de lixo da História”. Não importa: para o visceralmente stalinista Carrillo, Stalin continuava (ou continua?) sendo o Deus da teoria, o Corifeu da Ciência, capaz de forçar as leis da genética às leis mais imperiosas do stalinismo, seguido por um biólogo indigno desse nome, Lysenko, Stalin era o Patriarca (ou Pai Nosso?) que tem sempre razão, como se suas palavras fossem o único critério para se determinar o que era certo e o que estava errado. Carrillo não diz uma palavra sequer sobre o relatório infamante de Vicente Uribe, apenas três semanas depois do famoso encontro com Stalin, do PCE em Paris. Nesse relatório Uribe aprova, sem reticência alguma, todos os pontos de vista expostos pelo Kominform soviético: “Tito está à frente dos dirigentes iugoslavos que mantêm uma atitude e um comportamento que tomarei a liberdade de qualificar de indecentes, de escandalosos, de traidores com respeito à frente comunista internacional, com respeito ao campo democrático, diante da União Soviética e, afinal de contas, nocivo para o povo e para a classe operária e ao partido da Iugoslávia”. Uribe fala de degenerescência iugoslava, de perde de contato com a realidade (sic) e de monstruosidades (Número 29 da revista Nuestra Bandera, agosto de 1948).

Ao acolher as denúncias irrespondíveis de Kruchev no XX Congresso do PCUS das monstruosidades, essas, sim, reais, de Stalin, Carrillo faz uma autocrítica incompleta, quem sabe hipócrita? Fala da decepção dos comunistas espanhóis diante do que chama de incondicionalidade do Partido Comunista da União Soviética, que o PCE seguira como um rebanho de ovelhas. Por que ver em um partido, qualquer que seja, o selo de uma verdade incondicional e sem mácula? indaga Semprun, continuando: isso não seria negar a própria dialética essencial do marxismo que se for incapaz de autocrítica e de reconhecimento da realidade objetiva não é nada, além de ser, humanamente, possível de erros, pois a História é uma ciência inexata, pois lida com elementos imprevisíveis, os seres humanos e suas paixões.

Semprun corrobora, assim, todas as teses de outro “herético” proscrito como ele, o iugoslavo Milovan Djilas, que os stalinistas brasileiros suprimiram de qualquer discussão até hoje: Djilas aprofunda sua análise profética da “Nova Classe” russa hoje claramente perceptível na estratificação dos aparatchik, de obediência cega e rendosa às diretrizes omniscientes do Kremlin, e o resto da população. De fato, Djilas em The unperfected Society cria um neologismo não só em inglês como em todas as línguas indo-europeias: a Sociedade que não é aperfeiçoável no sentido absoluto do termo, que não pode ser aperfeiçoada ad infinitum justamente porque os seres humanos criam sociedades imperfeitas, não somos insetos como as abelhas nem as formigas, com hierarquias instintivas e existentes para a manutenção da própria espécie. Djilas, mais profundo filosoficamente do que Semprun, tira da física de Heisenberg o conceito de que, como na física há elementos imponderáveis, também na sociedade humana os há, sem que nada se possa fazer para corrigi-los a não ser pelo uso deformante da força totalitária da tecnocracia ou da burocracia estatal, tanto faz da Extrema Direita ou da Esquerda alucinada e deformada até salivar pavlovianamente diante de campainha (ou sino eclesiástico?) do partido, papa, papai que estais no céu.

O autor espanhol faz uma série de observações aterradoras a respeito de si mesmo, como nas Confissões de Rousseau ou de Santo Agostinho. Não sem uma pitada de humor terrível: provir de uma camada social burguesa, como ele provém constitui, para o partido, o pecado original. Foi o caso também de outro caído em desgraça nos processos stalinistas espanhóis: Jesus (ah, a ironia dos nomes!) Monzón, crucificado por ser “de origem e formação burguesas” (já começamos mal) e de ter conhecido diplomatas norte-americanos. Aí é o Espírito Santo se debatendo, tortuosamente, contra a tentação dos prazeres da carne imperialista. Consequentemente, rui toda a estrutura de mentira e terror que Carrillo e a Pasionária encobrem: “A Pasionária morrerá sem dizer uma palavra, sem dizer esta boca é minha. Ela não voltou à Espanha para falar, para relatas essas verdades sangrentas e miseráveis do passado. Voltou à Espanha para morrer. E morrerá sem emitir qualquer palavra sobre o assunto. Afinal, nenhum crente acreditaria que a Virgem de Fátima se meta a fazer discursos longos. Basta que sua efígie seja levada do alto dos altares diante da multidão prosternada”. O mesmo sucederá a Carrillo? Algum dia ele explicará a morte, pela qual Semprun o responsabiliza indiretamente, do líder comunista Grimau nas masmorras franquistas? Nunca ele dirá nada. “Simplesmente porque ele, Carrillo, tem necessidade quase que religiosa de identificar-se (com algo que ele crê que o transcenda). Por preguiça mental. Por uma falta absoluta de visão clara dos aspectos mais complexos da questão nacional espanhola. Por uma concepção aberrante dos fenômenos de lutas de classes.

E a farsa continuará, talvez para sempre. Josef Frank, que viveu ao lado de Jorge Semprun, no campo de concentração nazista de Bucheneald, foi “denunciado” e torpemente executado pelo Partido Comunista de Praga, submisso a Moscou. Heberto Padilla será “punido” pelo Partico Comunista Cubano, uma punição que ficará impune. Não foi Fidel Castro quem disse que “o Partido é tudo”? Então o Partido é o resumo e a concentração dos aspectos negativos da situação, todos os obstáculos encontrados na via hipotética só podem conduzir a uma solução. É preciso acabar com os partidos comunistas de tradição do Komintern!

Há como que uma nota de melancolia e desânimo que contradiz esse apelo à luta. Os cacarejos de Lênin sobre o Partido monolítico, “O Partido não é nenhuma galinha que precise de uma ala esquerda e outra direita” (jogo de palavras intraduzível porque em espanhol ala quer dizer ala e asa), os mitos sobre o Partido-Guia, o da União Soviética, continuarão embalsamados como o cadáver de Lênin em Moscou. Todos os jovens revolucionários que hoje entram no Partido não acharão mais arquivos onde está oculta a verdade porque esses arquivos terão sido destruídos ou são inacessíveis ao exame. Os jovens não saberão distinguir entre o verdadeiro Marxismo e suas deformações, como os católicos fanáticos não reconhecem os erros da Igreja e do Papa infalíveis. Entrar para o Partido será não saber que o Partido é que vai mudar os jovens e não ao contrário. Eles precisarão, se quiserem continuar fieis ao marxismo original, continuar fora do partido se não quiserem mudar e se quiserem permanecer autênticos revolucionários. É uma experiência que eles mesmos terão que enfrentar, como o próprio Semprun. Eles deverão destruir sua própria personalidade ou adquirir uma têmpera mais resistente, perder-se ou reencontrar-se consigo mesmo através dessa experiência. Nada – nem as”explicações” táticas de Santiago Carrillo – poderá jamais justificar ou perdoar a polícia política, a KGB, o campo de concentração do Gulag, a deformação da verdade, a tortura, a morte, o sangue. Nada.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2023,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {Sobre Carrillo, o espectro de Stalin},
  booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
    os despotismos e os totalitarismos},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {12},
  date = {2024},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/03-europa/03-sobre-carrillo-o-espectro-de-stalin.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Jornal da Tarde, 1978/08/12. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Sobre Carrillo, o espectro de Stalin .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.