Os novos tempos de Portugal
João de Melo, 39 anos de idade, agita o cenário literário de Portugal com seus temas acentuadamente polêmicos sobre o holocausto nas colônias africanas de tantas consciências e talentos numa guerra absurda, ordenada pela recusa da realidade que povoava a mente da ditadura salazarista; sobre a arrogência de Lisboa, apressada em tachar de “regionalista”, portanto menor, sem interesse geral, o que provém de Açores; sobre a influência fecundante do “realismo fantástico” latino-americano em suas obras principais de ficção: Gente Feliz com Lágrimas e O Meu Mundo Não é deste Reino.
Numa entrevista concedida ao Jornal de Letras lisboeta, o autor de Os Anos de Guerra aprofunda também a temática da emigração, rumo ao Brasil, à Argentina, à Venezuela, ao Canadá de muitos milhares de jovens portugueses e o isolamento que em alguns países esses trabalhadores sofrem por parte da população local. João de Melo, professor, deixa clara a sua opção por uma escrita simples, que possa tocar um número muito grande de leitores, ao contrário da escolha feita nos “romances magníficos mas de leitura difícil - como é, por exemplo, o caso dos da Maria Velho da Costa”.
Sua afinidade com o fantástico hispano-americano não o impede de saudar na atual literatura portuguesa um motivo de admiração, pela diversidade de suas vozes e pelo seu vigor artístico. Reconhece a pluralidade de literaturas escritas em português sem admitir uma hegemonia de Lisboa que seria hoje inaceitável. “O que é que pode haver de radicalmente diferente entre um espaço insular e um espaço urbano muito concentrado como Lisboa? Lisboa tem muitas ilhas, é um mundo de ilhas, só que não estão rodeadas de mar”. Esse elemento heterogêneo acentuou-se, a seu ver, depois do fim das guerras coloniais: Portugal hoje em dia flui e reflui entre os muitos que regressam de Angola, de Moaçmbique, e os que se espalham pelo mundo afora por meio da emigração.
João de Melo, apesar de jovem, já é autor de onze livros e crê na literatura sobretudo como uma disciplina, um trabalho árduo. Mas discerne claramente entre os que se isolam para escrever e os que não aceitam essa atitude: “De qualquer modo, escritor profissional fechado em casa a fabricar livros, isso não, porque me ia fazer falta a ligação com o real, o que redundaria em angústias e neuroses múltiplas e, sobretudo, num grande bloqueamento ao nível das ideias; e, possivelmente, repetir-me-ia de livro para livro. Não acredito na escrita de laboratório, mas sim naquela que mantenha todos os compromissos com a vida. Eu não concebo o escritor como separado dos outros, com uma vida à parte, um observador privilegiado do alto da sua torre, vendo os outros pequeninos cá em baixo, nas filas de trânsito ou bramando contra a carestia de vida e não sendo contaminado pelos seus problemas. Não. Um escritor tem que participar de tudo isso, sob pena de ser tudo menos escritor”. Provavelmente ele se esquece do exemlo de um Flaubert que, volntariamente exilado, misantropo, criou no entanto algumas das supremas obras literárias de toda a literatur, com Mme. Bovary, L’Education Sentimentale etc.
Com vários de seus irmãos emigrados rumo ao Canadá, João Melo reconhece que “a gênese do (meu) livro está, mesmo, numa das minhas viagens ao Canadá, em visita aos meus irmãos. Apercebi-me da enorme necessidade que eles tinham de contar a vida deles, fruto, por um lado, do enorme isolamento que lá conhecem, e por outro, de verem em mim um confessor da família. E então dei por mim a ouvi-los falarem de sua infância, dos seus casamentos, do seu cotidiano. Um deles fe-me a proposta de gravar os depoimentos, e tenho-os todos comigo. Começou então em mim um desejo de transpor isso, com as devidas distâncias, e sem incorrer na biografia para um livro no qual eu também me incluísse, e de forma aque a história dessa famíia fosse simultaneamente a história de um tempo português. Gente Feliz com Lágrimas creio que é isso: a história de uma família que faz ela própria o percurso e a leitura de um tempo português… Nunca me custou tanto escrever um livro como este. Dei por mim, por vezes, a fazer vinte versões do mesmo capítulo e sempre descontente com o produto final. O problema era a fuga do universo pessoal para o universo geral, para a captação do universo interior de um tempo português, que é um tempo disperso. Há coisas nele que ainda não aconteceram e por isso ele poderá ter também uma dimensão futura”.
Em seu último livro, ele acentua principalmente o valor de uma “viagem interior”, onde a cronologia não existe para completar seu depoimento sobre a criação: “… As personagens são mais intemporais, desdobrando-se por uma amplitude temporal de quinhentos anos, há assim a ideia de um transporte, de um acumular de experiência que é transportada pelas mesmas pessoas, o que muda não são elas, mas o acumular de experiência dentro delas. Esta é a proposta fantástica do livro”.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Os novos tempos de Portugal},
booktitle = {Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns
escritores portugueses},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {6},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-6/17-tres-breves-noticias-sobre-escritores-ou-livros-portugueses/02-os-novos-tempos-de-portugal.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1988-12-12. Aguardando revisão.}
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