O Kama-Sutra de Trevisan, sem céu, inferno ou purgatório
Na Curitiba da pasmaceira, os amantes das estrelas distantes de Hollywood cortam os pulsos quando leem sobre o casamento de suas amadas inacessíveis, outros enviam à cantora da tela uma carta de amor em português castiço e com um falo ereto desenhado a nanquim no final. O campo de concentração do sexo de Dalton Trevisan raramente tem tropas aliadas para libertar seus prisioneiros daquele Auschwitz da luxúria paga com a vida. A libido é sinônimo do inferno: um beijo se purga com a impotência causada pela doença venérea, a empregadinha virgem é deflorada de pé junto ao balcão da firma pelo velho sátiro baboso, a moça “de programa” paga o romantismo da paixão pelo seu gigolô com o abandono em meio ao lixo. O amor só aparece nas canequinhas de louça barata, com um flamejante A maiúsculo, ondulado, vermelho, com fosforescências de amarelo.
Este esplêndido Virgem Louca, Loucos Beijos, do autor paranaense, é um salto mais à frente da exposição da guerra a ferro e fogo entre os dois sexos: lembra os quadros de Francis Bacon de corpos em decomposição, expressões animalescas no lugar que deveria ser o dos rostos, a decadência como uma autópsia de carne apodrecida em meio ao riso indiferente dos estudantes de anatomia. Ele cria um estilo novo, o do trágico de um grotesco hilariante, que sufoca o leitor na compaixão, no riso e no asco simultaneamente. São mulheres acorrentadas à sanha voluptuosa dos maridos que as obrigam a operações delicadas e ao uso de dolorosos cilindros para a cópula, ou mulheres homossexuais dispostas a “comprar” prostitutas bonitas para si, anãs corcundas violentadas por tenentes, ninfomaníacas que se entregam em mausoléus no cemitério, arfando entre um gemido de volúpia e a súplica entrecortada de soluços: “Você… quer seu meu avalista?”
Enfileirando quatro ou cinco frases, Dalton Trevisan esboça tragédias que escritores mais verbosos esparramariam por dezenas de páginas:
“Minha mulher não me compreende, Mais nada entre nós. Fez da minha vida um inferno. Só de pena dos filhos não me separo.”
“A careca debaixo do lençol branco, o médico repete o vergonhoso exame.”
“Mais sorte do nhô Silvinho Pádua. Deu catarata nos dois olhos. Só repetia baixinho: Meu consolo é que, em vez de nhá Zefa, vejo uma nuvem.”
Para quem imaginar que não há renovação possível nessa eterna luta de Marias e Joões, ele expande o seu cenário da fixação sexual: pedófilos de cabelos brancos sonham com seios de quinze anos, seduzidas abandonadas se exibem frenéticas, nuas na janela, que uivem os tarados de Curitiba, crédulas correm a fazer o despacho de madame Zora que assegura a aprovação no vestibular.
Os diálogos se tornam telegráficos, sibilados por vozes ríspidas e desesperadas, duros como arremessos na luta feroz pela sobrevivência a qualquer preço: alugando crianças para enternecer os participantes de orgias regadas a álcool e tóxicos, queimando colchões de filhas “desonradas” e expulsas de casa – todos usam as palavras como lápides assentadas sobre frustrações, desencantos, angústia. Ou então os diálogos se tornam inaudíveis, cada pessoa monologando sem que ninguém a escute numa lúgubre litania da solidão e do desamparo. Estes flashes de uma Sodoma e Gomorra paranaense têm, porém, uma coerência interna, não são apenas instantâneos do caos. Na longa estória que dá título ao livro, intervém um surpreendente final feliz, com a raríssima intervenção da bondade materna. Mas será bondade ou autoritarismo de quem só aceita de volta a filha impondo suas condições para a admissão ao lar? E na história final, o Tempo, esse elemento que nos livros anteriores era sempre um presente maléfico, o próprio Tempo se desfaz na conversa entre os irmãos velhos e seus resumos malignos de vidas inteiras massacradas na cidade maldita, como um sopro que exalasse de cadáveres em avançada decomposição.
Nesse cotidiano de um roteiro redigido por Sade e Masoch, as frases feitas enlaçam as situações mais lancinantes, como se a tragédia fosse parte do dia a dia banal indigno de menção mais demorada. A piedade desaparece quase sempre, a violência para com o próximo equivale à frase pichada no muro por um anônimo: “Merda p’ra Deus”, o materialismo não negado pelas crendices nos candomblés e “guias” de espiritismo a que recorrem, inutilmente, os últimos esperançosos.
Há outro elemento, senão inédito, pelo menos levado até extremos inéditos pelo autor de O Vampiro de Curitiba: a descrição explícita do coito, a insistência nos detalhes dos rituais da carnalidade levada ao delírio. Estranhamente, dessas missas negras não emerge o prazer, mas um frenesi inextinguível: nem a evocação de todas as imagens e termos pornográficos consegue diminuir um incêndio que seria ridículo classificar como apenas neurótico. A interpretação psicanalítica esbarra em Dalton Trevisan com uma dimensão maior do que os rótulos de satiríase, neurose ou complexos. É toda uma paisagem desolada e desoladora da condição humana, imelhorável, que o autor esmiúça sem farejar para ela nem esperança nem justificativa. Seria limitativa também a interpretação moralizante: estes contos apenas revelariam a ausência de códigos éticos entre os seres humanos e demonstrariam como se extirpa a dignidade que deveria estar implícita e preservada nos contatos sociais. Uma análise política se esboroaria com a mesma rapidez: nenhum regime político é capaz de abolir a cupidez dos corpos, a lascívia desenfreada, o ciúme, a inveja, a ambição – por mais que mudem as relações econômicas, não há saída desse universo concentracionário do sexo, a não ser pela coerção física, como nas fogueiras e masmorras da Inquisição ou nos centros de “liquidação dos degenerados” da Era hitlerista ou os atuais “campos de correção da sexualidade” castristas ou soviéticos.
Dalton Trevisan não se omite desse painel pan-humano: vislumbra já o que todo o movimento barroco antevira: tudo é pó, vaidade das vaidades, e tudo ao pó retorna – desprovido, porém, do sentido místico das Escrituras. A literatura brasileira, tem autores densamente pessimistas como Machado de Assis, trágicos como Graciliano Ramos, mas Dalton Trevisan possivelmente permanece como o mais niilista de todos, o que menos esboça qualquer tentativa de fé, religiosa, política ou existencial, que atinja os limites do próximo, sem um céu, purgatório ou inferno além-túmulo.
Por isso suas figuras, de livro para livro se repetem como silhuetas de uma lanterna mágica, mas com a diferença de que cada volume traz um tom mais abrangente à sua visão naturalista e grotesca desse Kama-Sutra inconsequente seus personagens vivem meteoricamente. Talvez o conto final seja uma lúgubre prestação de contas antecipada do futuro, como que o porvir repetindo mecanicamente o passado, o tempo não redescoberto, mas impassivelmente pleonástico, já visto e revisto. O breve frescor da carne se desintegra no físico: “Uma gota escorre até o cabelo crespo do umbigo. A dentadura mal ajustada, os grossos pingos no peito, a cueca rosa, que merda.” A lembrança não conforta: revela amplamente a decadência geral: não há saudade, não há recordações que não sejam cruéis e asquerosas. A longa conversa sobre a mudança de beldades difíceis na juventude e em trambolhos que pedem esmola, sifilíticas, hoje, demonstra a persistência do egoísmo mais cego, da maledicência deliciada com o exterior do próximo.
Nesta época em que o teatro de Harold Pinter e de Tom Stoppard mescla cada vez mais indissociavelmente a comédia com uma percepção trágica da vida, Dalton Trevisan pouco precisa incorporar do presente circunstancial do Brasil atual à sua narrativa que é uma longa e fascinante epopeia em torno da cama, esse móvel que Thomas Mann designava como o único metafísico, pois é nele que se nasce, se ama, se adoece, se sonha e se morre. O contista brasileiro acrescentaria apenas que a cama ou, em sentido lato, o sexo é indecifrável, embora codificado minuciosamente pelas religiões, cristã, judaica, muçulmana, do hinduísmo ao ayatollá Khomeini e definido pela Medicina, pela Biologia, pela Psiquiatria, pelos regimes políticos. O leitor se vê enroscado nessa impenetrabilidade que não permite distinguir o amor da posse, o desamparo afetivo do mercantilismo imediato. Dalton Trevisan não se diverte com esse jogo, como se percebe nas entrelinhas escassas, mas claras, nem tem a presunção de, ao expô-lo, mudá-lo. Imutáveis a condição humana e as ações dos homens uns para com os outros, o tempo não será outra ilusão efêmera? E o Mal mera perspectiva acanhadamente humana do ser?
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {O Kama-Sutra de Trevisan, sem céu, inferno ou purgatório},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/02-dalton-trevisan/10-o-kama-sutra-de-trevisan-sem-ceu-inferno-ou-purgatorio.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1979-12-15. Aguardando revisão.}
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