Dalton Trevisan
A Guerra Conjugal: muito antes das feministas, explodia esse Vietnam dos dois sexos divididos pela hostilidade da união. Trinta contos, quase todos curtos, em que todos os homens são João, todas as mulheres, Maria. E um caleidoscópio com os mesmos vidrilhos coloridos que só mudam de posição e de relação, presos no Inferno pessoal da solidão a dois.
Em “O Senhor Meu Marido”, João, garçom do bar Buraco do Tatu, adora a mulher adúltera e, cada vez que ela o trai, muda de bairro em Curitiba. E o lado grotesco é de um patético hilariante da devoção cega: de bairro em bairro a Maria ninfomaníaca vai semeando novas filhas, Maria da Luz, das Dores, da Graça. Subia “gloriosamente pela porta da frente, sem pagar passagem”, num ônibus cujo motorista era seu amante. Perdoada pelo marido manso e que a considerava única, “não foi que a encontrou atirando beijos para um sargento de polícia?”
O estupendo, o maravilhoso nos contos sucintos de Dalton Trevisan é sua captação agudíssima de todos os mitos populares, as frases-chavão: “agora era dona casada e não podia conversar com qualquer homem”, ou “procurei sempre trazer conforto para casa. Nunca fiz questão de despesa”. Elas são o metralhar contínuo da guerra dos sexos, essa “Ilíada doméstica” como o próprio escritor curitibano a chama. Uma Ilíada em que uma Helena paranaense, depois de roubada, desbotasse e provasse que não valia a guerra que por ela se armou. Ou uma Odisséia em que Ulisses percorresse mares e terras par anão deparar em casa com uma Penélope megera a esperá-lo não com ansiedade, mas com requintes de vingança e ódio. No decurso dessa guerrilha do leito nupcial até o caixão, o “até que a morte nos separe” do ritual religioso soa mais como uma libertação e um alívio daquele estado de sítio dos sentimentos.
A grandeza de Dalton Trevisan está em dar à literatura urbana do Brasil talvez a mais insólita e pungente Seleções do Kitsch já reunidas nas Américas. Dalton Trevisan coleciona os tabus e os ideais populares e traz para o leitor um álbum amarelecido, de fotografias cafonas e poses de cartão postal colorida com purpurina. Quando um marido investe contra a esposa que o trai diante de suas próprias fuças, o melodrama latino hesita entre o riso e a lágrima: “Investiu furioso, correu o amante, de joelhos a mulher anunciou o fruto do ventre”. E toda uma subcultura de “Ceia Sagrada” de Leonardo da Vinci, de prata, entronizada sobre a mesa de jantar que brota dessa frase: é toda a iconografia católica de mau gosto, de Virgens desfalecidas diante do Anúncio feito pelo Anjo, reproduzidas em estampas de vintém que aflora na mente popular e que o autor com sabedoria e dosagem perfeitas recolhe e engasta na sua rede do cotidiano que roça sempre pelo metafísico.
O banal contém sempre uma ânsia de superar-se que frequentemente leva a uma transcendência do próprio prosaísmo. Só aparentemente Dalton Trevisan é um naturalista: quando um João sente saudades da Maria de quem judiava, mistura sua angústia com o aspecto prático-nojento: “se não era ela, que lhe espremia as espinhas das costas?” A mulher insaciável de machos deixa uma carta insultuosa ao marido traído presa no espelho com goma de mascar. Em “Devaneios do Professor de Filosofia” a prisão de ventre da Maria envelhecida rima, estapafurdiamente, com a prisão física do João, velho sátiro encarcerado pela idade, pelo decoro e pela mulher tirana, sonhando com jovens apetitosas e redigindo cartas-convites para encontros lascivos apenas sonhados. Não importa a disposição dos Joões e Marias, o tema invariável é o do desamor, o de pessoas que vivem justapostas fisicamente, mas se desconhecem e não se comunicam.
Seria Curitiba um Inferno menor, que mal aparece nas manchetes dos crimes passionais? Seus habitantes seriam uma estranha e humaníssima fauna de machões sufocados pelo sexo frustrado e de mulheres reprimidas mesmo quando cobiçadas? Ou Curitiba seria um vasto divã psicanalítico em que maridos impotentes oferecem a esposa a médicos sádicos, que gostam de queimar as mulheres com cigarros antes de possui-las? Ou machos masoquistas que fantasiam orgias com suas Marias-Vênus nuas de botas pretas a vergastá-los com chicotes de pregos nas pontas?
Curitiba, irmã da Dublin de Joyce, é aquela viagem longa de um escritor perscrutando sua cidade por dentro, em suas motivações sublimes ou cruéis, injustiças sociais monstruosas e dedicações de uma fidelidade heroica nunca compensada, de sonhos nutridos por revistas femininas, por programas de rádio melosos e horóscopos mentirosos, Capricho e Ilusão que se revelam realidades sórdidas e macabras.
Dalton Trevisan não registra apenas essa cornucópia de lubricidade insatisfeita, de maridos temerosos de serem assassinados com vidro moído na comida pelas companheiras que martirizam. Ele faz mais: adere inteiramente às crenças e códigos morais de suas personagens. Não há distanciamento no relato: é de nós, é de si mesmo que ele fala, e sobre sua condição de auto-inspecionado que ele escreve. Modestamente, ele se acharia o último lambe-lambe da praça central de sua cidade, quando toda a sua esplêndida galeria de contos prova, livro após livro, que ele é o sutil e o mais poroso de todos os retratistas. É o fotógrafo que se identifica com o grotesco dos retratados, o rococó das poses refletido no rococó das frases retóricas, cápsulas do lugar-comum.
E uma Maria que forçada pelo marido beberrão contumaz a “desfilar nua com a luz acesa” no quarto, recorre à umbanda e cai da Tenda Divina para a pensão Bom Pastor, onde a polícia, instruída pelo marido, vem pegá-la em flagrante adultério. Sob a cama seus bilhetes rascunhados, uma para o amente outro para Nossa Senhora, a Virgem Imaculada: “bem sei que não condenas um amor puro, olha esta pobre mulher tentada, que sempre teve boa intenção, agora sem força para repelir o demônio”.
O admirável autor de A Morte na Praça, A Guerra Conjugal, O Cemitério dos Elefantes, O Vampiro de Curitiba e o Pássaro de Cinco Asas não cabe na rotulação esquemática de “um moralista”. E excetuando o Marquês de Sade, que escritor não é um moralista à sua maneira? (e talvez até o Divino Marquês tenha uma coerência ética imperceptível pelos padrões normais). Dalton Trevisan parece uma encarnação literária de Bosch: suas preocupações são todas religiosas, suas histórias desembocam sempre nos pecados capitais: a avarice, a luxúria, o orgulho, a inveja. Nunca, porém, são óbvias, nem meras constatações: o homem é egoísta, o mundo é mau, vamos amar o próximo?
Não. Entre tantas obras-primas, verdadeiros hai-kais da alusão mínima, do máximo de impacto com o mínimo de palavras, um conto como microcosmo desse cosmo maior, a aflição do ser humano, “Cena Doméstica” (do livro A Morte na Praça) ressalta como uma espécie de resumo ou Revelação teologal desse painel curitibano-universal. Desta vez, não é um João, é Pedro que judia de uma Amália amantíssima e silente sofredora. Como em um filme de Buñuel, o medo da morte acirra a maldade do marido contra a esposa minuciosamente espezinhada e atormentada:
“Eis que a morte chegou para o homem como chegara para o pintassilgo. Ficou de olhar parado nos alimentos: uma língua alheia na boca. Batia-se nas portas, a colher escorregava da mão, antes forte, ainda cabeluda”.
Se ele tinha que morrer, por que não extrair o último sumo de sadismo inútil daquela escrava dócil? Contra a velhice que o prendia mais e mais em sua armadilha, o antídoto que o distraia: vê-la sofrer, acusá-la, ignorá-la, quem sabe seu ódio apagaria tanto amor?
A memória se indagava: “há quantos anos não beijava Amália?” Seus olhos abertos constatam a resposta muda: “Ela o amava e nenhum sentimento era mais penoso”.
O escritor compartilha, assim, da aguda visão social de Sartre, quando em uma de suas encarceradas de Entre Quatro Paredes (Huis-Clos) grita: “O Inferno são os outros”.
Mas, no âmago da sua angústia contagiante lateja mais forte e mais funda a anotação de Santa Teresa de Ávila: “O Inferno é onde não existe o amor”.
Curitiba é um dos círculos deste Inferno plural onde a guerra só é apaziguada, não pelo amor, não mais onipotente, mas pela morte – na praça, no bordel, na cama, no hospício.
A recompensa maior destes quebra-cabeças propostos pelo autor está em seu mistério e na multiplicidade de suas interpretações.
Dalton Trevisan é um Dante que atravessou o limbo ou um Lázaro que passou pela morte espiritual?
São raros, em qualquer literatura, os autores que formulam à argúcia do leitor charadas perenes sobre o homem, eterno carrasco de quem o ama. Com Dalton Trevisan, finalmente, buscar essas adivinhações não é sinônimo de achá-las em textos estrangeiros. Elas estão aí, publicadas, em todas as livrarias, quem sabe até encomendáveis pelo reembolso postal? São álbuns instantâneos do brasileiro, ser universalizado pelo estilo perfeito deste “vampiro de almas” e radiologista da psique deste povo feito de Joões e Marias amantes e desamados.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Dalton Trevisan},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/02-dalton-trevisan/05-dalton-trevisan.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1975-5-17. Aguardando revisão.}
}