Que mistérios tem Clarice Lispector?

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1969/02/05. Aguardando revisão.

Uma mulher que gosta de crianças, gatos, cães, galinhas e insetos. Uma mulher que nunca mente para as crianças. Uma mulher que se pudesse escrever “passando a mão na cabeça de uma criança ou dando um passeio, não usaria mais uma só palavra”.

“- As coisas acontecem porque devem acontecer. Nunca pensei escrever livros para crianças. O primeiro surgiu de um pedido de meu filho Pauluca, há muitos anos, e o outro, de uma sensação de culpa da qual queria me redimir.”

Em seu apartamento no Leme, no início de Copacabana, Clarice tem conforto e recordações do tempo em que era casada com o diplomata Maury Gurgel Valente. Lá passa a maior parte de sua vida, entre livros e quadros, todos presentes de seus amigos.

Suando muito por causa do calor forte, a escritora fala do Mistério do Coelho Pensante, o conto infantil escrito em 1957.

“- Pauluca tinha três anos, morávamos em Washington. Uma tarde pediu-me para escrever uma história para ele. Pensei muito e cheguei a achar que não teria condições. Aí me lembrei de um fato ocorrido em casa.”

Clarice quando fala agita constantemente as mãos, ajeita o cabelo, limpa o suor da testa. Seu vestido estampado parece indomodá-la. Ela engordou muito.

“- Nos fundos de nossa casa tínhamos um casal de coelhos brancos dentro de uma jaula de grades pequenas, com uma tábua pesada cobrindo. Uma manhã, quando fomos dar comida a eles, ficamos sem saber o que havia acontecido. Os coelhos tinham sumido. Ninguém de casa sabia o que tinha acontecido, era um mistério.”

Daí, O Mistério do Coelho Pensante, escrito inicialmente em inglês e traduzido depois para o português. Quando o livro foi colocado à venda, Clarice recebeu dezenas de cartas de crianças sugerindo soluções para o “mistério”.

“- As cartas das crianças continhas as mais variadas soluções. Algumas que me recordo: acusavam os”grandes” de terem matado os coelhinhos e “depois virem com a desculpa de que eles haviam sumido”. Outras diziam que os coelhinhos eram tão fortes que haviam separado as grades e fugido. Outras ainda afirmavam que de noite um coelho grande e poderoso os havia libertado do cativeiro”.

Clarice, quando fala das crianças, parece transportar-se para sua infância em Recife, onde seus pais, imigrantes russos, encontravam uma série de dificuldades financeiras e de comunicação com as pessoas.

“- Nunca gostei de ficar em casa. Sempre que podia estava na calçada querendo encontrar alguém para brincar. Apesar de não ser extrovertida, sinto grande necessidade de afeto e carinho. Por isso, quando via um menino ou menina passar na porta de casa perguntava:”você quer brincar comigo?” Os “não” eram muitos, os “sim” poucos”.

Foi em Recife que Clarice começou a escrever.

“- O Diário da Tarde de Recife tinha uma seção às quinta-feiras dedicada às crianças. Ali eram publicadas as melhores histórias enviadas pelas leitoras mirins, com sorteio de vários prêmios. Nunca ganhei nada. Depois de muito pensar encontrei o porquê: todas as histórias vencedoras relatavam fatos verdadeiros. As minhas somente continham sensações e emoções vividas por personagens fictícios”.

A necessidade de transmitir seus sentimentos e esquecer de si mesma fez com que seu primeiro romance - Perto do Coração Selvagem - fosse uma surpresa para a crítica e para ela própria.

“- O livro foi lançado sem a menor pretensão. Eu era solteira, morava no Rio e namorava Maury. Não acreditava no livro e a aceitação pela crítica foi tão surpreendente que fiquei feliz. Sérgio Milliet dedicou-me um rodapé da sua coluna. Imediatamente outros críticos fizeram o mesmo. Foi a realização.”

Clarice preparou esse livro durante longo tempo. De sua chegada ao Rio, aos 13 anos, até os 18, trabalhou nele.

Depois veio o casamento. Com ele a “inspiração aumentou e a produção literária também”. Clarice terminou o curso de Direito na Faculdade Nacional, depois de casada.

“- O meu diploma foi conseguido somente por pirraça. Uma amiga, cujo nome não vou dizer, disse quando estávamos no terceiro ano:”você é dessas que começam um monte de coisas e não terminam nenhuma”. Isso me aborreceu e para provar que ela estava errada comecei a estudar das sete da manhã até às 11 da noite, parando apenas meia-hora para almoçar e uma hora para jantar”.

O diploma não servia para Clarice. Morou em vários países, o marido diplomata. Itália, Suiça, Inglaterra e Estados Unidos. Ficou seis anos em Washington. Nessas andanças nasceram seus dois filhos, Pedro, hoje com 13 anos e Paulo, com 16. O primeiro nasceu na Suiça e o caçula nos Estados Unidos.

O segundo livro infantil de Clarice nasceu da “necessidade de redimir-me de uma falta”. Seu filho mais velho tinha verdadeira adoração por uns peixinhos vermelhos. Clarice deixou-os morrer de fome. Esqueceu de lhes dar comida durante três dias.

“- O fato me incomodou muito tempo. Sempre me perguntavam quando iria escrever novo livro infantil e eu respondia: nunca mais. Até que cheguei à conclusão que se escrevesse várias histórias iniciando-as como a dos peixinhos vermelhos, poderia me livrar da sensação de culpa”.

Nessa época, Clarice já estava separada do marido. A pensão não era suficiente para viver bem e os direitos autorais dos livros publicados não rendiam nada.

“- A vida estava muito dura. Não podia gastar um centavo à toa. As crianças estavam na escola e eu precisava comer. A fossa era completa.”

Até hoje, Clarice não consegue viver com o que ganha de seus livros. Foi obrigada a virar jornalista para viver. “Diálogos possíveis” - entrevistas semanais feitas para uma revista, e uma crônica semanal num jornal do Rio, garantem sua subsistência”.

“- As entrevistas são interessantes. Todas as pessoas têm sempre alguma coisa de bom para contar, das mais catedráticas às mais fúteis. As crônicas são uma experiência completamente nova para mim. Nunca pensei que pudesse fazê-las. Até que Rubem Braga, meu grande amigo, aconselhou-me a fazer várias, para não ficar naquela preocupação de ter alguém esperando pela minha produção literária”.

Esse novo trabalho servia também para distraí-la. Com a separação do marido, desligou-se dos amigos. Ficou só. Dormindo às oito horas da noite, indo ao cinema sozinha, evitando gente ligada àquele amor. Sobre esse amor: “acabou e está enterrado.”

Sim, porque não lhe deu a felicidade esperada. Para ela, “a compreensão, o amor correspondido e a amizade” são as três coisas essenciais para fazer uma pessoa feliz. Mas também essencial para viver é ter pão para comer”.

“- Se não se tem dinheiro para comer de nada adiantam o amor e a amizade. Por outro lado, se a gente tem dinheiro e não tem os outros dois ingredientes a vida é vazia, uma fossa constante”.

Os editores de Clarice Lispector afirmam que ela possui uma elite de leitores. Querem, por isso, reeditar A Maçã no Escuro e lançar dentro de dois meses seu último trabalho, a novela Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Clarice diz que será uma surpresa para todos que conhecem sua obra.

Sua obra: Perto do Coração Selvagem, O Lustre, Laços de Família, A Maçã no Escuro (2 edições), O Mistério do Coelho Pensante, A Cidade Sitiada, Legião Estrangeira, Paixão Segundo G.H. e agora A Mulher que Matou os Peixes.

Clarice não costuma ler muito. Já foi frequentadora da Biblioteca de Aluguel da rua Rodrigo Silva, no Rio. Nessa época, entre os 13 e os 15 anos lia todos os livros que tivessem títulos bonitos. Foi assim que conheceu O Lobo da Estepe, de Herman Hesse, que “me marcou profundamente”.

“- Depois desse livro adquiri consciência daquilo que desejava ser, como queria ser e o que deveria fazer. Nunca mais pensei em escrever peças teatrais, como a que fiz aos nove anos em Recife: uma peça em três atos em apenas três folhas de papel escolar. Creio que fui a teatróloga mais concisa que já existiu”.

Clarice não gosta de comentar os autores de sua geração - a chamada geração de 45. Diz que Fernando Sabino e Otto Lara Rezende, por exemplo, são seus amigos. E só. A geração atual? “Muito pobre, ainda não encontrou sua verdadeira trilha”.

“- Com raras exceções, encontramos alguma coisa boa para ler. Não conheço a maioria dos autores novos pois o tempo que tenho, apesar de ser muito, não me permite ler. E não tenho mais cabeça para fixar. Prefiro escrever a ler. Assim não me sinto vazia”.

Clarice fuma sem parar. Suas mãos tremem ao acender o cigarro mentolado. Faz questão de mudar de assunto.

“- Sabe, uma das coisas que mais me incomodam é o fato de as pessoas acharem que sou um mito. Isso prejudica muito a aproximação de pessoas que poderiam preencher o vazio da minha vida. Quer um exemplo? Daqui a pouco serão sete e meia. Um pintor de 25 anos vai me telefonar. Há vários meses esse rapaz me telefona nesse mesmo horário, só para conversar comigo. Não o conheço pessoalmente e ele tem medo de vir me ver. Acha que sou uma esfinge, que precisa ser adorada à distância.

Logo depois o telefone toca e ela conversa sobre futilidades, rapidamente:

“- Agradeço a gentileza de não ter tocano num assunto óbvio: minhas queimaduras. Como vê o incômodo que sofri há algum tempo destruiu parcialmente minha mão direita. Minhas pernas ficaram marcadas para sempre. O que aconteceu foi muito triste e prefiro não lembrar. Só posso dizer que passei três dias no inferno, aquele que - dizem - espera os maus depois da morte. Eu não me considero má e o conheci ainda viva.

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O ano começa bem para as crianças. A excelente contista Clarice Lispector volta a repetir êxito de seu livro anterior O Mistério do Coelho Pensante. Agora ela aparece com A Mulher que Matou os Peixes.

É ideal o encontro de Clarice Lispector com o mundo infantil, pois ambos têm a linguagem comum da espontaneidade, sem adjetivos ou termos difíceis e empolados. Têm também o deslumbramento fundamental perante a vida, uma espécie de inocência que a experiência adulta não consegue apagar, e o amor pelos bichos: temática constante de sua literatura maior.

A Mulher que Matou os Peixes entremeia na verdade várias histórias simples sobre bichos: micos, cachorros, gatos, peixes, pássaros e lagartixas. Desde a confissão inicial: “Eu sempre gostei de bichos. Tive a infância rodeada de gatos…”. Clarice estabelece um diálogo meio secreto com as crianças, tornando-as participantes de sua maneira de encarar o mundo; uma maneira ingênua e graciosa ao mesmo tempo: “Minha casa tem bichos naturais. Bichos naturais são aqueles que a gente nem convidou nem comprou. Por exemplo, nunca convidei uma barata para lanchar comigo”.

A barata, que no longo monólogo de A Paixão Segundo G.H. passa a verdadeiro personagem, com capítulos inteiros dedicados à sua intrusão doméstica, aqui também merece considerações que neutralizam o nojo que causa: “Barata é outro bicho que me causa pena. Ninguém gosta dela, e todos querem matá-la… Tenho pena das baratas porque ninguém tem vontade de ser bom com elas”.

A mesma técnica quase de conto policial, de manter a criança em suspense, e que foi empregada no livro anterior é utilizada aqui: a identidade e o crime da Mulher que Matou os Peixes só são revelados - e com pedido de perdão às crianças - no final do livro. O suspense é alternado com divagações pessoais: “Voltando aos coelhos, tem gente que come coelho. Eu não tenho coragem porque é como se eu comesse um amigo. Os dois coelhos que tivemos em casa eram meus amigos”. Ao lado de conselhos também pessoais: “Se vocês gostam de escrever, façam porque é ótimo: enquanto a gente brinca assim, não se sente mais sozinha, e fica de coração quieto”.

Recentemente, em uma de suas crônicas num jornal carioca, Clarice Lispector definiu com lucidez e intuição sua própria maneira de ser, seu próprio estilo inconfundivel para crianças e adultos. A sua, segundo suas próprias palavras, é “uma inteligência sensível” ou “uma sensibilidade inteligente”, sem pretensões a autora cerebral nem a autora desligada de qualquer realidade. Esta maravilhosa conjugação de sensibilidade e inteligência está contida inteira nesse seu novo presente às crianças brasileiras, que pouco a pouco vão formando uma estante de livros raros, formados, como este, de sensibilidade lírica e inteligência comunicativa.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Que mistérios tem Clarice Lispector? .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.