Uma anotação sobre Harold Pinter
Embora surja no panorama do teatro contemporâneo inglês ao mesmo tempo que as companhias que revolucionaram a arte de representar e a dramaturgia britânicas do após-guerra, a English Stage Company e o Theatre Workshope, Harold Pinter não tem em comum com elas e seus representantes nem a temática nem a intenção em muitos casos doutrinária de protesto contra o status quo evidente nas peças de Osborne, Wesker e Arden. As semelhanças são secundárias, como por exemplo, a de ele já ter sido ator, como John Osborne, tendo percorrido cidadezinhas sonolentas da Irlanda representando em espetáculos de uma só noite. Com o pseudônimo de David Baron, já desempenhou, entre outros, o papel de Mick que os cariocas têm oportunidade de ver atualmente na montagem qualitativamente boa do Grupo Decisãos, de São Paulo, de sua peça The Caretakers (O Inoportuno). Como Arnold Wesker, Pinter é judeu, de origem proletária, nascido na Zona Norte de Londres, ou seja, no East End. Desde 1957, começou a escrever teatro, tendo hoje 4 peças já estreadas, além de 5 para televisão, 2 para rádio e 1 script de cinema, como que reconhecendo que a arte dramática hoje em dia tem outras formas paralelas de expressão além do teatro em si. Partindo inicialmente de poemas e trechos dialogados em prosa, além de uma novela autobiográfica, ele gradualmente evolui para a forma dramática. Sua primeira inspiração clara para escrever uma peça processou-se, em suas palavras, de forma fulminante: «Entrei numa sala um dia e vi nela duas pessoas. Esta imagem não me deixou por longo tempo depois e senti que a única maneira que eu tinha de expressá-la e liberar-me dela era utilizando a forma dramática. Parti então com esta imagem de duas pessoas e deixei que elas continuassem daí por diante. Não se tratava de uma passagem proposital de um gênero para outro. Foi um movimento completamente natural».
Mas entregues a si mesmos, os personagens dessa primeira peça, chamada apropriadamente de The Room (A Sala ou o Quarto), instauram em cena um terror que se aproxima do caos. Os dois protagonistas são o sr. Hudd e senhora. Pelo longo monólogo inicial da sra. Hudd ficamos sabendo que seu marido é chofer de caminhão e que deve partir breve pelas estradas nevadas afora. Chega em cena o senhorio que não se sabe ao certo se mora naquela casa ou não. Ele fala de sua mãe, que pode ter sido judia ou não e sai. Um casal entra, pedindo para ver o quarto que, foram informados, está para alugar, quando na realidade vemos claramente que está ocupado pelos Hudds. Volta o senhorio para dizer que está no porão um homem que há muito tempo quer ver a sra. Hudd assim que o marido dela sair. Quando o visitante aparece em cena, vê-se que é um negro cego que parece ter conhecido a sra. Hudd antes e que lhe pede insistentemente que ela volte para casa com ele. Ela nega tudo quando seu marido volta, enfurecido e derruba o negro, golpeando-o selvagemente. A sra. Hudd fica cega enquanto a cortina cai.
Ja nesta primeira peça Pinter assinala uma de suas preocupações constantes e delineia alguns pontos-chaves de sua temática: tudo que acontece no palco é ambíguo, pode ser ou não ser, paira sobre qualquer afirmação feita por qualquer personagem a dúvida, a possibilidade de que ele esteja mentindo. Há uma certa afinidade de perspectiva com a adotada por Ionesco, que em A Cantora Careca faz seus personagens falarem ininterruptamente sem dizer nada, já que meramente repetem banalidades, chavões impessoais e estúpidos que nada revelam de sua maneira de pensar real nem de seus sentimentos. Pinter, através da reconstituição realista da linguagem diária, de uma fidelidade quase taquigráfica no seu naturalismo, faz-nos sentir o oco, o vazio da linguagem diária, feita exclusivamente para ocultar a linguagem verdadeira, interior. Em exce lente entrevista concedida ao Sunday Times, ele declarou lapidarmente:
“A linguagem... é um comércio altamente ambíguo. Tantas vezes, debaixo da superfície das palavras ditas, jaz o não-dito e o conhecido. Meus personagens me dizem até cerio ponto e não mais, com referência às suas experiencias, suas aspirações, seus motivos e sua história, Entre a minha carência de dados biográficos sobre eles e a ambiguidade do que eles dizem há um território que não só merece ser explorado, mas que devo, obrigatoriamente, explorar. Você e eu, personagens que crescemos sobre uma página em branco, quase sempre somos inexpressivos (na vida real), revelamos pouco sobre nós mesmos, somos evasivos, obstruímos as vias de acesso ao nosso eu verdadeiro e interior, não queremos cooperar no desvendamento de nossa personalidade oculta. Mas é desses atributos que a linguagem emerge A linguagem, repito, em que, debaixo de que se diz, existe outra coisa que não se diz, mas que é a verdadeira”.
Os críticos se referem ao ciclo de peças de Pinter que precede O Inoportuno (o título inoportuno dado à peça em português), sem incluir este texto, porém, como sendo as comédias de ameaças: todas se passam num recinto fechado e a ameaça provém de fora, vindo destruir uma estrutura interna ou revelando conflitos latentes entre os personagens. Depois de The Room, o jovem dramaturgo (34 anos) escreve The Birthday Party (A Festa de Aniversário), bastante semelhante ao Processo de Kafka em certos pontos: Num quarto de pensão decadente à beira-mar, um ex-pianista chamado Stanley vive mimado por uma senhoria idosa e de instintos maternos que só agora desabrocham com o maduro inquilino. Dois homens aparecem, destruindo esta paz sórdida, um deles é um judeu tagarela e simpático, outro, um irlandês reservado e sinistro. Acusam o hóspede dos mais hediondos crimes e revelam que vieram matá-lo. Durante o aniversário de Stanley, levam-no ao desespero com um exame policiesco que o deixa esgotado por um colapso histérico. No dia seguinte, Stanley está em cena elegantemente vestido e segue os assassinos para um carro que os espera fora e os acompanha para um destino desconhecido, sem protestar nem tentar resistir.
Possivelmente inspirado em Kafka, Pinter consegue dar a seus personagens um ar de inconfundível realidade, tornando-os plenamente plausíveis e, como os atormentados personagens de Kafka, eles também são torturados por um vago, mas inconfundível sentimento de culpa quase congênita e que terão de expiar fatalmente um dia. Este anátema é reiterado em The Dumb Waiter, chegando ao paroxismo do terror surrealista e macabro: dois assassinos, capangas alugados para matar, estão num quarto de hotel, esperando ordens do chefe. O quarto em que estão alojados tem um criado mudo, do qual desce uma voz desconhecida, dando ordens como as de um garçon num restaurante. A voz ordena que mandem pelo elevador as iguarias mais absurdas, até que, finalmente, enquanto um dos assassinos sai do quarto para ir ao banheiro, a voz comanda o que ficou a matar seu companheiro, caindo a cortina em seguida. Para Pinter, a hostilidade não existe somente entre um grupo de homens e outro, mas, em potencial, ela está oculta em cada homem contra todos os demais. Seus personagens, como os do teatro de vanguarda francês, Ionesco, Audiberti, não se comunicam entre si. Revelar-se é uma experiência, traumática para eles, por isso nas suas escaramuças tentam ludibriar o interlocutor sobre a verdade a respeito de si mesmos. Nas palavras do próprio autor:
«Há duas espécies de silêncio, uma quando não se diz palavra alguma. Outra quando se emprega uma torrente de palavras, esta torrente tenta dissimular a linguaguem oculta debaixo dela. As palavras que ouvimos são uma indicação daquilo que não ouvimos na realidade, que não é dito. É um subterfúgio necessário, violento, um hábil, angustiado e irônico biombo que mantém a linguagem subterrânea em seu devido lugar. Uma forma de encarar-mos o diálogo é o de dizermos que ele é um constante estratagema para tapar nossa nudez”.
Em O Inoportuno, ao cessar propriamente o ciclo da ameaça, atinge o seu clímax a peça de conflitos e de impossibilidade de intercomunicação, de interrelação, de convivência talvez entre os seres humanos, apresentando-se situações de indigência e de nudez do homem perante a inclemência de tudo como nas peças de Beckett em que mendigos emergem da lata de lixo e esperam eternamente um Godot (Deus?) que eternamente protela sua vinda. Mais ainda: O Inoportuno reflete também a experiência pessoal de Pinter de que a verdade, como já dizia Kierkegaard, é uma experiência subjetiva e que não a podemos comunicar a outrém porque cada pessoa vê a realidade como se fosse um caleidoscópio e as imagens, feitas da fragilidade do vidro, mudam de mão em mão, embora seu desenho fundamental permaneça o mesmo. Como diria Pirandello: “Assim é se assim se parecer”:
“Todos interpretamos uma experiência que nos é comum de maneira completamente diferente, embora prefiramos crer que existe um ponto de contato que nos é comum a todos e que todos conhecemos, creio que esse ponto de contato existe, sem dúvida, mas é mais parecido com um pântano de areias movediças. Porque”a realidade” é uma palavra firme e forte, temos a tendência de esperar ou pensar que a condição à qual ela se refere é também firme, cristalizada, inequívoca. Não me parece que seja assim e na minha opinião isso não é pior nem melhor, é somente”.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Uma anotação sobre Harold Pinter},
booktitle = {Aspectos do Teatro Contemporâneo},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {11},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-11/04-o-teatro-da-decadencia-e-da-revolta-nos-paises-anglo-saxonicos/07-uma-anotacao-sobre-harold-pinter.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Diário de Notícias, 1964/06/21. Aguardando revisão.}
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