Hilda Hilst

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Revista Goodyear, 1989/07-08. Aguardando revisão.

Palavra por palavra, que poucos leram, ela criou um universo de abismos, angústias, lucidez e beleza.

Durante quarenta anos de sua vida, Hilda Hilst abandonou os programas mundanos, as viagens à Europa, os amores atormentados e pendurou na parede seu diploma de advogada formada pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na capital paulista. É um diploma que não está nas salas principais da fazenda verdejante a 11 quilômetros de Campinas (SP), propriedade de sua mãe, Maria do Carmo Ferraz de Almeida Prado, onde ela há 26 anos se refugiou voluntariamente para escrever. Foram trezentas palavras por dia, durante todo este tempo. “Não ganhei um tostão com o produto da minha cabeça”, diz a autora de 28 livros – de poesia, peças de teatro e ficção – cujos originais foram entregues a editoras idealistas, mas diletantes, quase todas.

Pendem fotografias: do pai extremamente culto e inteligente, que teve o infortúnio de enlouquecer ainda moço e não voltar à sanidade durante os restantes trinta anos de sua vida. De família em parte da Alsácia, aquela zona de transição e fusão entre a Alemanha e a França (Hilst é uma forma dialetal do alemão Hülse, invólucro, estojo), ele se casara com uma descendente de portugueses de tex azeitona, os olhos meigos e melancólicos. Hilda Hilstaem seu refúgio (desterro? auto-exílio?) veste-se com roupas feitas de tecido de algodão que serviram para limpar máquinas e depois são vendidas por preço barato, numa loja humilde no lugarejo em frente à sua fazenda. Aos 59 anos, sem filhos, vive em companhia do ex-marido, o escultor Dante Casarini, e está sempre circundada por dezenas de cachorros vira-latas que ela recolhe nas ruas de Campinas e de livros que tomam praticamente todas as estantes da enorme mansão. Ganha um salário como “artista residente” da Universidade de Campinas, onde, uma vez por semana, dá duas horas seguidas de aula sobre “Criação Literária”.

Autores difíceis como os austríacos Hermann Broch e Robert Musil ou o tcheco Franz Kafka alinham-se lado a lado com livros de cientistas (Norbert Wiener, Werner Karl Heisenberg, Julius Robert Oppennheimer) e matemáticos, como Bertrand Russell. Obras sore os rituais dos faraós do antigo Egito, sobre a história, do inglês Arnold Toynbee, e sobre o oculto, de Colin Wilson, também consomem muitas de suas horas diárias de leitura atenta, as margens minuciosamente anotadas. Um empregado novo da fazenda chegou a espantar-se com a austeridade do lugar (seria uma casa de repouso ou um claustro?), com seu pátio cheio e gaiolas de passarinhos e onde um papagaio sobre e desce por um fio para pedelar uma minibicicleta comprada só para ele.

Tinha 33 anos quando se retirou de São Paulo. “Claro”, ela explica, “não me sentei e disse: vou agora criar só obras-primas”. No Extremo Oriente chamam satori essa fulminante iluminação interior (uma compreensão espiritual do valor da vida, não uma apreensão intelectual, pensada, de quais são nossos objetivos durante a nossa existência). Hilda explica que inesperadamente captou a verdade que o filósofo da Roma Antiga, Lucrécio, formulara há mais de dois mil anos: a Natureza não leva em conta o ser humano, suas preces, seus desejos, suas esperanças. Para ela também Deus surgia, se é que existisse como um sádico monstruoso que permite, por exemplo, que o crocodilo egípcio, às margens do rio Nilo, durma de bocarra aberta: por ela ratos vorazes entram e assim o devoram por dentro, estraçalhando suas entranhas. Ela indagava se a crueldade do homem comendo outros seres vivos para sobreviver a qualquer custo e matando seus semelhantes não estaria embutida no código genético humano ou não seria uma característica ou maldição inextirpável.

Chegava à mesma conclusão sombria da grande escritora inglesa Doris Lessing em seu livro Shikasta: A História era um infinito desenrolar de guerras, conflitos pela posse da terra, de bens, de títulos, de honrarias, de amantes, quando os choques não eram contra qualquer pessoa que fosse “diferente”. Bastava ser judeu ou negro ou homossexual ou muçulmano ou herege para se desencadearem inquisições, perseguições sanguinolentas, escravaturas, assassinatos em massa, até, hoje em dia, as guerras químicas, o arsenal atômico pendendo sobre a humanidade como uma ameça iminente de destruição total. Hilda Hilst argumentava: quase todas as supremas figuras das grandes religiões tinham sido trucidadas ou ignoradas (Cristo, Gandhi, São Francisco de Assis). E previa um destino trágico, apocalíptico para o homem, já que ele perdera sua alma.

Depois, com o passar do tempo, seu pessimismo se atenuou. Leu sobre experiências verídicas de contatos com misteriosas vozes do além, com discos voadores, com civilizações remotas de outras galáxias. O pintor sueco Friedrich Jürgenson isolara-se do mundo, como relata em um livro, para pintar num barracão no norte do seu país, a centenas de quilômetros de distância de qualquer aldeia habitada. E subitamente seu rádio começou a transmitir mensagens em alemão, em sueco, em inglês: vozes nítidas, compreensíveis. A autora de Com os Meus Olhos de Cão (Editora Brasilense) quis fazer a mesma experiência. Munida de rádio e gravador começou também a ouvir vozes que a chamavam pelo nome e uma que perguntava, insistente: “E se Deus fosse o amor?”.

O programa “Fantástico” a chamou e perante milhões de telespectadores céticos ou abismados ela exibiu suas fitas magnéticas com as vozes, as imprecações, os gemidos que tinham chegado até ela. Seu amigo, o famoso físico César Lattes, não soube explicar cientificamente o fenômeno. Limitou-se a dizer-lhe: “Hilda, a física está ainda na infância”. Depois, desapareceram esses fenômenos “paranormais”, mas comprováveis, embora talvez inexplicáveis. Muitos escareceram dela por ter aparecido na televisão: ela era bruxa? Ou estava querendo se exibir? Com mania de grandeza, ou querendo obter fama por qualquer método?

A criadora de Ficções e Qadós (Editora Quíron) não esmoreceu. Descobriu que entre as fitas e a literatura havia um nexo: era urgente comunicar ao próximo que é inevitável insistirmos nas tarefas prioritárias do homem. Já não bastava eliminar a fome, a miséria, assegurar o respeito dos direitos humanos à liberdade, à justiça, à fraternidade planetária. Era preciso também varrer da mente humana o ódio, a violência, a intolerância, o fanatismo, a guerra. Para ela, se grandes cientistas tinham declarado a imponderabilidade de tudo e não sabiam mais definir o que é rigorosamente matéria e antimatéria, por que nos restringirmos apenas a uma concepção materialista da vida, deixando inexploradas as áreas do espírito, da alma, do contato com outras civilizações do cosmos, como já concordam os sábo da Academia de Ciência de Leningrado, na URSS, e o diretor soviético Andrei Tarkovsky em seus filmes profundos? Era o período de dúvidas em que Deus lhe parecia, quem sabe?, não mais o Todo-poderoso, com suas próprias palavras: “Acho que Deus está irremediavelmente, definitivamente sozinho. Deus está na escuridão, o próprio Deus luta, procura, quer alguém que Lhe estenda a mão, O ajude. Por isso coloco Deus de várias maneiras na minha Literatura: Deus pode ser a crueldade, a busca, o indiferente…”

Outros livros vieram se juntar aos primeiros: Tu Não te Moves de Ti (Livraria Cultura Editora), A Obscena Senhora D (Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores). Logo foram tachados de “difíceis, herméticos”. Poucas pessoas compreenderam que Hilda Hilst, depois de Guimarães Rosa, estava trazendo a mais profunda revolução à literatura contemporânea brasileira. Ela inventava palavras, usava termos arcaicos dos autores clássicos portugueses, encixava expressões populares para descrever sempre situações-limites do ser humano. Alguns personagens buscavam o sentido de sua vida na desenfreada sexualidade; outros se exilavam da vida, em busca de Deus; outros ainda levavam uma vida postiça, superficial, renunciando ao seu verdadeiro “eu” e todos os seus ideais. Seus editores mais entusiastas, a crítica Nelly Novaes Coelho e o artista Massao Ohno, não conseguiam vencer a outra barreira para divulgação de seus livros (nenhum deles teve tiragem superior a dois mil exemplares): a distribuição, que sempre leva a parte do leão em detrimento do editor e do autor.

Avessa a qualquer partido, seita ou igreja, ela em seus livros sempre fala das camadas mais humildes e oprimidas, como o personagem de “Teologia Natural”. Em menos de duas páginas curtas, relata-se o drama de um homem que vive de seu trabalho estfante nas salinas e decide vender a mãe, “um tiquinho de gente”, pois soube que na feira compram até merda. Ele ensaboa sua tez escura, quem sabe com o dinheiro apurado recomprará a velha e podera comprar também os instrumentos de seu ofício, galochas, óculos escuros contra o sol que cega e ficar independente, quem sabe mesmo até “enricar”? Muitas de suas histórias ou “ficções” estão povoadas de pessoas à beira da miséria absoluta, mendigando, buscando na resignação um alívio para seu penoso sofrimento ou até apelando para um Deus Godot, surdo, mudo, cego e ausente.

O que move Hilda Hilst a escrever e esquecer o mundo? “Eu escrevo movida por uma compulsão ética, a meu ver, a única importante para qualquer escritor; a de não pactuar, não transigir com a mentira que nos circunda. Essa é uma atitude visceral, que parte da alma, da mente, do coração do escritor. O escritor é aquele que diz ‘não’, não participa do engodo geral armado para ludibriar as pessoas!”

Tanto no seu vigoroso teatro inédito quando nos seus belos livros de poesia, Júbilo, Memórias e Noviciado da Paixão (Editora Massao Ohno), Da Morte, Odes Mínimas, Cantares de Perda e Predileção e Sobre a Tua Grande Face (este com grafismos do insigne pintor japonês, radicado em São Paulo, Wakabayashi), escrever é um ato também político: “É sempre querer trasnformar as condições materiais, sociais e espirituais em que os homens vivem”. Como estamos quase todos paralisados pelas policialescas sociedades em que vivemos, talvez muitos leitores se acovardem diante da proposta de seus livros: cada um conhecer-se melhor para permitir que o outro também se conheça a si mesmo. Muitos temem a mudança, a rebeldia. O escritor mostra como afastar os fantasmas das falsas verdades que nos foram impostas arbitrariamente, mostra como destruir os tabus e mitos nunca questionados e injustos. Só assim, seremos livres, ela crê: “A totalidade do ser humano seria então compreender o teu próximo e dar vida a ele. Fazer da tua linguagem uma extensão da tua ação, só assim você começará a amar o outro. No mundo de hoje só um louco é que se recusa a pensar em utopias”.

Agora, a decepção com sua longa trjetória literária exauriu-a. Terminou o livro Amavisse (Editor Massao Ohno), que em latim quer dizer “ter amado um dia”, um livro elegíaco, em que um artista e um louco se encontram e só no despojamento de tudo, até da vaidade humana de ser reconhecido pela criação literária, reencontram seu caminho. A paixão apazigua, o Tempo devorando dia a dia nosso espaço mais exíguo de viver, rumo à Morte. Agora, Hilda Hilst ultima os textos Lory Lambi, uma “história pornojeca”, as anotações infantis de uma menina de oito anos, Lory Lambi, que inocentemente participa de iniciações sexuais extremas. Tudo ilustrado pela mão de mestre de Millôr Fernandes, que assina 27 ilustrações. E por último Histórias de Escárnio. Textos Grotescos, um sarcasmo de tudo, até do fato de não ter sido compreendida em seu próprio país. Sem humildade nem altivez, ela crê que agora, finalmente, será lida e aceita: não se colocou no nível do país? “Com riso, com doçura, agora, sim, eu creio, finalmente, que me tornarei consumível”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Hilda Hilst .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.